Entre os edificantes
aspectos da pessoa de sua mãe, Dr. Plinio apreciava a elevada clave
de espírito em que ela se situava e da qual provinham seu afeto e
sua benevolência, tão atraentes quanto consoladores. Na verdade,
Dona Lucilia procurava, habitualmente, considerar todas as coisas em
função do parâmetro absoluto que é Deus.
Quando menino de 2 ou 3 anos
acordava durante a noite e saía do meu berço — colocado ao lado
da cama de Dona Lucilia — para ir me sentar sobre o peito de mamãe.
Abria seus olhos com a mão e começava a analisá-la.
Líquidos
de sabores semelhantes em taças distintas
Creio que, instintivamente,
conforme os rudimentares anseios de uma criança nessa idade, eu
percebia através do modo como ela então me tratava, a expressão de
uma bondade superior, arquetípica, cuja manifestação me apareceria
mais tarde, quando me fosse dado compreender a misericórdia do
Sagrado Coração de Jesus para conosco.
Essa afinidade entre a
bondade e a compaixão infinitas d’Ele com as de mamãe sempre me
chamou a atenção. Aos olhos de menino, essa consonância poderia
ser comparada a duas taças a mim oferecidas, com líquidos cujos
sabores me pareceriam análogos. Eu tomaria de uma e me deliciaria
com seu conteúdo; pouco depois, beberia da outra, e igualmente me
sentiria agradado, sem chegar à conclusão de que era o mesmo
líquido.
Claro está, devem-se
guardar as proporções entre o finito e o infinito. Assim, ao
conhecer o Sagrado Coração de Jesus, discerni n’Ele o
perfeitíssimo a perder de vista, sem nenhuma ressalva ou restrição,
o suprassumo do que se podia conceber em matéria de misericórdia e
bondade. Entretanto, afim com a bondade de mamãe, embora
incomparavelmente menor, como se Ele vivesse nela. De sorte que o
maravilhamento causado em mim por Dona Lucilia, de modo mais
circunscrito, era do mesmo gênero que o superior encanto produzido
pelo Coração de Jesus na minha alma. Aquele era derivação deste.
E quando, anos mais tarde, cheguei à conclusão de que eram coisas
afins, não tomei essa definição como uma conquista nem como uma
surpresa, e sim como uma constatação natural do que eu sempre
sentira. Eram taças com líquidos parecidos.
“Em qualquer parte do
mundo ela me atrairia!”
Parece-me interessante notar
que as descrições feitas por pessoas que conheceram mamãe,
correspondem minuciosamente à essa impressão que ela me causava. E
corroboram em mim a certeza de que, em qualquer parte do mundo onde
nos encontrássemos, eu seria atraído por Dona Lucilia.
Diversas vezes, durante o
nosso longo convívio, me pus este problema: qual seria o teor deste
relacionamento, caso eu não fosse filho dela, mas sobrinho? E
concluía que só não seria idêntico pela razão de não estarmos
continuamente juntos, sob o mesmo teto. Quanto ao mais, não haveria
diferença.
E se ela fosse uma pessoa
que eu conhecesse noutro ambiente da sociedade paulista? A mesma
resposta. Em qualquer lugar, eu teria sido conquistado pelo olhar
dela, pelo seu modo de ser, e teríamos estabelecido uma amizade
inabalável. E me agradaria pensar que tais sentimentos fossem
recíprocos.
Daí o meu trato com mamãe
se traduzir em manifestações as mais carinhosas possíveis.
Chamá-la de “meu bem” a todo momento era o mínimo que eu lhe
dizia, de tal maneira nossa união era completa, natural, constante.
Mais que união, era uma identidade.
Reflexo
da clemência de Nossa Senhora
Essa relação baseada no
afeto e na bondade teve um importante papel na minha compreensão
acerca da insondável misericórdia de Nossa Senhora para com os
homens, especialmente para com os pecadores. Quando eu próprio me
senti objeto dessa clemência da Mãe de Deus, foi como se Ela me
dissesse: “Eu perdôo tudo, e por mais que você cambaleie e se
apresente a mim nesse estado de penúria espiritual, terei pena e o
perdoarei”. O sentir essa disposição maternal determinava em mim
a idéia da proteção e do afago desinteressados de Nossa Senhora
para comigo: a misericórdia d’Ela sobrepuja os últimos limites de
minha miséria, cobre-os com sorriso, com ternura, com sobras de
complacência, só porque eu sou o Plinio... Ora, em grau menor, eu
sentia análogas disposições de mamãe em relação a mim.
Portanto, sem eu saber, ela preparava meu espírito para
compreender a extraordinária
misericórdia de Nossa Senhora. Quiçá eu não a tivesse entendido
como a entendi, não fosse esse contato prévio com o afeto de Dona
Lucilia.
Ungido
pelo perfume da bondade
A par dessa profunda
analogia com a ternura de Maria Santíssima, eu apreciava em Dona
Lucilia a elevada clave de espírito em que ela se situava e a partir
da qual nos dispensava suas manifestações de afeto e benevolência.
Na verdade, mamãe procurava habitualmente considerar as coisas em
função de algo mais alto, em função do parâmetro absoluto que é
Deus, assim como procurava atraí-las para essa elevação de alma.
De maneira que me sentia a
mim mesmo sendo visto desde essa clave, e quando Dona Lucilia me
agradava, era algo desse patamar que descia sobre mim, e como que me
ungia. Por exemplo, quando ela me fazia o sinal da Cruz na testa,
antes de ir dormir, eu percebia que alguma coisa daquela alta clave
me recobria como um azeite, um bálsamo, e me fazia bem. Mas, no
sentido próprio da palavra: era perfumado, suavizante, e penetrava
em mim como o óleo penetra no papel.
Junto com essa elevação, a
bondade invariável para comigo e para com os outros. Revestida de
uma certa tristeza, igualmente comovedora, por constituir um ápice
de conúbio com aquela clave elevada, na qual ela muitas vezes se
sentia só: “Moro nesse patamar, que é o lugar do meu abandono.
Convido-os para estarem comigo e desejo sua companhia. Porém, se não
vierem, aqui permanecerei sozinha.”
Supérfluo dizer que essas
qualidades de Dona Lucilia falavam imensamente à minha alma de
filho...
Plinio Correa de Oliveira -
Transcrito de conferência em 4/12/1985
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