sábado, 25 de agosto de 2012

Senhora afável e mãe solícita

Dª Lucilia sabia aliar de forma admirável, no relacionamento com qualquer pessoa, o trato afável a uma alta noção de sua própria dignidade. Não com intenção de domínio, mas por se respeitar a si própria e esperar o reconhecimento dessa respeitabilidade da parte dos outros. Se isso faltasse, ela seria capaz de encerrar uma amizade. Ela mesma tratava as pessoas com muita boa vontade, atribuindo-lhes tudo o que merecessem.
O convívio com a governanta dos filhos
Não era outra sua conduta com Fräulein Mathilde, a preceptora alemã de seus filhos. Conversavam com muita cortesia, cada uma em sua posição: Dª Lucilia, a senhora da casa, verdadeira dama e aristocrata; Fräulein Mathilde, com toda a sua instrução de excelente governanta, viajada, conhecedora de grande variedade de ambientes.
Seria normal que houvesse dificuldades temperamentais entre Dª Lucilia, brasileira muito afrancesada, e a governanta, mas a benevolência e afabilidade de uma e a discrição e respeito da outra tornavam o convívio entre ambas muito cordial. Dª Lucilia, alma sempre muito justa, nunca deixou de elogiar Fräulein Mathilde como uma governanta exímia.
Essa cordialidade e essa delicadeza de trato tornaram-se ainda mais salientes por ocasião da Primeira Grande Guerra, na qual o Brasil entraria do lado da “Tríplice Entente” (constituída pela França, Grã-Bretanha e Rússia) contra a Alemanha e seus aliados. Este fato poderia ter criado difíceis condições à permanência da governanta bávara na residência dos Ribeiro dos Santos, interrompendo assim o processo educativo das crianças. Felizmente o bom senso, a amenidade brasileira e, sobretudo, a proteção de Dª Lucilia não permitiram que tal acontecesse.
Em agosto de 1914 iniciou-se o conflito armado. Nele se defrontavam em luta de morte as dinastias mais veneráveis, acabando por sucumbir quase todas nas convulsões e tragédias que elas mesmas inabilmente haviam provocado. Plinio, muito precoce, abria então os olhos para o mundo, e seguia atentamente, pelas conversas dos adultos, ou mais tarde através da leitura furtiva de alguns jornais, esse colossal e derradeiro entrechoque de monarquias e potentados.
Fräulein Mathilde com Plinio e Rosée
Fräulein Mathilde desejava naturalmente a vitória dos Impérios Centrais, mas, muito discreta, nunca procurava entrar nas conversas da família sobre o assunto. Nesse período, quando acontecia estarem todos reunidos — como, habitualmente, nos jantares de quinta-feira — criticavam muito o Kaiser, alvo preferido das cóleras familiares, mas também o Kronprinz (Príncipe Herdeiro alemão), o Marechal Hindenburg, o General Ludendorff e outros. Dª Lucilia tinha conseguido, contudo, com muita habilidade, que nunca falassem contra a Alemanha quando estivesse à mesa Fräulein Mathilde. Fizera notar aos demais como ela estava se revelando excelente formadora. Além disso, era a única pessoa, das que moravam em casa, nascida entre as potências adversárias, e portanto não falar mal destas era questão de caridade.
Assim, foi a governanta tratada com toda a cordura. Seria explicável que mandassem servir-lhe as refeições noutra sala de jantar, dizendo-lhe: “Temos uma opinião diferente da sua, compreendemos não ser o caso de falar sobre a Alemanha na sua presença...”. Não aconteceu. Ela entendia a situação e, por isso, tomava a sobremesa depressa e saía. Percebia-se que tinha o intuito de deixar aos outros a liberdade de se exprimirem como desejassem.
Quando o Kaiser caiu, Dª Lucilia tentou consolá-la. Não foi tarefa fácil. Fräulein Mathilde nunca tentou impor suas opiniões políticas a ninguém, mas conservava em sua cabeceira uma fotografia de Guilherme II, estampada sobre louça, e, preso nesta por um grampo, um vasinho para flores. Nunca faltou uma flor para o Kaiser, mesmo depois de sua renúncia...
Educando os filhos para a vida social
Embora Dª Lucilia deixasse Rosée e Plinio aos cuidados da Fräulein Mathilde, acompanhava de perto a educação deles. Conversava muito com a governanta e, não obstante sua precária saúde e todo seu desvelo pela mãe, já idosa, tinha intenso contato com os filhos. Se um deles a procurasse para qualquer fim, fosse para lhe pedir um conselho ou para que contasse alguma história, sempre encontrava tempo.
De modo todo especial, empenhava-se ela em preparar os pequenos para a vida na sociedade.
Era costume naquele tempo as senhoras reservarem as tardes de certos dias da semana para visitas. Obedeciam estas sempre a um pequeno cerimonial, religiosamente respeitado até que a informalidade popularesca, trazida pelo cinema de Hollywood, devastasse largamente as boas maneiras.
Tradicional dama paulista, Dª Lucilia sabia temperar, na perfeição, a indispensável rigidez das regras de cortesia com a suavidade de uma conversa agradável e um trato impregnado de afeto. Nem sempre era fácil tarefa, pois as relações sociais impunham por vezes receber pessoas com as quais se podia simpatizar ora mais, ora menos, sem externar qualquer desagrado ou impaciência.
Nessa escola eram educadas as crianças pela Fräulein Mathilde, de acordo com os padrões da cortesia européia, sob o benévolo olhar de Dª Lucilia.
*
A campainha toca. O copeiro vai até a entrada e verifica tratar-se de duas senhoras que chegam para uma visita à casa dos Ribeiro dos Santos. Abre-lhes a porta, recebe os cartões, coloca-os numa salva de prata e vai entregá-los a Dª Lucilia.
— Peça-lhes que aguardem um instante na sala de visitas menor, pois lá irei logo.
As amigas da família são conduzidas ao local indicado que, por ser mais íntimo, é próprio a receber pessoas muito próximas. Sentam-se e trocam umas palavras enquanto esperam. Após alguns minutos Dª Lucilia entra, cumprimenta-as com a cortesia e a amabilidade toda sua, e conduz a conversa de modo a comprazer às recém-chegadas. A certa altura, toca uma sineta e manda chamar a governanta. Quando esta chega, lhe diz:
— Fräulein Mathilde, por favor, traga Rosée e Plinio para cumprimentarem estas minhas amigas.
Era costume, antigamente, as crianças entrarem no salão para saudar as visitas, tendo antes trocado a roupa do dia-a-dia por uma de mais categoria. Assim, a governanta as procura e diz:
— Chegaram duas senhoras e vocês precisam vestir uma roupa especial.
Notícias como esta eram, não raras vezes, recebidas pelos pequenos com certo desagrado:
— Mas vamos ter de abandonar o brinquedo agora?!
Para elas, poucas obrigações eram tão aborrecidas quanto cumprimentar visitas, pois em todos os gestos e atitudes deviam respeitar certas regras com ar de perfeita naturalidade, e recapituladas por Fräulein Mathilde antes de entrarem na sala:
— Primeiro cumprimentem Dª Fulana, que é mais velha, e perguntem como ela tem passado; depois, a senhora mais moça.
Porém, chegada a hora de entrar, todas aquelas disposições, desagradáveis para qualquer criança, ficavam para trás e elas se viam alçadas à condição de adultos em miniatura, onde eram sustentadas pela presença reconfortante de Dª Lucilia. De dentro de suas diminutas vestimentas de gala, sentiam-se mais dignificadas e, aos poucos, tomavam gosto pelos aspectos finos e requintados da vida. Eram penetradas, no mais profundo do ser, pelos imponderáveis aristocráticos que as moldavam inteiramente.
Muito meticulosa nos trajes
Talvez nos seja difícil avaliar, hoje, a importância dada pelas pessoas daquele época ao modo de vestir.
Rosée e Plinio, filhos de Dª Lucilia
Sendo hierarquizada a sociedade, era normal  e até mesmo  obrigatório se apresentarem todos  condignamente, segundo sua categoria  social.
Sempre exímia em tudo, Dª Lucilia  a  esse  dever  se  amoldava  com amor,  tanto  no que dizia  respeito  a si como aos filhos.  Tinha  clara  noção de quanto esse procedimento contribuiria para criar, em torno de si, um ambiente  convidativo  à elevação de espírito e à rejeição da vulgaridade.
Ademais,  o age quod agis (“faze bem o que fazes”)  — a regra de todas as obras de Dª Lucilia — estava presente,   sem   aflição   mas   com suave e decidido  empenho,  em seus pensamentos, palavras  e atos. É sob este prisma que se entende seu cuidado com o bem-trajar  a fim de respeitar os reflexos  de Deus presentes na  dignidade humana,   pois  aquilo que  São  Paulo  afirma  do apóstolo, se aplica a todas as pessoas: “somos dados em espetáculo ao mundo, aos Anjos e aos homens” (I Cor. 4, 9).
“Eu assisti muitas vezes ao fim da toilette dela”, contava Dr. Plinio, al- guns anos após o falecimento de sua querida mãe. “Lembro-me de vê-la já vestida, sentada diante da penteadeira. Em certo momento, levantava- se e se arranjava um pouco. Colocava-se diante de um espelho maior e olhava detidamente, com muito pormenor, mas sem faceirice. Conquanto sua atenção estivesse próxima, mantinha as cogitações em altos patamares. Eu olhava para ela e pensava: Que perfeição!”
Naquele tempo em que os melhores trajes de senhora jamais se vendiam prontos, o bem-vestir constituía, a seu modo, uma arte que exigia não pouco apuro. Dª Lucilia, imaginativa e de apurado bom gosto, escolhia os tecidos e desenhava seus próprios vestidos, bem como os de Rosée, inspirando-se em modelos franceses. Depois chamava uma costureira para fazer as provas, o que não deixava de ser um pequeno acontecimento na rotina doméstica.
Já as roupas masculinas, como sempre, eram confeccionadas por alfaiates. Para muitos meninos, e entre eles Plinio, constituía um ligeiro suplício provar roupas novas. Pois, sendo então bastante meticulosos aqueles profissionais, o feitio irrequieto dos jovens com isso mal se acomodavam.
Na alimentação, mil delicadezas maternas
O especial zelo de Dª Lucilia se manifestava também na alimentação dos filhos. Achava ela, fiel às antigas e sábias concepções, ser a boa nutrição a base de uma vigorosa saúde.  Por isso, desdobrava-se em solicitudes e atenções para Rosée e Plinio terem à mesa substanciosas e atraentes iguarias.
Com todo o carinho, procurava saber quais os pratos mais apreciados por eles, empenhando-se em que as cozinheiras preparassem um menu inteiramente adaptado aos gostos deles. Dessa forma estimulava o apetite de ambos para que se alimentassem bem.
Salão de chá da Casa Mappin
Com frequência, levava as crianças a confeitarias e salões de chá, como o do Mappin ou o da Casa Alemã, onde o requinte se aliava à boa comida, e dos quais elas eram calorosas frequentadoras. Algumas vezes acompanhava-as também a Fräulein. Em seu desvelo materno, recorria até às velhas receitas caseiras trazidas de Pirassununga.
Na São Paulo de então, em que se misturavam ainda, pitorescamente, o bucolismo da vida campestre com o progresso crescente da cidade, era frequente ouvir-se, de manhãzinha, o bimbalhar dos sininhos de um rebanho de cabras, cujo leite, forte e saboroso, era vendido de porta em porta. Dª Lucilia mandava uma criada comprá-lo, e ela mesma o servia depois aos filhos, ainda na ca- ma, em belos copos de cristal, misturado com cognac francês e canela. Receita tão simples quanto antiga, que seu afeto não deixava de transformar em poderoso tonificante.
Em outras ocasiões, enquanto as crianças, sob o vigilante olhar da Fräulein Mathilde, entregavam-se à árdua tarefa dos estudos, Dª Lucilia lhes preparava deliciosos lanches para recompensá-los pelo esforço...
Visita a um grande estadista do Império
Assim como no tocante às boas maneiras, ao bem-vestir e à apropriada nutrição, Dª Lucilia esmerava-se igualmente em outros aspectos da formação de seus filhos. Pertencendo ela a preclaras estirpes — como também Dr. João Paulo, seu esposo —, sempre que se apresentasse uma oportunidade adequada, chamava a atenção deles para o dever de seguirem os exemplos de seus maiores, alguns dos quais se haviam destacado por relevantes serviços prestados ao País. Fazia-o da forma amena, tão de seu costume, contando-lhes inúmeras histórias de família, que constituíam o encanto das crianças e tornavam curtos os longos serões de então.
Conselheiro João Alfredo Correa de Oliveira
Um dos mais célebres entre esses expoentes era o Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira – tio de seu esposo – cujas qualidades de grande estadista da Monarquia o elevaram aos mais altos cargos do Estado.
Sendo o Conselheiro de idade avançada, e tendo-se apresentado a Dª Lucilia ocasião de ir com seus filhos ao Rio de Janeiro, onde ele residia, quis que não perdessem a oportunidade de estar com ele pessoalmente. Tal encontro — julgava ela — perduraria na lembrança das crianças pela vida afora, constituindo um estímulo para seguirem a trilha ilustre do tio-avô que haviam conhecido na infância.
A visita transcorreu com grande cordialidade, e causou profunda impressão na mente dos pequenos. Pouco depois, Plinio, por ocasião do 82º aniversário de seu tio-avô, enviou-lhe uma saudação por escrito. Em resposta, com a gentileza dos antigos tempos, o estadista escreveu num cartão estas palavras:
Rio, 15 de março de 1918
Querido Plinio,
Recebi e guardo como precioso brinde de anos as bem traçadas linhas de tua caligrafia e efusiva redação, exprimindo-me doce afeto que me tocou o coração de octogenário.
Muito bem! Faço votos para que dê muitos frutos a flor de esperanças que te manifestas. Fé e trabalho! Tens na família materna um grande modelo a imitar: o Dr. Gabriel Rodrigues dos Santos. O seu sangue é prometedor, e Deus abençoará o teu esforço para que a promessa vingue em feitos ilustres. Tio avô muito amigo
João Alfredo
Não foram vãos os anseios que, no entardecer da vida do ilustre Conselheiro, aquele menino suscitara...Encontros assim, revestidos das formalidades exigidas pela vida social de então — restos preciosos dos esplendores de outrora — eram muito freqüentes. Faziam parte da existência de todos os dias entre as pessoas de boa família, que o parentesco, os casamentos e os negócios acabavam por ligar entre si. E Dª Lucilia bem os sabia aproveitar, para enriquecer com eles a já esmerada formação de seus filhos.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Retorno à vida no lar

Lucilia Corrêa de Oliveira
Em 17 de abril de 1913, atracava no porto de Santos o navio Duca d’Aosta, no qual Dª Lucilia e seus filhos regressavam da Europa, após longa permanência no Velho Continente. Um radioso e cálido sol os acolheu na sua chegada ao embarcadouro santista, onde os aguardava Dr. João Paulo. Antecipara ela seu regresso, deixando na Europa, por mais algum tempo, sua mãe e os outros familiares.
Encerrava-se assim, ao pisar em terras brasileiras, um importante capítulo da vida de Dª Lucilia. Enquanto o trem que a conduzia a São Paulo ia subindo com lentidão a Serra do Mar, voltava ela a contemplar aquelas elevações recobertas de exuberante mata tropical, salpicada aqui e acolá dos vistosos e por ela tão apreciados manacás, intensamente floridos. Tais impressões se mesclavam em seu espírito com a lembrança dos esplendores e tradições européias que acabara de deixar.
Estação da Luz
Chegados à Estação da Luz, na capital paulista, lá estavam alguns de seus criados para lhes dar as boas-vindas, recolher as bagagens e prestar-lhes pequenos serviços. Eram por certo os mais antigos da casa, a quem as saudades de tão longa ausência proporcionavam maior alegria pelo retorno daqueles que tanto respeitavam. Evidentemente os tempos eram outros. O espírito patriarcal e familiar impregnava ainda de profunda benquerença as relações entre as classes sociais, fazendo com que os reencontros entre patrões e empregados, após as separações prolongadas, se revestissem da doçura de verdadeiros acontecimentos de família.
Um curto trajeto de landau até a alameda Barão de Limeira constituía a derradeira etapa da longa viagem. À medida que a confortável carruagem calmamente percorria ruas e avenidas emolduradas por luxuosos palacetes, uma suave alegria inundava a alma de Dª Lucilia, pois aproximava-se o momento de rever a casa paterna que, meses atrás, havia deixado em condições incertas e dolorosas. Aos poucos, as impressões de viagem iam passando para um segundo plano, enquanto afluíam-lhe à mente as recordações que o regresso a São Paulo evocava.
Palacete Ribeiro dos Santos
Ao dobrar a última esquina, Dª Lucilia avista o palacete Ribeiro dos Santos e em poucos instantes está diante da escadaria de mármore da entrada principal. Alertados pelo rodar da carruagem, os membros mais novos da criadagem saem à rua para receber os recém-chegados. Dª Lucilia os cumprimentou com palavras de bondade, que nunca lhe faltavam nos lábios, transbordantes de seu afável coração.
Trocadas as primeiras saudações, subiu ela os degraus, penetrando na atmosfera recolhida e nobre do santuário familiar. Quantas lembranças não lhe vêm ao espírito nesse momento! Começa a percorrer então, com vagar, aqueles ambientes tão adequados a seus gostos: a saleta de visitas, o salão... Porém, seu olhar torna-se interrogativo ao notar, em uma e outra sala, que os lustres já não eram os mesmos, nem condiziam com o ambiente. O que teria acontecido?
Os lustres de bronze
De fato, havia sido contratado um engenheiro para fazer algumas reformas na casa, durante a viagem da família à Europa. Dª Lucilia acabava de verificar que, infelizmente, a troca dos lustres não fora das mais acertadas. Sem qualquer sobressalto ou impaciência, indagou de alguns criados o destino dos antigos lustres de bronze, até que um deles lhe contou haverem sido vendidos a um pequeno comerciante do bairro.
Após um merecido e necessário repouso, Dª Lucilia procurou reparar o erro cometido pelo engenheiro. No entanto, após percorrer algumas das boas lojas da cidade, constatou ser impossível conseguir lustres iguais ou melhores que os anteriores. Por isso, resolveu ir falar com o comprador dos antigos.
Deparou com o modesto comerciante sentado à porta de um barracão, limpando afanosamente as belas peças de cristal e a armação de bronze dourado, que faziam o encanto daqueles objetos, já desmontados.
Ao ver aproximar-se aquela distinta senhora, ele desde logo se levantou, tirando o chapéu em sinal de respeito. Dª Lucilia o cumprimentou amavelmente e explicou o ocorrido, fazendo-lhe ver a dificuldade em que se encontrava, e manifestou o desejo de readquirir os lustres. Perguntou-lhe quanto pediria por eles, ao que o homem, apesar de sua simplicidade, gentilmente respondeu:
— Mas, minha senhora, nada! Peço o prazer de servi-la.
Dª Lucilia não seria ela mesma se não recusasse:
— Não, isso não. O senhor aplicou dinheiro neles, gastou material de limpeza, está tomando seu tempo e tendo o trabalho de os polir. Ao comprá-los do senhor, compro-os beneficiados; é natural inclusive que eu lhe pague alguma coisa a mais.
Tendo diante de si tão nobre dama, o comerciante se sentia movido a gestos de cavalheirismo:
— É verdade, mas o prazer de servi-la me é mais valioso do que o próprio lucro. A senhora vai-me fazer o favor de ficar com os lustres.
Dª Lucilia respondeu:
— Nesse caso me desculpe, não posso ficar com eles. O senhor me deixa numa posição muito difícil, porque em São Paulo não há outros assim.
 Ele continuou a insistir e nem gorjeta aceitou. Alguns dias depois, os lustres estavam de novo na casa dos Ribeiro dos Santos, perfeitos e reinstalados.
O nobre comportamento desse simples comerciante, mais próprio a figurar em páginas de histórias do Ancien Régime, deixa-nos entrever como Dª Lucilia estimulava as almas, tão-só com sua doce e elevada ação de presença, a praticar a virtude.
Olhar sereno, voz aveludada, sorriso luminoso
Nem de longe suas palavras eram desprovidas de significado e atração. Todavia, mais do que por elas, era especialmente através de suas atitudes e modos de ser que ela transmitia aos outros, sobretudo aos filhos, o desejo de fazer o bem, de trilhar as vias da perfeição moral. Símbolo vivo das virtudes por ela praticadas, sua presença impregnava, intensa e discretamente, de refrigério, luz e paz qualquer ambiente onde estivesse.
Seu olhar era sereno e de um castanho muito escuro; a luminosidade dos olhos era de uma intensidade cambiante, em função do quanto queria caracterizar o que dizia. Quando alegre, por apreciar a pessoa a quem se dirigia, seu brilho era meigo e envolvente. Se as circunstâncias exigiam posturas sérias, seu reluzir era profundo, carregado e definido. No movimento dos olhos, sempre compassado, revelando um interior sem efervescências, bem se refletia sua temperança.
Quem a conheceu jamais se esquecerá das suavidades harmônicas de sua voz melodiosa, modulada conforme o tema e o estado de espírito do interlocutor. As inflexões eram meigas, variadas e acolhedoras.
Todos esses aspectos da personalidade — olhar sereno, pequenos gestos, voz de timbre aveludado, sorriso luminoso — manifestavam o cerne de sua alma pervadida pela Fé, que habitava sempre um píncaro de considerações e perspectivas elevadas. Seu modo de ser defluía dessas alturas, conferindo-lhe uma atitude tal que tornava impossível, a quem quer que fosse, dela se aproximar sem muito respeitá-la.
Era notável, também, em Dª Lucilia, o fato de reunir em si duas qualidades aparentemente opostas: ao lado da elevação e retidão — a elevação não é senão uma forma excelente de retidão —, a doçura. Ela era elevada porque doce, e doce porque elevada. São duas qualidades que segundo o conceito moderno se excluem, pois uma pessoa afeita ao sublime afastaria os outros de si, tenderia ao severo e a se impor sem doçura. Ela era um exemplo do contrário.
Preparando os filhos para trilharem o caminho do dever
Plinio e Rosée, filhos de Dª Lucilia
Esse conjunto excelente de qualidades, Rosée e Plinio podiam apreciá-lo continuamente em sua mãe, em todas as circunstâncias da vida quotidiana, e nos mil cuidados dispensados por ela a fim de que tivessem a melhor formação.
Com efeito, na educação de seus filhos, não poupou Dª Lucilia nenhuma parcela de sua solicitude materna. Sendo que, a bondade, o afeto e a doçura, nela superabundantes, não excluíam as virtudes opostas a estas: a severidade, a intransigência em relação ao mal e o senso de justiça.
Quando se tratava do cumprimento do dever, por mais difícil que fosse, ou da rejeição ao mal, ela não cedia um milímetro, conservando embora toda a suavidade de trato. Nos horários, por exemplo, não permitia nenhuma mudança. Exigia as orações da manhã e da noite, de antes e depois das refeições, como também hora exata para deitar, levantar e fazer sesta.
Assim, numerosas obrigações diárias, observadas fielmente, iam preparando seus filhos para escolherem o caminho do dever, até mesmo nas grandes dificuldades da vida. Foi em razão do desejo de assim os educar que ela, quando esteve na Europa procurou uma governanta capaz de formá-los segundo esses princípios.
“Fräulein” Mathilde Heldmann
 Fräulein Mathilde Heldmann
Durante sua convalescença na Alemanha, Dª Lucilia pudera apreciar de perto algumas das qualidades do povo germânico, dignas de admiração, embora a diferença de temperamento e os modos de ser, bem diversos dos do brasileiro, tenham dado lugar a pequenos desacordos.
Ao observar o senso de ordem e disciplina dos alemães, a profunda noção que eles têm do cumprimento do dever, aliada a uma certa candura — muito evidente na música e em outros tipos de arte — bem como seu alto nível cultural, Dª Lucilia logo avaliou todo o proveito que seus filhos teriam se fossem educados por uma governanta dessa nacionalidade.
“Um dos maiores benefícios que mamãe nos fez foi contratar a Fräulein”, comentou anos depois Dr. Plinio. De fato, coube a esta última estimular e formar Plinio e Resée, com maestria, na arte de saber aproveitar todas as energias naturais com que Deus dota cada homem, qualidade que faz dos alemães povo tão laborioso. Como servira em várias casas nobres, falava frequentemente dos pupilos que tivera e contava suas recordações da Europa, o que ajudava a reforçar a atmosfera tradicional da educação em casa dos Ribeiro dos Santos.
 “Enquanto ela me vestia ou me arranjava — lembra Dr. Plinio — ia explicando:
“— Essa gente da nobreza é que sabe como se vive, como se pensa, como se veste. Viver como se deve, é viver como eles.
“Como professora, era estupenda. Aprimorou nosso francês, ensinou-nos inglês e, como é natural, também alemão, que falávamos fluentemente. Aliás, conversava conosco sempre nesta língua.
“O que de mais útil minha irmã e eu recebemos dela foi o método alemão”.
Contos atraentes, métodos enérgicos
Fräulein Mathilde quase não conversava com os adultos, passando o dia todo com as crianças. Narrava-lhes pequenos e significativos fatos, episódios históricos, e contos típicos germânicos. Dava-lhes a ler livrinhos infantis em língua alemã, muito propícios a desenvolver a inocência e o senso do maravilhoso. As ilustrações eram as bem conhecidas de um anãozinho — de barbas e cabelos brancos, com carapuça vermelha comprida e pompom branco na ponta — que vivia no meio do prado, junto a um enorme cogumelo, numa casinha de pão-de-mel. Ora eram historietas de um renomado educador e sacerdote bávaro (o Abade Schmid, autor de “Rosa de Tannenburg”), ora algo da mitologia teutônica, como Lohengrin, o herói que vogava pelas límpidas águas do Reno numa concha de cristal puxada por cisnes.
A par da candura sem igual do mundo infantil alemão, que a Fräulein se empenhava em transmitir-lhes, não faltavam métodos enérgicos, às vezes muito necessários, mas quão pouco do agrado das crianças. Tais métodos e os de Dª Lucilia não se compaginavam inteiramente. Na pedagogia da governante, a suavidade tinha uma presença diminuta. No entanto, como Dª Lucilia sabia bem qual era o papel da firmeza, deixava Fräulein Mathilde assim proceder, procurando depois colocar a nota da amenidade.
Por exemplo, em sua infância, Plinio tinha uma compleição franzina, e os médicos lhe recomendaram alimentar-se bem. Cônscia de seu dever, Fräulein Mathilde se empenhava em fazer cumprir as determinações da medicina, utilizando um método cuja eficácia indiscutível o futuro haveria de confirmar... Apertava, com seus dedos pontudos, as faces do menino e lhe dizia:
— Abra a boca!
Ele a abria, mal-humorado, e ela continuava:
— Não feche, porque será pior! Introduzia-lhe a colher na boca e Plinio, dada a placidez natural de seu temperamento, optava por comer a ter de enfrentar aquela tenacidade germânica. Fräulein Mathilde, muito esperta e inteligente, não demorou a compreender que para ser bem-sucedida com os pequenos, e sobretudo com Plinio, deveria ser muito lógica e demonstrativa.
Boas maneiras, afeto, disciplina, energia, lógica, eram elementos que iam levando as crianças a adquirir maturidade, de acordo com o respectivo desenvolvimento. Progresso este que Dª Lucilia acompanhava com imensa satisfação, e não menor reconhecimento à governanta alemã, pelo inestimável benefício que esta prestava a seus queridos filhos.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)