sábado, 22 de dezembro de 2012

Anelos de elevação, gentileza e bom trato

Sempre solícita e diligente em tudo que dizia respeito à educação de seus filhos, Dª Lucilia aproveitava-se de todas as circunstâncias favoráveis para fazê-los progredir na formação de suas personalidades, bem como na aquisição de valores morais que os tornassem aptos a enfrentar as vicissitudes desta vida. Nessa preparação tinha lugar de destaque a arte de conversar, na qual Dª Lucilia era exímia.
As crianças introduzidas no mundo dos adultos
Em sua residência da Alameda Barão de Limeira, costumava-se congregar grande número de parentes, sendo habitual transformar-se a ampla sala de jantar em palco de prolongados entretenimentos e debates, que se estendiam após as refeições, já de si demoradas.
Concluída a sobremesa, as pessoas se sentavam confortavelmente nos sofás e poltronas dispostos nos cantos da sala e, enquanto sorviam a pequenos goles um aromático cafezinho, prosseguiam a conversa. Esta, sempre animada, comportava com frequência o trato de temas elevados, feita ao mesmo tempo com naturalidade e distinção. Naquela época, as conversas desse tipo, apesar de espontâneas, obedeciam a regras não escritas em nenhum manual e constituíam uma verdadeira arte, que o aparecimento do cinema e, mais tarde, do rádio e da televisão, extinguiu por completo.
Saber manter presa a atenção dos interlocutores, conseguir interessá-los por um tema, fazê-los participar sem constrangimento do animado diálogo, eram habilidades de espírito que tinham seus campeões, cujo mérito era vivamente apreciado pelas pessoas cultas. A tal ponto que a história sempre registrou os grandes causeurs de cada época. Um deles foi um bisavô de Dª Lucilia, o Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, notável parlamentar do Segundo Reinado, não lhe tendo ficado atrás alguns de seus descendentes, que cultivaram e transmitiram o elevado dom da conversação.
A partir de certa idade, as crianças eram admitidas à mesa dos adultos, mas sem tomar parte na troca de ideias, a não ser quando alguma pergunta era dirigida a elas ou se lhes pedia uma opinião. Eram introduzidas desse modo ordenado no mundo das pessoas de mais idade, o que lhes ajudava a desde cedo tomar posição definida sobre as grandes questões do momento.
Aprendendo a julgar os fatos com Dª Lucilia
Naqueles pós-jantares, se alguém, folheando o jornal, encontrasse uma notícia interessante, lia-a em voz alta aos demais, contribuindo para alimentar a prosa. Dª Lucilia, porém, para melhor formar seus filhos, não se contentava em ouvi-la de modo passivo. Pelo contrário, procurava explicar-lhes a importância dos diversos fatos estampados nos diários. Quando ela reputava que algo tinha especial interesse, dizia em voz baixa:
— Meus filhos, prestem atenção no que foi comentado agora.
Habitualmente, as matérias tratadas pelos mais velhos iam variando e, ao discorrerem sobre acontecimentos relacionados com os assuntos pouco antes assinalados por Dª Lucilia, ela voltava a chamar a atenção dos pequenos, sempre em voz baixa:
— Meus filhos, isto também é muito importante.
E assim Dª Lucilia os educava, proporcionando-lhes de forma paulatina mais experiência e conhecimento, a fim de poderem relacionar os temas entre si e hierarquizá-los. Não tardou Plinio em perceber que os assuntos que Dª Lucilia mais comentava nem sempre eram os que saíam em manchete. Pelo contrário, não raras eram as notícias à primeira vista secundárias às quais ela dava mais importância. Isto despertou-lhe a curiosidade e o desejo de conhecer as razões desse modo de proceder. Sem muita dificuldade, concluiria ele: “Mamãe dá mais importância aos fatos que se relacionam com a Religião...”
Personagens históricos, modelos a imitar
Ao lado da arte de conversar, do interesse por narrações de histórias e de acontecimentos grandiosos do passado, bem como do senso do maravilhoso que Dª Lucilia procurava despertar nas crianças, ela se preocupava igualmente em lhes apresentar modelos que lhes pudessem orientar os passos. Foi assim que, em 1920, quando estiveram em visita a São Paulo o rei Alberto da Bélgica e sua consorte, a rainha Elizabeth, Dª Lucilia não perdeu a oportunidade de mostrá-los aos pequenos. Na ocasião, quando a comitiva dos soberanos passava pela Alameda Barão de Limeira, ela ressaltou aos olhos dos filhos a categoria, a distinção e o heroísmo daquele rei que, na Primeira Guerra Mundial, soubera defender com intrépida coragem seu país contra o invasor alemão. Fez notar também a postura correta da dama de honra da Soberana e comentou: “É assim que se deve ser!”
Era, portanto, explícita a intenção de apresentar aos filhos tais personagens históricos como modelos a imitar.
Última fantasia
Nesses seus preciosos desígnios de formação, Dª Lucilia idealizava para seus filhos (por ocasião dos inocentes festejos de carnaval daqueles tempos) fantasias que correspondiam aos modelos a eles propostos por ela.
Plinio e Rosée, entretanto, no início da década de 20, já iam abandonando a meninice. As tragédias e desilusões da vida estavam cada vez mais presentes aos olhos dos jovenzinhos, não lhes cabendo mais algo que não condissesse com a realidade, como eram tais disfarces.
Todavia, estando a família em Águas da Prata na época do carnaval, houve uma festa no hotel em que se hospedavam, e se tornava um tanto pesado e desgracioso, ante parentes e conhecidos, não participarem da alegria geral. Dª Lucilia então, habilidosamente, improvisou para seus filhos trajes típicos espanhóis. Seria a última vez que Plinio vestiria uma fantasia. Como nas ocasiões anteriores, ela soube dar-lhes um caráter muito mais real que ilusório.
Em consonância com aquela formação que lhes proporcionava, em ordem a admirar a tradição, ela procurava sempre, nessas circunstâncias, exprimir em trajes os valores de uma nação ou de um tipo humano determinado. No caso concreto, o que ela procurava incutir nos filhos de forma bem autêntica era a Espanha católica, das épicas touradas, dos grandes santuários e dos guerreiros cristãos.
“Ah! Agora o mundo entrou em seu verdadeiro eixo...”
É por essa época, em que os trens se mostravam ainda vagarosos e pouco estáveis, que um susto, seguido de aflição, não só marcará a pré-adolescência de Plinio, como deixará novamente transparecer o entranhado amor dele por sua querida mãe.
Dª Lucilia se encontrava em Águas da Prata. Iam ter com ela Dr. João Paulo, o filho e a governante deste. Ora, durante o percurso de trem, como acontecia por vezes, Plinio sentiu enjoo. Assim, quando de uma parada na estação de Campo Limpo, antes de Campinas, pediu licença ao pai para sair e tomar ar. Desceu à plataforma e pôs-se a percorrê-la tranquilamente de uma ponta a outra.
De repente ouviu um apito e notou que o trem se punha em movimento. Correu e, quando ia saltar, sentiu que decididas mãos o seguravam vigorosamente por trás, impedindo-o de realizar seu intento. Tratava-se da Fräulein que, muito perspicaz, também descera para não perdê-lo de vista.
— E agora, o que vamos fazer? — perguntou ele.
— Não tem nada. Vamos nos encontrar com seu pai em Campinas.
— Mas, como papai vai tomar contato conosco?
— Isto é muito simples. Vou falar com o chefe da estação. Ele passará um telegrama para a estação de Campinas, pedindo que avisem “o senhor que procura um filho, que o menino está em Campo Limpo e partirá para lá no próximo trem de tantas horas”.
Plinio pensou: “Há o risco de papai adormecer e não perceber o trem passar por Campinas”. Mas isto não se deu. Ao chegarem a Campinas, encontraram Dr. João Paulo tão satisfeito por ver resolvido o problema, que não continha seu afável e generoso riso pernambucano.
Passaram a noite num hotel daquela cidade e no dia seguinte Plinio se encontrava entre os braços de sua mãe. De forma instantânea configurou-se em seu interior a ideia: “Ah! Agora o mundo entrou em seu verdadeiro eixo...”
Pêsames pela morte da Princesa Isabel
Ao longo dos anos, desde 1912, quando se conheceram em Paris, a mãe de Dª Lucilia manteve assíduo contato epistolar com a Princesa Isabel e com a dama de honra desta, a baronesa de Muritiba. Evocativas de outras eras, algumas dessas missivas foram cuidadosamente conservadas pela filha, possibilitando-nos degustar agora um pouco daquele elevado relacionamento.
As cartas endereçadas à matriarca dos Ribeiro dos Santos, em geral lhe chegavam às mãos no final do almoço. Era a hora em que Luís, o copeiro, como de estilo, as apresentava a Dona Gabriela numa salva de prata.
Nessas ocasiões era comum estarem à mesa vários membros da família, que com indisfarçável interesse ouviam, por exemplo, Dona Gabriela anunciar: “Acaba de chegar uma carta da Princesa Isabel...”, e ler em voz alta as palavras da imperial signatária. Por vezes, como no caso a seguir, tratava-se de um simples postal:
Minha querida Dª Gabriela
Muitíssimo lhe agradeço seu telegrama por ocasião de nosso grande dia 13 de Maio. A baronesa de Muritiba lhe dará noticias de nós todos.
Sua muito afeiçoada
Isabel Condessa d’Eu Boulogne-sur-Seine, 4 de junho de 1917
Nesses momentos todos prestavam atenção, e era patente que seus espíritos ficavam tomados de um passageiro enlevo, do qual brotavam comentários elogiosos.
Próximo ao fim daquele ano, chegou a notícia do falecimento da Princesa Isabel, que encheu de tristeza os corações, em especial o de Dª Lucilia. Sua mãe redigiu um telegrama de pêsames para o Conde d’Eu e demais membros da Família Imperial: Queira Vossa Alteza aceitar...
Plinio, que fazia sozinho, havia já algum tempo, suas incursões ao centro da cidade, foi incumbido de passar esse telegrama. Décadas depois, ele ainda se lembraria da reação da funcionária ao ler as primeiras palavras da mensagem. Ela se voltou para uma colega e disse:
— Fulana, venha aqui depressa ver que beleza!... Veja que coisa linda!
Tratava-se presumivelmente de uma pessoa em dia com as modas e costumes mais avançados, e que, naquele instante, fora tocada por uma brisa de tradição. Aquelas simples palavras de pêsames dirigidas a um Príncipe constituíam um símbolo dos tempos passados, que naqueles já tão modificados anos ainda exerciam sua benéfica influência.
Não nos é difícil imaginar o apreço com que Dª Lucilia deve ter acompanhado tal correspondência, tão adequada a seus anelos de um mundo onde só reinassem benquerença, gentileza, elevação e bom trato...
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Lembranças e riquezas de outrora


Já vimos em outros artigos como Dª Lucilia usava seu esplêndido dom de narradora para, por meio de histórias dos antepassados, educar seus filhos no desejo de imitar os bons valores familiares. Entre seus temas prediletos estavam certos episódios ocorridos no Brasil imperial, que lhe traziam saudosas recordações. Um exemplo.
 O avô de Dª Lucilia ensina a Imperatriz a dançar
Dª Teresa Cristina, sempre boa esposa e mãe exemplar, atraiu as afetuosas atenções de Dª Lucilia por causa de um infortúnio que a acompanhara desde os seus primeiros dias.
Com tocante bondade, contava Dª Lucilia que o Barão de Cairu fora enviado por D. Pedro II à Europa, a fim de lhe escolher uma esposa. O Imperador, como é natural, desejava que entre outros predicados da futura Imperatriz estivesse a beleza. O barão entrou em contato com representantes de várias cortes europeias, à procura de uma princesa ideal, e como não havia ainda chegado a era da fotografia, mandava ao Imperador medalhões em esmalte, reproduzindo as fisionomias das pretendentes, para que o soberano escolhesse a noiva.
Quando chegou às mãos do Imperador o retrato da Princesa Teresa Cristina, filha do Rei das Duas Sicílias, sua formosura o encantou desde logo, e ele decidiu casar-se com ela. O matrimônio realizou-se por procuração e o irmão da noiva, o Príncipe Leopoldo de Bourbon Parma, conde de Siracusa, representou o augusto consorte na cerimônia. Pouco depois a princesa embarcou para o Brasil.
Logo que o navio aportou no Rio de Janeiro, D. Pedro II, acompanhado da corte, foi a bordo receber, com toda a pompa, a esposa. Ao vê-la de longe caminhando em direção a ele, o monarca notou desde logo que ela mancava, e ao lograr discernir-lhe os traços do rosto, perdeu a fala. Em nada se parecia com a fisionomia do medalhão!
Pelo protocolo, uma vez chegada diante dele, ela devia fazer uma reverência, a ponto de quase se ajoelhar. E, por sua vez, ele deveria segurá-la e beijar-lhe a mão. D. Pedro II, de tão aturdido, deixou que Dª Teresa Cristina tocasse com o joelho no chão...
Naqueles bons tempos de honra e de compromisso sério, um matrimônio realizado, ainda que simplesmente por procuração, não mais era desfeito. Principalmente se os consortes fossem de Casas Reais. Assim, D. Pedro II se conformou com o irremediável drama que se estabelecera na vida de ambos. Por seu lado, quanto a Imperatriz desejaria que seu esposo jamais houvera tido aquela desilusão!
O sofrimento de Dª Teresa Cristina crescia de intensidade por ocasião das festas na Corte, pois, devido a seu defeito físico, julgava que lhe era impossível dançar, não podendo portanto ser a alma daquelas solenidades sociais.
Numa noite de baile no Palácio Imperial, Dr. Gabriel — avô de Dª Lucilia — então deputado por São Paulo, ao percorrer aquelas belas e luxuosas dependências, encontrou Dª Teresa Cristina sozinha, meio tristonha, sentada no sofá de uma pequena sala, enquanto no salão vizinho todos participavam alegremente da dança, ao som de melodiosa orquestra.
Ao vê-la ali isolada, dela teve pena. Aproximou-se, fez uma reverência, ela lhe deu a mão a beijar e o convidou a sentar-se numa cadeira ao lado. Com o incomparável dom da conversa que possuíam os Ribeiro dos Santos, em pouco tempo Dr. Gabriel proporcionou à Imperatriz a oportunidade de pensar noutros temas que não seus aborrecimentos. Em determinado momento, ele, que já observara como a soberana caminhava, surpreendeu-a com uma sugestão:
— Se Vossa Majestade me der licença, posso tentar ensinar-lhe um modo de dançar...
Dª Teresa Cristina, a princípio, não quis acreditar que fosse possível isso, mas Dr. Gabriel insistiu com muito respeito e lhe propôs fazer, naquela sala, uma experiência. A Imperatriz aceitou e ensaiou uns passos de dança. Ele ia explicando como apoiar com certo jeito o pé no chão, a fim de contornar a dificuldade, e ela rapidamente aprendeu como devia proceder. Ao perceber que já estava bem segura, Dª Teresa Cristina sugeriu a Dr. Gabriel entrarem no salão e dançarem na presença de toda a corte. Qual não foi a agradável surpresa dos presentes ao verem a Imperatriz, com toda a normalidade, constituir com Dr. Gabriel o par por excelência daquela noite de gala!
Dª Lucilia, que já era mocinha quando se passaram semelhantes acontecimentos, sabia ilustrar a história da família Imperial através de pequenos fatos, como o narrado a seguir.
A almofadinha de alfinetes da Imperatriz
Certo dia Dª Lucilia esteve na residência de uma senhora que possuía, como era costume nas boas casas de outrora, em certo salão da casa uma vitrine com bibelots. Depois de os ter elogiado, a visitante comentou:
— Perdoe-me a pergunta, mas por que razão se encontra em meio a objetos tão bonitos essa almofadazinha tão comum?
A dona da casa respondeu tratar-se de uma recordação recebida da viúva de um ex-Presidente da República, senhora que, estando para falecer, lha entregou revelando sua procedência.
Quando foi proclamada a República, após a ocupação do Palácio Imperial por tropas republicanas, as esposas dos chefes vitoriosos tiveram curiosidade de conhecê-lo por dentro. Foi-lhes fácil obter autorização do governo provisório para a visita.
Ao entrarem, o Palácio jazia completamente deserto. Percorreram um a um os vários salões, a Sala do Trono, os apartamentos. À medida que caminhavam, iam sentindo uma espécie de aperto na garganta, uma crescente emoção as envolvia. Por fim, chegaram ao quarto dos soberanos. Estava tudo como se há pouco tivessem saído. Via-se que o abandonaram às pressas, deixando em cima das cadeiras algumas roupas de que não mais necessitariam, além de vários objetos esparsos. Esse quadro causava a sensação de haverem eles recém passado por ali.
As senhoras se impressionaram profundamente. Uma delas viu, em cima da mesa de toilette da Imperatriz, singelo objeto: uma almofadinha de seda, preenchida com ervas, que servia para as senhoras fixarem alfinetes. Notando que aquilo não tinha nenhum valor econômico e querendo a todo custo levar uma recordação da Residência Imperial, aproveitou-se de um momento em que as amigas não estavam prestando atenção, pegou a pequenina almofada e a guardou em sua bolsa. Durante décadas não revelaria a ninguém esse gesto.
Quando sentiu a morte se aproximar, ao receber a visita de uma amiga, entregou-lhe aquele objeto, certa de que ela também lhe daria o devido apreço.
Riquezas da tranquilidade de outrora
Fatos como esse da vida passada constituíam com frequência tema de conversa para Dª Lucilia e os seus, numa feliz época em que a inexistência dos modernos meios de comunicação deixava que, vagarosamente, o tempo corresse permitindo melhor se degustar uma vida tranquila, confortável e serena.
As famílias, conservando ainda traços patriarcais, formavam pequenos mundos cheios de vitalidade que, de algum modo, bastavam-se a si próprios. Seus numerosos membros conviviam muito entre si, pois se viajava pouco, e a vida familiar girava em geral em torno da casa do respectivo “patriarca”. Este, por vezes, chegava a reunir à sua volta gerações sucessivas de descendentes; mútuo respeito, cordialidade e atenção eram as notas tônicas do relacionamento entre eles.
Nesse ambiente, coberto pela bênção de Deus, a serenidade fazia uma das alegrias da vida, a tal ponto que, ao se despedirem as pessoas, antes de se recolherem para dormir, não era raro ouvir-se:
— Deus lhe dê uma noite tranquila.
Não era diferente a existência no palacete Ribeiro dos Santos. Por volta das cinco e meia da tarde os homens retornavam do trabalho e ficavam no living da casa, ou então no terraço, lendo o jornal e conversando distendidamente sobre tudo e sobre nada, enquanto desfrutavam a fresca brisa do entardecer.
Dr. João Paulo, esposo de Dª Lucilia, junto com um cunhado ou algum irmão de sua sogra, saíam a passear a pé, após a refeição, enquanto as senhoras iam fazer tricot. Ao voltarem os homens, ficavam todos ainda longo tempo em conversa na sala, até que o relógio fazia soar lentamente dez badaladas, lembrando que o serão caminhava para seu fim.
Que monotonia! será alguém levado a pensar, e talvez com certa razão. Porém, era essa mesma calma que proporcionava ao espírito humano condições para a reflexão, para o operar do pensamento, do qual brotariam as grandes realizações. Um dos frutos dessa tranquilidade foi sendo destilado ao longo dos séculos, e resultou em precioso licor, que os homens civilizados degustavam agradados, e cujo segredo o infeliz habitante da babel contemporânea perdeu de todo: a arte de conversar.
Nesta habilidade também se distinguiu Dª Lucilia, que a herdou de seus maiores e a soube cultivar de um modo tal que, ainda na extrema ancianidade, sabia como ninguém cativar seus enlevados ouvintes...
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Estímulos e alegrias na formação dos filhos

Confiando nos exímios préstimos de Fräulein Mathilde (a governanta que trouxera da Europa), Dª Lucilia deixava a cargo desta boa parte da responsabilidade no tocante aos estudos de seus filhos. Se Plinio preparava as lições e fazia os exercícios prescritos pelos professores, se levava cada dia para o colégio os livros correspondentes às matérias, se Rosée estudava as lições de piano... todas essas pequenas providências ficavam por conta da meticulosidade germânica, que era exercida com precisão.
Assim, por exemplo, nas tardes de quinta-feira — período de folga no Colégio São Luís — quando os meninos estavam despreocupados, brincando no jardim, desfrutando da alegria de um dia sem aulas, a Fräulein Mathilde ia verificar se os cadernos de Plinio estavam em ordem e se os deveres tinham sido cumpridos. Quando descobria algum “esquecimento”, procurava o faltoso:
 — Pliniô! Você se lembra que tem três equaciones de álgebra para resolver ainda hoje, e apresentar amanhã no São Luís?
Por trás da pergunta da Fräulein o menino sentia o peso da autoridade de Dª Lucilia, que não transigia com relaxamentos nos estudos. Por outro lado, via como isso era razoável. E conformado lá ia resolver a complicada equação: a2+2ab+b2=(a+b)2...
Em compensação, a afabilidade com que Dª Lucilia o chamava para saborear o suculento lanche do fim dos estudos, fazia-lhe degustar melhor o bem-estar do dever cumprido, da consciência tranquila e da vida em estado de graça.
Relíquias do passado
Dessa época em que Plinio estudava no Colégio São Luís, Dª Lucilia guardou consigo, até o fim de seus dias, inúmeras recordações, como santinhos distribuídos pelos professores, boletins escolares, medalhas, diplomas, e até mesmo uma ou outra redação. Estas bem ilustram a elevação de espírito com que seu filho fora educado por ela, pois pelos frutos se conhece a árvore.
Eis uma das composições, escrita por ele em 1919, que atravessou as décadas e chegou até nós:
Monótono e imenso, o deserto do Sahara só é entrecortado por pequenos rios, e também lá existem os oásis, único refúgio do viajante contra sede e fome.
O poderoso monarca da Abissínia atravessava um desses extensos areais, e de repente, viu uma palmeira, em cuja folha resplandecia o orvalho, brilhante da natureza, e o rei disse: “vinde ó gota adornar meu turbante”, mas a gota não veio.
Tempos depois, passava um cavaleiro, era cruzado, e ia defender os cristãos, e o cavaleiro, morto de sede, viu a gota, chamou-a e ela caiu-lhe, a refrescá-lo, nos seus lábios. Caiu porque era aquele, que ia defender a religião de um Ente supremo que muitos homens não conhecem, mas cuja glória a natureza canta.
Plinio Corrêa de Oliveira
 “Só três medalhas, meu filho?”
Dª Lucilia sempre se empenhou em transmitir seu constante desejo de perfeição a seus filhos.
No fim do ano letivo, os padres jesuítas do Colégio São Luís organizavam uma solene sessão, para distribuir prêmios aos alunos mais bem classificados. Para ela eram convidados os pais dos meninos e certas pessoas de destaque na sociedade, chegando às vezes a estar presente o próprio Governador do Estado, por frequentar esse colégio a flor e a nata de São Paulo.
O ato incluía peças de teatro, apresentações musicais, declamações, discursos, feitos pelos próprios alunos, devidamente orientados pelos padres. Chegava por fim o momento da entrega das medalhas. Para cada matéria havia três categorias diferentes: a de ouro, a de prata e a de bronze. Ao ouvir seu nome citado, o laureado subia ao palanque, e o próprio pai ou mãe lhe colocava a medalha no peito. Às vezes, para honrar alunos mais destacados, alguma autoridade o fazia.
Toda aquela aparatosa cerimônia estimulava altamente os meninos a se aplicarem durante o ano, a fim de serem louvados de público ante seus conhecidos.
Houve um ano, porém, em que Dª Lucilia, por estar doente, não pôde comparecer à solenidade. Quando Plinio voltou para casa, foi logo até o quarto dela, encontrando-a recostada na chaise longue. Vestido ainda a rigor e com as medalhas no peito, recebeu os abraços e beijos dela, que logo em seguida o afastou um pouco para vê-lo melhor, e lhe perguntou com certo tom de desapontamento:
— Mas só três medalhas, meu filho?!
— Mas, mamãe — respondeu ele — uma é de ouro! No ano passado eram quatro, mas todas de prata.
Ela quis então saber a qual das matérias correspondia a de ouro. A explicação deixou-a duplamente satisfeita: pelo prêmio e pela matéria. Seu filho havia conquistado o primeiro lugar em francês. Abraçou-o então de novo, com redobrado afeto.
Plinio se aprofunda na cultura francesa
Como admiradora da cultura francesa, Dª Lucilia tinha particular satisfação em ver Plinio enveredar pelo mesmo caminho. Conforme vimos anteriormente, assinava para Rosée a Semaine de Suzette (com as deliciosas histórias da camponesa Bécassine), e ela própria lia L’Université des Annales, cuja coleção guardava longe do alcance das crianças, num armário do escritório de Dr. João Paulo.
Por essa época, o médico da família diagnosticou em Plinio um incipiente desvio da coluna, aconselhando-lhe repouso diário de uma hora sobre a superfície reta e dura do solo. Dª Lucilia, maternalmente irredutível, aplicou a receita à letra, reservando para isto a hora da sesta. E para evitar a seu filho a tentação de passar para a cama, escolheu o escritório de Dr. João Paulo como local do descanso.
Chegada a hora, estendia um lençol sobre o assoalho, encostava as venezianas e fazia o menino se deitar. Ele achava tudo isto aborrecidíssimo. Não dormia bem e, por outro lado, não tinha nada para se entreter. Até que um dia casualmente pegou uma das revistas da coleção de L’Université des Annales e se embrenhou pelas luminosas veredas da história.
Se viesse a ter conhecimento disso, Dª Lucilia não aprovaria essas leituras. Entretanto foi através delas que seu filho aprofundou-se no fascinante universo da cultura francesa. Aliás, modas, estilos arquitetônicos, literatura, teatro, culinária, tudo na São Paulo de então exalava ainda o requintado aroma francês, a ponto de nas boas famílias se falar frequentemente à mesa nessa língua, sobretudo quando se desejava que criados ou crianças não entendessem a conversa.
Uma atriz que não se deixou dobrar pelo infortúnio
Fizera história a vinda ao Brasil de uma atriz francesa de grande fama mundial: Sarah Bernhardt. Dª Lucilia gostava de contar as peripécias da passagem dela por nosso País, sem perder ocasião de tirar lições do evento, úteis à formação de seus filhos. Fazia-o nestes termos:
No teatro ninguém havia mais célebre do que ela. Favorecida de todos os lados, fez uma excursão aos Estados Unidos, onde ganhou rios de dinheiro. Na França, sempre representava na “Comédie Française” e no “Opéra”, também com altos proventos. Mas ela não se satisfazia e gastava loucamente. Quando se entra pelo caminho da vaidade e da ostentação, não há o que chegue para saciar os caprichos.
Então, teve a ideia de vir à América do Sul. No Teatro Municipal do Rio de Janeiro, merecidamente famoso por sua riqueza, representou uma peça durante a qual, em certo momento, devia aparecer sobre um alto muro, jogando-se depois para o outro lado deste ao chão... Estava combinado que no lugar onde cairia estariam colocados vários colchões. Ela não conhecia o Brasil... Sem tomar a cautela de olhar para baixo, atirou-se... Ouviu-se então um grito lancinante que sobressaltou todo o teatro. Por esquecimento de um funcionário, os colchões não estavam no local combinado, e ela quebrou a perna.
Os médicos, com os parcos recursos daquele tempo, viram-se na contingência de lhe amputar o membro ferido. E nesse estado voltou para a Europa. Bem se pode imaginar a tragédia que esse acidente representou para ela: cair, de repente, dos galarins da fama para uma cama de hospital, condenada a não mais poder representar, a não mais ser aplaudida, admirada, quase idolatrada por seu magnífico talento.
No entanto ela não se deixou dobrar pelo infortúnio. Os médicos de Paris lhe colocaram uma perna artificial, e à custa de muito esforço conseguiu aprender a andar tão bem que não se lhe notava a deficiência. Quando voltou ao palco do “Opéra” pela primeira vez, caminhando elegantemente como se nada tivesse acontecido, o público entusiasmado se levantou e a saudou com uma prolongada e merecida ovação.
O fanatismo por Sarah Bernhardt era tal que, quando ela esteve aqui em São Paulo, os estudantes puxavam a carruagem dela, sentindo-se honrados com isso. Quando visitou a Faculdade de Direito, receberam-na jogando suas capas ao chão, formando, desse modo, uma espécie de tapete para ela passar.
Dª Lucilia tinha pena da famosa atriz pela tragédia ocorrida e o deixava transparecer em sua narração. De outro lado, não se esquecia de ressaltar o mérito dela ao enfrentar heroicamente a adversidade, o que constituía um belo exemplo a ser admirado e imitado por Rosée e Plinio.
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João. S. Clá Dias.)