quarta-feira, 9 de novembro de 2016

“Um agrado de Plinio”

À semelhança das senhoras de seu tempo, mamãe usava uma pulseira de marfim com incrustações, vinda da Europa. E eu, aos doze ou treze anos, brincando com o braço dela — não sem alguma brutalidade inerente aos meninos que vão se tornando mais velhos —, girava a pulseira, e, sendo o marfim um material muito duro, machucava-a um pouco. Não se tratava de nada muito grave, mas, sendo a pulseira muito dura, isso fez uma mancha escura num ponto de seu braço. E ela não se queixou de nada; em vez de se zangar — porque uma mancha dessas é feia, uma senhora não gosta de ter isso —, ela ficou encantada.
Certo dia, quando almoçávamos em casa de minha avó, onde morávamos, uma pessoa da família perguntou para ela:
— Lucilia, o que é esta machucadura em seu braço?
Ela olhou — para ter tempo de pensar — e depois disse com muita naturalidade:
— Isso foi um agrado do Plinio.
Foi uma gargalhada geral na mesa, gargalhada afetuosa, mas que mexia com ela. Era tal o encanto dela por mim, que até quando eu, involuntariamente, a machucava, ela ficava maravilhada.
Mesmo quando eu era importuno, a mansidão de mamãe a fazia ficar ainda mais encantada; e isso me deixava enlevadíssimo por ela.

A harmonia afetuosa e grandiosa que ela exprimia, fazia-me pensar: “Ela é formidável, acima de qualquer pessoa que eu conheço. Eu vejo tantas pessoas em torno dela, pessoas muito boas, mas ninguém tem essa virtude extraordinária, essa harmonia de personalidade, essa lógica e esse afeto contínuo que ela tem.”

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Os nobres deveres da viuvez

A partir de 27 de janeiro de 1961, o trato feito por Dª Lucilia com o esposo, de rezar uma Ave-Maria diante do pôr-do-sol, entraria em vigor. Alguns dias após um derrame cerebral, Dr. João Paulo, então com 87 anos de idade, rendeu sua alma a Deus.
Embora Dª Lucilia estivesse de há muito com seu espírito preparado para a eventualidade da morte do esposo, a rapidez do desfecho a abalou. Mas era tal a sua paz de espírito, e tão grande sua confiança na Providência que, sem deixar de demonstrar natural tristeza e dor, não perdeu a serenidade em nenhum momento, guardando um aplomb admirável.
Aplomb, isto é, o estar de pé com aprumo, seguindo o excelso exemplo de Nossa Senhora aos pés da Cruz, era sua constante atitude diante da dor.
Uma vez falecido seu esposo, Dª Lucilia mudou alguns hábitos de acordo com sua nova situação. Guardou luto até o fim de seus dias, inclusive deixando de usar jóias pelo espaço de um ano, tempo acostumado.
De início, Dr. Plinio achou tudo isso natural, mas, passado certo tempo, perguntou-lhe:
— Mãezinha, a senhora deixou de usar seu colar de pérolas? (Tratava-se de uma jóia que ela usava diariamente.)
— Meu filho, eu não o usarei mais. Uma senhora só se adorna para seu esposo.
De fato nunca mais usou o colar, tão de seu gosto, por onde se vê com que despretensão e desapego, ao longo de toda sua vida, utilizara suas belas jóias.
Poucos meses depois, Dr. Plinio convidou sua mãe a sair com ele para uma visita, certo de que ela ficaria agradada e se distrairia um pouco. A resposta dela não deixou de surpreendê-lo, pela seriedade demonstrada no cumprimento dos deveres para com o falecido esposo.
— Eu vou — respondeu com sua firme mansidão — mas depois de ter visitado, uma vez pelo menos, a sepultura de seu pai. Antes disso, não farei visita alguma.

De fato, ela nunca mais saiu para visitas, pois não lhe foi possível ir ao jazigo de seu esposo. Naquela época não se permitia a entrada de automóveis no Cemitério da Consolação. Já tendo muita dificuldade de locomoção, não era podia Dª Lucilia percorrer considerável distância a pé, o que tornou impraticável a realização de seu desejo.

sábado, 8 de outubro de 2016

Um trato para a eternidade

Certo dia estavam Dª Lucilia e seu esposo na sala de jantar, contemplando as belezas do entardecer, que na cidade de São Paulo se reveste com frequência de esplêndidos coloridos. Mas ela não se limitava a apreciar do ponto de vista natural a vivacidade cambiante das cores ígneas com as quais o sol, em seu declínio lento e majestoso, ia pintando os tufos de nuvens, na aparência espalhados no céu por mãos invisíveis. Seu espírito logo se elevava a considerações de ordem sobrenatural. E essa cena lhe trouxe à mente quão próximos estavam, ela e seu esposo, do ocaso da vida terrena e da aurora da eternidade. Fez-lhe então a seguinte proposta:
— João Paulo, vamos fazer um trato?... Já estamos idosos e não sabemos quem de nós vai ficar só. Aquele que restar reza pelo outro uma Ave-Maria, todas as tardes, diante do pôr-do-sol.

Dr. João Paulo aquiesceu. Seria ele o grande beneficiado desse acordo, pois em breve terminariam seus dias, e ela cumpriria fielmente a promessa até o fim de sua vida.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Harmoniosa vida conjugal

Havendo acompanhado por mais de 50 anos o convívio de pais, Dr. Plinio podia dar o testemunho de nunca haver presenciado uma desavença entre eles. Nunca uma palavra áspera ou um levantar de voz, nem tampouco uma bravata ou um gesto de mal-humor.
 “Dr. João Paulo era o mais pacífico e cordato dos homens”, contava Dr. Plinio, “e Dª Lucilia, uma senhora boníssima. Ele morreu com 84 anos e ela, com 92. Portanto, longa vida conjugal.
“Claro, às vezes eles entravam em desacordo e discutiam. Ambos eram pessoas inteligentes, e apresentavam argumentos apertados de parte a parte. Porém, o máximo que acontecia, quando meu pai ficava com os nervos um pouco mais tomados, era ele dizer para mamãe: ‘Senhora, mas esta opinião?!’ Parece que é comum no Nordeste o marido zangado chamar a esposa de ‘senhora’. Não era uma atitude de desaforo, mas quase uma cortesia.
“Por sua vez, mamãe tinha um modo característico de levantar a cabeça e contestar. Usava um penteado em forma de coque, e um certo jeito de movê-lo era sinal de desacordo. Manifestando-se às vezes dessa maneira, ela dizia: ‘Não, João Paulo, eu não acho isso...’
“Acima dessas minúsculas e inevitáveis desavenças, mamãe devotava a seu marido o respeito e a obediência que se deve esperar de uma esposa verdadeiramente católica, de maneira que ela nunca teria feito nada que fosse do desagrado dele.
“A única circunstância em que ele se impacientava — para o bem de mamãe — era quando ela, à medida que foi avançando em idade, em vez de se deitar, ficava rezando até altas horas da madrugada. Como pernambucano, habituado a se recolher cedo, papai assustava-se com aqueles horários tardios, julgando-os prejudiciais à saúde da esposa. Então, quando o relógio batia uma hora, uma e meia da manhã, ele às vezes se levantava da cama e se dirigia até a sala onde ela se encontrava imersa nas suas orações.
“Cena por mim presenciada em diversas ocasiões: papai se detinha um pouco atrás dela; mamãe percebia a presença dele mas não se voltava, continuando a rezar. Ele dizia:
“— O que é isto, senhora?! Já são quase duas horas!
“Ela não se importava, fazia-lhe um pequeno sinal, amável, como quem diz: “Já estou indo”, mas acabava por rezar tudo o que ela queria...

“Às vezes ele retornava, insistia, e mamãe então encerrava suas orações, acompanhando-o para o quarto.”
Continua

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Profundo senso do dever doméstico

Continuação do post anterior
No âmbito da vida de família, Dª Lucilia considerava seu dever proporcionar bem- estar, alegria e elevação de alma ao ambiente para seu marido, e formar os filhos de maneira a serem perfeitos católicos e cumprirem sua missão nesta terra. Para isto, devia marcar o lar doméstico com uma afabilidade e um afeto pelos quais ele se tornasse atraente, e fosse um meio de disputar a influência aos antros de perdição. Além disso, habituar os filhos que tivessem tomado essa tradição, a formar depois as respectivas proles na mesma escola, perpetuando tais costumes ao longo das gerações, porque assim se devia viver.
Ela era recolhida, tranquila, forte e meiga em todas as circunstâncias da vida. Estas podiam mudar, e ela mantinha sempre idêntico estado de espírito, por trás do qual palpitava seu entranhado senso do dever.
Profundamente católica, Dª Lucilia não entendia que a finalidade do homem neste mundo fosse conquistar honras, prazeres, glórias e dinheiro, para se deleitar o mais possível e depois estourar de morto. Havia, sem dúvida, satisfações e tristezas no existir humano. Devia-se, até, tirar partido dos prazeres lícitos para suportar as tristezas. Para ela, porém, a vida era antes de tudo um dever a cumprir, em ordem a formar a própria alma segundo os desígnios de Deus. Ou seja, com vistas à santificação e à salvação eterna.

Dever que ela procurou realizar, de forma exímia, em sua condição de esposa modelar e de extremosa mãe.
Continua

sábado, 23 de julho de 2016

Deveres de esposa

No ano de 1905, o Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, conhecido advogado em São Paulo, que havia feito boa fortuna, preocupava-se com o futuro de suas três filhas solteiras. Resolveu ter uma conversa séria com a mais velha delas, Lucilia, então com 29 anos.
— Minha filha, se eu morrer sem você se casar, tocar-lhe-á como herança uma boa quantidade de dinheiro. Você, porém, irá ficando madura, e o casamento se tornará cada vez mais difícil. Ora, aqui há esse moço que está trabalhando comigo, o Dr. João Paulo Corrêa de Oliveira, que manifesta o desejo de se casar com você. Não dou ordem, mas aconselho que você se case. Ele tem várias qualidades, entre as quais a de pertencer a uma ilustre família de Pernambuco. É sobrinho do Conselheiro João Alfredo (homem famoso naquele tempo, pois fora presidente do Conselho de Ministros do Império, e assinara a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888). Terceiro, é de uma inteligência invulgar, e, portanto, talvez faça fortuna. Insisto, pois, na recomendação de que você aceite a proposta dele.
— Acho que ele é uma pessoa distinta, não tem dúvida, mas eu preciso pensar melhor — respondeu Lucilia.
Dr. Antônio ainda ponderou que o dote a ser levado por ela seria suficiente para o casal encaminhar a vida. Ele era advogado, podia sair-se bem na carreira, e, para ela, casar seria mesmo menos inconveniente do que permanecer solteira.
— Mas penso que talvez fosse melhor eu me tornar freira — volveu Lucilia.
— Bom, talvez... Mas pense bem no que irá fazer. É verdade que casamento traz desilusões, contudo você verá que a vida religiosa as traz igualmente. Reflita com mais vagar sobre o que você deseja antes de decidir.
Lucilia, que nutria um extraordinário encanto e enlevo pelo pai, na mesma hora lhe respondeu:
— Papai, eu sigo cegamente o rumo que o senhor me indicar. O que é mesmo que o senhor aconselha?
— Dado você como é, e como me parece ser o Dr. João Paulo, acho mais acertado casar com ele.
— Está bom, farei conforme os desejos do senhor.
Matrimônio encarado com limpidez de olhar
E a jovem Lucilia cumpriu a palavra. Tornou-se noiva de Dr. João Paulo, e o casamento se realizou pouco tempo depois.
Desde o início, Dª Lucilia encarou o estado matrimonial com saliente candura e limpidez de olhar e, ao mesmo tempo, com elevação de espírito, colocava-se sob o amparo e proteção da Santíssima Virgem para o perfeito cumprimento de seus deveres de esposa e mãe.

 A vida de dona de casa dará maior profundidade ao seu espírito sobrenatural, que tomará contornos mais definidos à medida que problemas, aflições e achaques se multiplicarem. Fiel a seu antigo costume, juntava as mãos, e com os olhos postos no Sagrado Coração de Jesus, implorava, por meio de sua querida Madrinha, Nossa Senhora da Penha, amparo e solução.
Continua

sábado, 11 de junho de 2016

Carinho extremo...

À primeira vista, dir-se-ia que veneração e ternura são incompatíveis, mas, na realidade, tais sentimentos se confundem a propósito do carinho: sentindo-se objeto do carinho materno, o filho deseja retribuí-lo.
A veneração é a manifestação do grande respeito que um ser inferior presta a um superior.
Em princípio, o superior tem o direito de julgar e punir o inferior. A mãe, embora anciã e sem forças, continua tendo o poder e o direito de castigar seu filho maior de idade. Para um filho que sabe o que é uma mãe, e uma mãe que entende o significado deste título — portanto é mãe no sentido próprio, direto e pleno da palavra —, uma censura, um conselho, um elogio feito pela mãe tem o peso que poucas coisas humanas possuem. Só um elogio, um conselho ou uma censura da Santa Igreja podem pesar mais sobre um homem.
Essa veneração envolve certo elemento que a Igreja, empregando muito bonita expressão, define como temor reverencial; ou seja, o temor que se tem a uma pessoa não tanto devido à força de que ela dispõe, quanto ao respeito que impõe. Então, o temor reverencial que o filho tem para com a mãe parece ser o contrário do carinho. Porque o carinho é de modo especial o afeto que o mais velho, mais poderoso, mais pleno dá àquele que é mais fraco, mais débil.
Veneração, ternura e carinho
Pode-se falar, por exemplo, do carinho de uma mãe para com seu filho. É mais difícil falar do carinho de um filho para com sua mãe. O próprio “inho” da palavra “carinho” tem qualquer coisa que soa aos nossos ouvidos como se fosse um diminutivo, o qual vai bem para quem é mais em relação a quem é menos; e não tão bem para aquele que é menos relativamente a quem é mais.
Na realidade, porém, a veneração e a ternura se confundem completamente, a propósito do carinho. Quer dizer, o filho, sentindo-se objeto do carinho da mãe, tem um desejo de retribuí-lo; o carinho da mãe desperta o carinho no coração do filho.
De maneira tal que um homem poderá ser durante toda a sua vida particularmente bom, misericordioso, condescendente — no bom sentido da palavra — se ele teve uma mãe muito carinhosa. Porque nasce no coração dele o carinho e, portanto, todas as formas de bondade. Ele gosta até de se sacrificar, de fazer alguma coisa difícil por quem merece seu carinho.

Então, o carinho materno jorrando sobre o filho é como a água que cai de grande altura sobre uma pedra. Quanto maior a altura, mais a água sobe de novo ao bater na pedra. Assim é o carinho materno: verte-se sobre o filho e deste como que respingam gotas de água, as quais se pudessem voltariam ao alto. O equilíbrio dessas duas coisas faz propriamente o equilíbrio do homem, porque quando ele só quer impor o respeito dos outros, mas não sabe ser afetuoso, fica faltando algo; e quando apenas é afetuoso, porém não sabe impor respeito, ele não é um homem autêntico, porque o próprio do homem é saber se impor.
Quando o homem impõe respeito e tem carinho, ele possui um equilíbrio semelhante ao do pêndulo de um relógio, que chega a um extremo, vai ao outro extremo, e deste volta para o primeiro, fazendo os ponteiros marcarem a hora certa.
Debaixo de certo ponto de vista, o carinho e a veneração também se equilibram dessa forma: quem chega ao extremo do carinho fica desejoso de venerar; quem atinge o extremo da veneração quer acariciar. Essas duas coisas se completam.
Compreende-se assim que em presença de uma mãe como foi Dona Lucilia, a tendência para a veneração e para o carinho eram enormes. 
Texto extraído dos comentários de Plinio Correa de Oliveira

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Palácio de seriedade materna ( cont )

Continuação do post anterior
O papel da dor
Esse bem-estar da seriedade e da virtude ela levava mais longe ainda, apresentando-o dentro da dor. Porque o aspecto pelo qual a seriedade horripila é por ser um longo corredor à meia-luz, que dá no fundo para um pátio intensamente iluminado, mas que tem no centro a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Como eu gosto que a cruz exista em nossas sedes: preta e com os instrumentos da Paixão! Porque é aonde a seriedade conduz. Sofre-se e é preciso receber o sofrimento, aguentá-lo sobre os ombros, osculá-lo como Nosso Senhor osculou sua Cruz, e depois carregá-lo.
Isso mamãe fazia de modo exímio, com tanta seriedade, que era uma coisa incrível. Mas uma seriedade tão doce, como se vê naquele quadrinho 1. É, evidentemente, uma pessoa muito sofrida, mas com quanta suavidade! Eu preferiria um ano desse sofrimento a uma hora de nervosismos contemporâneos.
Compreende-se que eu, muito analítico, se não encontrava nela um pensamento explícito — a não ser em forma muito verdadeira, muito respeitável, mas muito doméstica —, entretanto, presenciava um modo de ser que era o dela.
Ao analisá-la, mas milímetro por milímetro, só encontrava coerência, retidões e luzes. É fácil imaginar como isso pode ter-me influenciado.
Fico contente até os bordos se o que eu acabo de dizer os tiver ajudado a compreenderem como vale a pena sair de dentro do picadeiro de circo de cavalinhos do relativismo, da torcida, dos nervosismos e das brincadeiras, para entrar nos sacrários da seriedade.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 7/2/1982
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucília.