sábado, 26 de outubro de 2013

Esmero no escolher presentes para os filhos

Dona Lucilia cuidava dos assuntos de casa, conferindo-lhes aquela sua nota característica de bondade e delicadeza de alma.
Por exemplo, quando preparava os presentes de Natal para os dois filhos, em geral brinquedos comprados nas melhores lojas do gênero então existentes em São Paulo. Até atingirmos certa idade, mamãe costumava pedir à nossa governanta, Fräulein Mathilde, que nos levasse a essas lojas e nos fizesse escolher os nossos brinquedos favoritos, dizendo-nos em seguida: “Agora rezem a São Nicolau, e peçam a ele que lhes traga esses presentes”.
Claro, crianças que éramos, acreditávamos naquela afetuosa combinação, e nos dirigíamos à loja de brinquedos contentes e ansiosos, esperando que São Nicolau nos fosse favorável. No dia de Natal, nossa alegria era completa ao vermos que tínhamos sido atendidos . . .
Mas, além desses presentes, mamãe se comprazia em confeccionar, ela mesma, outros brinquedos para nós, especialmente para minha irmã, pelo fato de ser mais fácil elaborar algo que agrade a uma menina. Lembro-me, por exemplo, de vê-la trabalhar num enfeite para abajur que era uma espécie de guirlanda formada por figuras femininas de mãos dadas, como se fossem várias meninas dançando ao som de uma música em torno, digamos, de um chafariz.
Essas silhuetas eram inspiradas em gravuras que mamãe colecionara de revistas brasileiras ou de figurinos franceses. Depois de as recortar e colar, ela ainda as pintava com purpurina, dando relevos dourados e outros adornos. Por fim, decorava o abajur e dava de presente à filha. Aquilo lhe tomara tempo e empenho, às vezes até altas horas da noite, mas era de admirar a perfeição e o cuidado com que mamãe se entregava à tarefa . E, a meu ver, o melhor dessa perfeição estava no fato de que, com o passar do tempo, as figuras perdiam aderência no abajur, se descolavam, caíam, e o objeto tornava-se feio. Dona Lucilia então se desfazia de tudo: “Acabou-se, não tem mais beleza, e a perfeição agora consiste em pensar noutra coisa. Isso fica para o passado. Pensemos no futuro”.
Sempre o melhor possível
Quer dizer, desde o mais delicado e mais carinhoso, até o mais firme e mais decidido, mamãe procurava fazer tudo do melhor modo que lhe fosse possível . Outro exemplo é a maneira como ela se dispunha a animar a vida de família. Vivíamos em casa de minha avó, mãe dela e matriarca dos Ribeiro dos Santos, numa dependência especialmente reservada para nós. Contudo, em se tratando de uma casa muito grande, era natural que mamãe se dedicasse a ajudar vovó nos cuidados domésticos, supervisionando os criados, a manutenção da despensa, verificando as contas e coisas do gênero.
Além disso, com o auxílio da Fräulein, ela costurava e fazia certas peças de roupa para nós, não por se sentir obrigada, mas porque gostava e desejava, por afeto, que usássemos algo confeccionado por ela. E com razão: uma coisa é o filho usar uma gravata comprada na loja, outra é envergar aquela cortada com carinho por sua mãe. E tudo levado a cabo com tal capricho que pensávamos: “Não era possível fazer, nesse caso, nada melhor do que ela fez”.
Sejamos perfeitos como Deus é perfeito
Esse anelo de perfeição era tão característico de mamãe que eu, acostumado a pôr-lhe apelidos — sempre respeitosos e afetuosíssimos —, durante algum tempo a chamei de Lady Perfection, isto é, Senhora, Madame ou Dona Perfeição . E quando eu me referia a ela por essas alcunhas carinhosas, ela demonstrava grande contentamento . Diante do quê, meu pai, homem de muito bom gênio, olhava para ela e dizia, arremedando o sotaque português:
Não te derretas . . .
Queria observar, com esse gracejo, que ela por pouco não se desmanchava de satisfação com os meus agrados. Mamãe lhe respondia com uma fisionomia séria, eu dizia outras afabilidades para ela, e nesse trato ameno terminavam nossos encontros.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência em 10/9/1994

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Inocência e maturidade

Dona Lucilia sabia, como poucos, entreter uma criança. Formada segundo padrões dos antigos tempos, ela conhecia o meio de preservar a candura na alma dos pequenos, não porém mantendo-os na infantilidade, mas educando-os numa inocência amadurecedora.
A vida dos adultos apresentada com elevação de vistas
Como ela procedia?
Falava às crianças sobre a maneira de os adultos conduzirem sua existência, suas inclinações, as lutas, os dramas que enfrentavam, etc., apresentando tudo com uma tão alta elevação de horizontes, com tanto ideal e tanta seriedade, que incutia no espírito da criança os necessários elementos para que ela maturasse.
Eu mesmo, filho dela, sentia bem como esse modo de proceder era o que deveria ser adotado, e desfrutava um entretenimento único nos fatos e histórias descritos por mamãe, porque tudo — até os contos de fada que nos narrava — era orientado na direção do nosso amadurecimento. Acontecia-me de vez ou outra escapar dos brinquedos com minha irmã e meus primos e ir procurá-la pela casa, a fim de pedir que me desfiasse um de seus contos. Ela ficava muito comprazida com minha solicitação, e eu, super-comprazido com seu acolhimento.
Cumpre dizer que essa forma de nos educar me preparou para o choque inevitável que um menino, saído de seu ambiente familiar — sobretudo se católico e semeado de valores morais como era o meu —, teria com o mundo. Eu caminhava para esse confronto com os olhos postos naqueles ideais que mamãe soubera nutrir em minha alma, e para os quais eu deveria tender.
Uma inocência unida à seriedade
É preciso dizer, também, que a seriedade fazia parte dessa inocência, ao mesmo tempo manifestada e amparada por mamãe. Essa atitude decorria de uma escola de alma que ensinava como prolongar a inocência dentro da maturidade, fazendo-nos compreender como a inocência não é apenas um estado de espírito de uma criança, mas um programa de vida que, em última análise, leva o homem a cumprir o primeiro mandamento da Lei de Deus.
Fantasias de Carnaval que estimulavam a inocência
É interessante notar que os dias de Carnaval ofereciam a mamãe uma oportunidade especial de estimular em nós a inocência. Todas as crianças da família se fantasiavam, vestidas pelos pais. E eu me deixava trajar como Dª Lucilia quisesse, pois a vontade dela era indiscutível para mim. Agora, um detalhe: as fantasias que ela arranjava sempre tendiam ao sério, ao contrário de outras que exploravam o burlesco, impelindo a criança a tomar atitudes descompostas e apalhaçadas.
Lembro-me de certo ano em que ela, nas suas delicadas concepções, planejou para mim uma fantasia de marajá. Ignorando as características do personagem que eu iria adotar, logo quis saber do que se tratava, e mamãe então me descreveu as belezas da Índia, com seus lindos palácios, suas riquezas e mistérios.
Você, portanto, vai se fantasiar de marajá! — disse-me ela, num tom que era um convite longínquo para a criança encarnar e viver o papel de soberano hindu por alguns dias.
Recordo que minha fantasia comportava um turbante feito de várias sedas, ornado de uma bonita aigrette que acompanhava os meneios da cabeça e me dava a impressão de uma espécie de sismógrafo muito nobre da alma humana. Além disso, era presa ao turbante por uma grande pedra “preciosa”, e esse pormenor de uma “jóia” incrustada na testa, da qual se desprendia uma elegante pluma, parecia mais ou menos a profundidade do pensamento da qual se destacava uma construção alígera...
O resto da roupa era igualmente de seda, guarnecida de joias falsas, anéis, colares, etc. Os sapatos, com as pontas voltadas para cima e revestidos de cetim lilás, pareceramme particularmente graciosos, pois achei muito feliz a ideia de calçados que se erguiam da vulgaridade do chão, como se o seu usuário dissesse: “Eu toco no solo, mas o melhor de mim mesmo se faz alheio à poeira. Por isso viro a ponta para cima.” Assim como com as fantasias de outros Carnavais, essa do marajá era preparada no clima criado por Dª Lucilia, falando-me com seriedade acerca do personagem que eu iria representar, e imaginando uma vestimenta que, conforme os padrões e as posses dela, deveria ficar seriamente bonita. Quer dizer, com inocência e seriedade, ela tinha empenho em que eu me apresentasse bem.
(Plinio Correa de Oliveira - Adaptado e Extraído de conferência em 12/6/1982)

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Bondade, suavidade e indulgência

Pelo afeto com que Dona Lucilia tratava Dr. Plinio desde o berço, ele conheceu a bondade de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus.
Nossa Senhora do bom Conselho de Genazzano
Durante as reflexões que, por ocasião de minha doença1, fiz sobre Nossa Senhora de Genazzano, me chamou muito a atenção a inteira intimidade do Menino Jesus com Maria Santíssima. Ele até passa a mão por trás do pescoço d’Ela.
Respeito, admiração, veneração e ternura
E me lembrava da intimidade que eu tinha com a minha querida e saudosa mãe, uma intimidade tão cheia de respeito, de admiração, de veneração e de ternura, mas uma verdadeira intimidade. Ela sabia ser pequena, afável, meiga ainda quando eu era um menino que dependia completamente dela.
Por isso, desde os meus primeiros dias, eu a chamava de “mãezinha”; não sabendo falar bem, eu dizia “manguinha”, mas já era a ideia do que havia nela de miúdo, de pequeno, de proporcionado a mim, de exorável por mim, de compassivo para comigo. Era a ideia que brotava em mim de toda a mansidão e bondade dela. A bondade de Dona Lucilia foi para mim o modo pelo qual eu conheci a bondade de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus.
Do que minha mãe me legou, as duas coisas mais preciosas que eu conheço na ordem moral, não na ordem religiosa, foram exatamente, de um lado, a bondade e, de outro lado, a severidade sábia.
Mamãe era tão bondosa que eu nem saberia dizer! Mesmo na hora de perdoar as coisas em que eu andava mal, ela manifestava uma indulgência, uma suavidade, e nunca uma reclamação porque algo a tivesse atingido. Portanto, jamais entrava reivindicação de um direito dela.
Os pitos de Dona Lucilia
Por possuir a cultura de uma senhora de antigamente, mamãe nem saberia bem explicitar um princípio, mas tinha os princípios em seu espírito.
Assim, nunca o pito dela era motivado por uma irritação pessoal, mas por um princípio ofendido, inclusive o da autoridade materna, e sempre com tanta bondade, tanto perdão, tanta paciência no que dizia respeito a ela. O que, em menino, eu fizesse de pior, ou outras pessoas faziam de horrível para mamãe — e que eu presenciava —, enquanto coisa ofensiva para ela, Dona Lucilia engolia quietinha e não dizia uma palavra.
Como eu me lembro dos pitos dela! Que seriedade no olhar, que compenetração de que se tratava de fazer prevalecer um princípio! Que convicção de que, se não conformasse minha vida com aqueles princípios, para ela eu valeria muito menos! Mamãe via em mim mais o filho que devia amar os princípios, do que o filho que precisava querer bem a ela.
E quanta sabedoria no que ela dizia! Que voz grave! E ao mesmo tempo a bondade não estava ausente. A intransigência dela para comigo chegava a esse ponto; acho que já contei isso aqui, mas estou me expandindo um pouco.
De larvas que somos, Nossa Senhora nos transformará em crisálidas
Uma vez — foi o apogeu de minha vida colegial, mas nunca fui o primeiro de minha sala de aula — eu voltei da festa de distribuição de prêmios no Colégio São Luís, com quatro medalhas no peito; os meninos vinham na rua ostentando as medalhas, naqueles tempos ingênuos.
Lembro-me que eu vestia traje marinheiro; mamãe abriu a porta de casa e me agradou, foi uma alegria.
No ano seguinte regressei com três medalhas; ela abriu a porta, olhou e disse:
Só três?
Mas, intransigente. E acrescentou:
O que aconteceu para você decair?
Dizia isso misturado com tanto afeto, que posso afirmar ter sido uma preparação para eu compreender o que era a misericórdia de Nossa Senhora.
Muitos dos que estão aqui a conheceram — alguns até bem de perto — e poderão achar que há exagero no que eu digo, mas não que existe uma invenção.
Não quero dizer que as mães dos presentes neste auditório não lhes tenham ensinado isso; também não desejo afirmar que eu tenha aprendido inteiramente o que ela me ensinou. Falo isso para exemplificar um pouco o que estou pensando.
E não sinto que nossa devoção à Santíssima Virgem seja inteiramente assim. Neste sentido, nós somos ainda como larvas que se vão arrastando pelo chão até o momento em que Maria Santíssima nos transforme em crisálidas.  
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferências de 6/5/1968 e 18/6/1968
1) Diabetes, cuja crise durou de dezembro 1967 a maio de 1968.