segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

“Filhão, só tenho a você”

Com a morte de Dr. João Paulo, acentuou-se para Dª Lucilia o normal isolamento que o avançar da idade traz consigo. Desde jovem, ela previra essa eventualidade de ser incompreendida no seu modo de ser e de pensar pelas gerações seguintes, em vista das transformações que presenciava. Assim, não tinha qualquer ilusão. Notava que, se a Providência lhe concedesse uma vida longa, o futuro se lhe apresentaria, com o paulatino desaparecimento de seus contemporâneos, como uma lenta e inexorável marcha para o anoitecer.
Fazendo lembrar certas flores, que exalam o melhor de seu perfume quando esmagadas, Dª Lucilia se submetia com doçura e suavidade à provação do isolamento, mais doloroso para ela devido à sua grande comunicatividade.
Todavia, sua solidão não foi completa. Desde a mocidade de seu filho, a consideração da afinidade de ambos foi para ela um lenitivo, pois via na fidelidade dele aos mesmos princípios católicos que ela amava, a promessa de uma companhia até os últimos dias.
Sendo a sensibilidade de uma senhora naturalmente mais refinada que a do homem, formara Dr. Plinio, em certo momento, o propósito de amenizar esse isolamento de Dª Lucilia. Redobrou suas expansões de carinho para com ela, que bem discernia essa intenção de seu filho e, por isso, não perdia oportunidade de lhe manifestar gratidão.
Certo dia, ao sair do quarto, encontrou-o no corredor, junto à porta do hall. Parou diante dele, pôs-lhe as mãos sobre os ombros, e fixando-o no fundo do olhar disse:
— Filhão, só tenho a você, mas a você eu tenho inteiramente.
Ao se recordar dessa cena, anos mais tarde, Dr. Plinio comentaria:
“Tais palavras me ficaram no espírito para sempre. Tendo ela dito isto, eu nada respondi, pois não existem palavras capazes de exprimir os próprios sentimentos em situações como esta. Eu só a beijei e abracei, como sempre fiz. Mas posso tranqüilamente dizer que ela me tinha mesmo, e por inteiro!”

Transcrito da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Filhão, mamãe comprou isto para você

Embora a felicidade eterna dos seus fosse a principal preocupação de Dª Lucilia, continuava ela a observar, até o último instante, as pequenas obrigações decorrentes do relacionamento familiar, nas quais o afeto era a regra primeira. Por isso, ao aproximar-se o fim do ano, ou o aniversário de alguém, Dª Lucilia já ia pensando nos presentes a dar. A escolha era feita segundo a medida do afeto, e jamais em função do valor das lembranças anteriormente recebidas. Ela nunca condescenderia em rebaixar uma amizade a uma relação quase comercial.
Para Dª Lucilia, as festividades de fim-de-ano começavam sempre uns dias antes, ou seja, a partir do aniversário de Dr. Plinio, a 13 de dezembro. Com muita antecedência ia separando as quantias necessárias para os gastos e — daquele seu modo peculiar — as guardava num papel no qual escrevia a finalidade, formando pequenos rolinhos. O que era muito concorde à meticulosidade e perfeição com que fazia as menores coisas.
A seu filho oferecia sempre gravatas. Havia muito que ela já não fazia pessoalmente a compra, deixando-a a cargo de Dr. João Paulo, pois este desde moço vestia-se com muito bom gosto. E Dª Lucilia sempre achava que ele acertava na escolha. Por quê? Porque “João Paulo se veste bem”. Era o paradigma dela.
 Para Dr. Plinio, o que dava real valor ao presente eram as palavras — envoltas em tanta benquerença que enchiam a alma de doçura — escritas por sua mãe, não num cartão, mas sim no papel de seda da própria caixa da gravata. Tal pormenor, um tanto inusitado, dava especial sabor ao gesto dela, por deixar transparecer um traço de sua personalidade.
Dona Lucilia, ao entregar a seu filho o presente, com afeto dizia:
— Filhão, mamãe comprou isto para você.
Numa ocasião, estando próximo o “grande dia” do aniversário de seu filho, Dª Lucilia entrou no escritório dele, no apartamento, a fim de preparar o presente. Dr. João Paulo se encontrava ali, no sofá. Ela sentouse diante da escrivaninha, abriu a caixa de gravatas, retirou com cuidado o papel de seda e o estendeu sobre a mesa a fim de escrever a dedicatória. A tarefa, devido às suas condições, apresentava certas dificuldades, que o anseio de perfeição a levava a vencer pacientemente, uma por uma. O papel de seda não se firmava bem sobre o vidro da mesa, e sua vista, um tanto enfraquecida, lhe dificultava o traçado de sua bonita letra.
Enquanto escrevia os primeiros caracteres, ia conversando com Dr. João Paulo. Ao passar no corredor, Dr. Plinio observou a cena pelo vão da porta, ouvindo encantado o diálogo que entre eles se travava:
— João Paulo — perguntou Dª Lucilia — como é que o Plinio gostará mais que eu diga? Assim deste jeito ou de tal outro?
Com sua atenção voltada para assuntos diversos, Dr. João Paulo respondeu com uma evasiva:
— Senhora, qualquer das duas fórmulas serve.
Essas palavras não satisfizeram Dª Lucilia, que voltou a insistir:
— Não, João Paulo, pense um pouco, ajude-me aqui...

Por fim, tendo eles escolhido uns dizeres de preferência a outros, Dª Lucilia terminou de escrever, repôs as gravatas no papel de seda e fechou a caixa, levando-a em seguida para seu quarto, onde a guardou até o dia do aniversário do filho. 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

“Minha mãe é muito melhor que a sua!”

Dr. Plinio não perdia ocasião para retribuir o afeto de sua mãe. Isto compensava, de alguma forma, as ausências impostas por suas obrigações e, sobretudo, a aliviava do isolamento. Muitas vezes externava este reconhecimento por amenos gracejos: o invólucro de um dito espirituoso dava maior alcance aos seus filiais sentimentos.
Dª Gabriela, mãe de Dona Lucilia
Certa ocasião, estando Dª Lucilia no “Salão Azul”, sentada ao lado do “filhão” em agradável conversa, ele lhe perguntou, referindo-se ao quadro de Dª Gabriela:
— Mamãe, quem é aquela senhora que está naquele quadro?
Dona Lucilia, estranhando a pergunta, respondeu num tom de voz que denotava ligeira surpresa:
— Meu filho... aquela é mamãe...
— Pois, olhe, minha mãe é muito melhor que a sua!
Dona Lucilia, um pouco desconcertada diante de um elogio que a colocava acima de sua própria mãe, a quem muito admirava, não tendo o que responder, tocando com a ponta dos dedos suavemente na mão de Dr. Plinio, como era seu hábito, apenas lhe disse:
— Ora!... meu filho, meu filho...
Quando muito elogiada por ele, Dª Lucilia alegava serem exagerados seus ditos, por não merecer tanto. Ele brincava então, e lhe chamava “Madame Merece Mais”, não permitindo que ela vencesse a carinhosa disputa. Dava-lhe a entender desse modo o quanto seus louvores ficavam sempre aquém da realidade.Um dia ele lhe perguntou com uma pontinha de afetuosa ironia:
— Mamãe, eu sou o filho que a senhora esperava? Sem aguardar resposta, continuou:
— De fato, a senhora gostaria que eu fosse um advogado brilhante, com barba longa...
Era o tipo humano do homem bem-apessoado do tempo do pai dela, Dr. Antônio.
— Pois bem — concluiu ele — a senhora acabou tendo um filho polemista!
Na intimidade, Dr. Plinio não poupava elogios nem manifestações de carinho à sua mãe, deixando-a por vezes enternecida. Era nessas ocasiões que, imitando sotaque português, Dr. João Paulo dizia a ela, gracejando:

— Não te derretas!...