domingo, 22 de março de 2015

Séria para com o filho

No dia de minha formatura na Faculdade de Direito, ocasião em que  os estudantes usavam fraque e cartola para a cerimônia, lembro-me de  um fato que me impressionou profundamente  pela  seriedade  de  Dona Lucilia. A formatura realizou-se  no prédio da faculdade. As famílias  dos que se formavam compareciam  inteiras ao salão nobre, grande e de  boa aparência, da própria faculdade,  para a realização de tal cerimônia.  Todos os docentes com becas, numa  atitude muito solene. Eram chamados, um a um, os vários alunos, e entregava-se o diploma. 
Tive eu também que mandar fazer meu fraque. Entretanto, por não  considerar nada agradável o fato de  experimentar as novas roupas, para  que o alfaiate com alfinetes e giz pudesse tomar as medidas correspondentes, adiei um tanto a encomenda  do fraque.
Resultou daí que o alfaiate prometeu aprontar o fraque para o dia  estrito da formatura, e não para os  dias anteriores, como se costuma fazer.
Na manhã do dia da formatura, o  fraque ainda não estava pronto. Mamãe não me indagou, e também eu  evitei estar próximo dela, pois certamente  ficaria  muito  apreensiva  caso soubesse que o fraque não estava pronto. Particularmente, a formatura não era o que mais me preocupava, pois já possuía o título e podia  advogar.
Não vem o seu fraque?
Entretanto, não era desta forma  que ela considerava o fato. Sendo a  formatura  uma  grande  solenidade,  elevada, ela entendia que todos deviam prestigiar e, portanto, também  eu tinha obrigação de estar presente  em tal evento. Dar à formatura uma importância secundária não era uma  atitude séria. 
Resultado: ela com certa angústia  perguntou-me:
— Mas não vem o seu fraque, filhão?
— Mamãe, o fraque já chega. A  senhora  pode  entrar  no  automóvel  com minha irmã e meu pai, e seguem  para a Faculdade de Direito. Eu os  alcanço lá.
Notei  que  ela  não  ficou  muito  agradada, entretanto não podia fazer outra coisa. Achou melhor, então, dirigir-se para a faculdade a fim  de arranjar um lugar para sentar-se,  pois ela padecia um incômodo nos  pés, devido a sua idade, que lhe impedia de permanecer em pé por muito tempo. Então, seguiu.
Por longo tempo esperei, porém  o fraque não chegava. O que acontecera durante esse tempo, nem sequer cheguei a imaginar.  po da volta e das comemorações, ela  permaneceu inteiramente normal.
Aparente normalidade
Afinal de contas o fraque chegou.  Eu  vesti  depressa,  tomei  um  automóvel e rumei para a Faculdade de  Direito. Quando lá cheguei — a sala da formatura era um pouco longa  —, achei pelo ambiente que a cerimônia estava terminando. Fui apressadamente até à entrada da sala para  ver se ainda chegava a tempo. Quando entrei, o secretário da faculdade,  que lia os nomes dos alunos, estava  no  penúltimo  nome.  O  último  nome seria o meu, pois eles haviam me  chamado, mas como não respondesse, deixaram-me então para o fim.
Afinal,  apresentei-me  e  ele  chamou:
— Plinio Corrêa de Oliveira.
— Presente! Dona Lucilia fitou-me, com olhar alegre, enquanto fui até a frente para receber o diploma. Dirigi-me então até ela para receber seus cumprimentos, como também da família toda, e saímos. Durante todo o tem-

Pelo amor de Deus, nunca repita isso
Ao chegar em casa, Mamãe voltou-se a mim dizendo:
— Plinio, precisaria dizer uma palavra a você em particular. Venha comigo ao meu quarto.
O quarto dela, porém, era na parte  mais  interna  da  casa,  depois  de  um  corredor.  Era  um  apartamento  que ela possuía ali.
Eu a segui, e ela nada me disse,  mantendo um ar de normalidade. Tive o receio de que fosse algum drama de família, ou algo semelhante.  Entrei, ela fechou a porta a chave, e  permaneci  intrigado  por  desconhecer a razão daquele ato. 
Então, Mamãe ajoelhou-se diante de mim, atitude que nunca tomara na vida. O contrário é normal, o  filho por uma razão especial ajoelhar-se diante de sua mãe para receber a bênção dela, por exemplo.  Mas uma mãe ajoelhar-se diante do  filho, dir-se-ia que não tem propósito.
Então,  compreendi  profundamente  como  ela  tomava  a  sério  as  menores coisas da vida.
Ajoelhada diante de mim, Dona  Lucilia disse o seguinte:
— Pelo amor de Deus, mas pelo amor de Deus, você tem de prometer que nunca virá a repetir um  atraso como este. Seja pontual nas  coisas,  e  faça  tudo  com  compenetração.
— Mas mamãe... A senhora me vê  chegar sempre um tanto impontual e  nunca fica apreensiva, até um ou outro brinca comigo diante da senhora,  a senhora sorri e não se incomoda —  os parentes brincavam muito comigo porque eu vivia atrasado — e nesse caso a senhora vai tomar a sério?  Meu bem, levante-se — e quis ajudá-la a levantar.
— Não me levanto enquanto você  não me prometer.
— Mas não posso prometer uma  coisa  dessas,  pois  é  uma  mudança  completa nos meus hábitos. Faz parte de meu temperamento deixar que as coisas fluam, sem me preocupar.
Depois  disse  para  ela,  pois  era  uma forma de fazer um amável gracejo:
— É meu sangue Ribeiro dos Santos que faz isso.
Ribeiro dos Santos era a família  dela.  Então,  dava  a  entender  que  era  herdado  da  família  dela.  Eu  disse com respeito e até com carinho, mas disse. Entretanto, ela me  respondeu:
— Ou você me promete, ou nunca  mais eu quererei obrigar você a fazê-lo...
—  Então,  faremos  uma  coisa.  Prometo à senhora que em todas as  ocasiões graves e gravíssimas nunca  me atrasarei. Porém depois a senhora me explica a razão pela qual não  devo me atrasar.
—  Durante  todo  o  tempo,  sua  irmã  e  eu  ficamos  na  aflição  de  que  um  automóvel  houvesse  se  chocado com você pelo caminho,  deixando-o morto ou esticado numa esquina. Isso por você ter atrasado a encomenda de um fraque.  Está errado, você não deveria agir  dessa forma.
Sempre as consequências mais profundas
Eu a acariciei e prometi que nas ocasiões de grande gravidade jamais  me atrasaria.
As circunstâncias ou a Providência quiseram algo diferente. Eu sofri um desastre de automóvel — dirse-ia que talvez ela previa esse perigo —, porém tal fato não se deveu a  atraso  nenhum.  Lembro-me de ter chegado à  hora,  para  embarcar  no  automóvel, então ele seguiu seu curso; o desastre ocorreu por outras razões.
Então, eu compreendi como Mamãe discernia nas coisas suas consequências mais profundas, o mal que  podiam  produzir,  e  como  se  devia  evitá-lo.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 1/ 7/ 1995

quinta-feira, 12 de março de 2015

Exemplo de amor materno ( Cont )

Continuação do post anterior
Zelando pela honra dos filhos
Por experiência própria, ela sabia quanto a má saúde física faz sofrer a alma. E para evitar tais sofrimentos ela queria que fôssemos saudáveis. Mamãe contava, com todos os pormenores possíveis e como um drama, o perigo de vida pelo qual passei quando criança; ela ainda vivia aquele drama. Explicava como rezou e, depois de afastado o risco, como agradeceu.
Dona Lucilia tinha grande cuidado para que minha irmã e eu — por uma questão de honra em face de nós mesmos e também de Deus, não dos outros — fôssemos pessoas comme il faut, quer dizer, como se deve ser. Então, dentes, o asseio em geral, alguma preocupação de saúde, mas, sobretudo a noção de honra, que é uma idéia católica, e no tempo dos pais dela, era uma tradição. Por exemplo, na pintura representando a mãe dela, a idéia de honra da pessoa perante si mesma está presente, e também, de modo menos saliente, nas pessoas retratadas em outros quadros de nossa residência.
Há determinadas regras para que as pessoas se tornem dignas. Naturalmente ela cuidava de alguns aspectos disso com relação a minha irmã, segundo certo matiz; é a ordem das coisas. Comigo era de outro modo.
Mamãe acompanhava muito toda a minha vida, sabia onde e como eu estava, quais eram os meus horários de refeição, de saída, de chegada, entretanto sem ar de fiscalização, nem mesmo de vigilância, mas simplesmente com atenção. E atenção extrema, acompanhando certos pormenores, como, por exemplo, a roupa que eu trajava.
Síntese das tradições da família
Por alguns lados Dona Lucilia era uma síntese das tradições de sua família; por outros, um renouveau de uma série de coisas que, ao longo das gerações, foram sofrendo um processo de modernização e, portanto, se alterando. Em algumas matérias ela comunicava — para usar uma expressão atual — uma mensagem inteiramente diversa. Em outras refletia propriamente a tradição.
O essencial da nota que diferenciava mamãe das outras pessoas era o seguinte: a idéia da verdade absoluta, do bem absoluto, do eterno, imperecível, era muito mais tênue nos outros do que nela. De maneira que eles não se opunham, em princípio, a nenhuma modificação; iam sempre acompanhando numa linha conservadora. Enquanto ela, sendo o caso, reagia: “Isso não pode ser. Há aqui um princípio, um modo de ser, uma tradição imutável da qual não abro mão.”
Ela conservava as tradições católicas com muito mais fé do que seus antepassados. Não quero dizer que não possuíssem fé, mas não tinham a fé que ela possuía.
O afeto pelo filho vinha em larga medida por ver os lados bons de sua alma
O afeto dela para comigo vinha, evidentemente, pelo fato de ser minha mãe, mas, sobretudo, porque ela via muito bem os aspectos bons da minha alma.
Não se pode dizer que mamãe me queria “debandadamente”, pois a palavra “debandada” não tem a dignidade devida. Nela nada era debandado, embora pudesse ser com uma intensidade inteira.
Na época de mamãe, os homens eram avaliados muito mais pelo que eram do que pelo que faziam. Assim, pelo pouco que ela sabia que eu fazia, achava minha vida justificada. Em minha vida de lutas, algumas coisas ela não via, pois de modo mais consciente ou menos, tinha também a preocupação de não engrandecer o que era dela. Portanto, de não me considerar maior do que estava na proporção do universo que ela conhecia.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 14/3/81