terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Exemplo de perfeição (cont)

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Ajudando no governo da casa
Vivíamos em casa de minha avó — que era a matriarca da família — ela, meu pai, minha irmã e eu. Era uma residência muito grande, e morávamos num apartamento reservado especialmente para nós.
Mamãe se dedicava a ajudar minha avó a tomar conta da residência. Esta era enorme, e por isso era preciso sempre dirigir os criados e fiscalizar as contas.
Naquele tempo, quase tudo se fazia em casa, não só refeições, mas também costura, por exemplo. Havia em nossa residência uma máquina de costura muito boa, marca Singer, com pedais; não era elétrica. Mamãe pedalava e costurava. A Fräulein também ajudava na confecção de certas peças de roupa. Embora não precisasse trabalhar nessas coisas, mamãe as realizava por afeto, gostando que usássemos roupas feitas por ela. Para um rapaz, por exemplo, uma coisa é usar uma gravata comprada na loja, outra é vestir aquela que sua mãe fez para ele.
À procura dos ovos de páscoa
Quando chegava a Páscoa, realizava-se piquenique, ou seja, uma excursão a uma distância pequena, no meio do mato ou junto da praia, levando-se algumas cestas com comida. A criançada brincava e mamãe ficava observando. Essas cestas iam bem preparadas, tudo bem arranjado. Era agradável vê-la retirar os alimentos e mandar distribuir aqui, lá e acolá. Tudo feito com perfeição. Ela sabia depois adaptar a refeição a cada pessoa.
Muitas vezes íamos ao Parque Antártica, situado em frente às Indústrias Matarazzo1 de hoje. Era um local enorme, muito bonito, que a Companhia Antártica — fabricante de uma excelente cerveja — mantinha para o público a fim de fazerem piqueniques e, penso eu, escoar seus produtos.
O parque possuía tufos de vegetação, árvores, enfim tudo que pudesse distrair crianças. Em certo momento, mamãe fazia um sinal para a Fräulein — mas eu nunca percebia; somente quando adulto entendi tudo — e esta jeitosamente levava os ovos de páscoa, colocando-os em diversos lugares. As crianças ficavam prestando atenção para ver onde ela os havia escondido, para depois irem buscar.
Eu era um menino bastante distraído e muito pensativo. Como resultado, uma série de coisas concretas me escapava.
Mamãe já sabia que eu não iria notar; então ela me dizia:
— Filhão, vá agora pegar seus ovos. Eu pensava: “Agora chegou essa história.”
E perguntava:
— Que direção devo tomar?
— Vá procurar. Todos os seus companheirinhos estão procurando, busque você também.
— Ah! sei, vou.
Após dar alguns passos e nada encontrar, eu de longe olhava para ela, assim como quem diz: “Ajude-me porque naufraguei , não encontro os ovos.”
Mamãe sorria para mim. Que sorriso luminoso, afável! Um tanto se divertindo com o meu apuro, mas alegre por me tirar dele. Chegava até mim e me dizia:
— Dê a mão para mamãe que vou ajudá-lo a encontrar os ovos. Vamos andar um pouco.
Segurando minha mão, ela fingia que estava procurando e afinal me falava:
— Olha, está naquele tufo, mas você tem que procurar dentro dele.
Mexendo um pouco naquela vegetação, aparecia o presente. Eu era tão ingênuo que acreditava ter sido achado por mim e ficava alegre:
— Olhe, mamãe, eu encontrei!
E ela fingia surpresa:
— Ah! Encontrou? Que coisa excelente!
E eu ia comer o ovo de páscoa que achara, pois todos os presentes eram comestíveis. Ela sabia que eu não preferia ovo de chocolate, e sim o feito de açúcar, pois causava a impressão de cristal muito bonito. Dessa forma, mamãe sempre me fazia encontrar o ovo de cristal que comprara para mim.
Nada havia nesse caso que ela não tivesse feito com perfeição
Eu saía de lá com a seguinte sensação: “Nada havia nesse caso que ela não tivesse feito com perfeição.”
De vez em quando, para brincar, eu lhe dava um ou outro apelido, sempre muito respeitoso e afetuoso. Durante algum tempo, eu a chamava Lady Perfection, quer dizer, Senhora Perfeição, e ela ficava muito contente. Meu pai, que era um homem muito tratável, de um gênio muito bom, olhava o jeito dela e dizia, imitando a pronúncia do português de Portugal:
— Não te derretas!
Ela ficava séria, eu lhe falava outras coisas para exprimir minha admiração e assim terminavam nossos contatos.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 10/9/94

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Exemplo de perfeição

Com extrema maternalidade, Dona Lucilia procurava orientar seus filhos para uma vida de perfeição. Dr. Plinio se recorda de fatos do dia-a-dia que deixam transparecer a bondade de sua mãe.
Se houve uma pessoa que me deu todas as formas de exemplos de perfeição, foi Dona Lucilia.
Em primeiro lugar pela sua elevação moral. O espírito dela tinha certa tendência, continuamente manifestada, para o que há de mais alto, mais belo, mais delicado.
À noite, após fazer todas suas orações, ela me esperava chegar da rua para trocar mais uma palavrinha comigo. Eu percebia que o tempo decorrido entre o término de suas preces e minha chegada era considerável, às vezes três quartos de hora. Mamãe estava cansada, com sono, mas não queria ir dormir. Não sei no que ela pensava, mas eu notava que seu espírito se desprendia de regiões mais altas do pensamento para descer e conversar comigo.
Espírito impregnado pelo “perfume” da elevação
Imaginem uma pessoa que subisse em uma montanha, no alto da qual houvesse árvores com flores perfumadíssimas, e lá ficasse certo tempo. Quando descesse, seus trajes estariam penetrados do cheiro daquelas flores. Assim, eu tinha a impressão de que seu espírito ficava impregnado do perfume das coisas nas quais ela tinha pensado.
Eu não ia conversar com ela para tratar de algum assunto específico, mas apenas por ser seu filho; era inteiramente espontâneo. E aquilo que me ocorresse e tivesse a vontade de dizer-lhe naquele momento, eu falava. Ainda que fosse uma coisa insignificante, por exemplo, um episódio com o cobrador das passagens de bonde porque ele não tinha troco. Ela entrava naquele assunto, embora fosse minúsculo.
Algumas vezes mamãe me perguntava: “Filhão, o que você fez hoje à tarde após sair do escritório?” Eu lhe contava: fui ao dentista ou ao barbeiro ou a uma loja para comprar um par de sapatos. Ela prestava atenção e iluminava o assunto pelo espírito dela, fazendo assim que o tema deixasse de ser banal.
Mas não prolongava a conversa perguntando: “Onde estão os sapatos? São bonitos ou feios?” Normalmente as senhoras se interessam por essas coisas.
Aliás, eu gostava de sapatos bem largos, e a única preocupação dela nessa matéria tão banal era que, sendo folgados demais, de repente me causassem um tombo. Então ela sempre dizia:
— O sapato não é largo demais?
Eu sorria e respondia:
— Para meu gosto não, para o seu é.
— Olha, filhão, você toma um tombo...
— Reze por mim — e encerrava o assunto.
Preparando presentes para os filhos
Às vezes, ela contava pequenos fatos tais como:
Quando éramos crianças, mamãe preparava para minha irmã e para mim presentes de Natal e Ano Bom. Ela mandava a Fräulein nos levar para as duas ou três melhores casas de presentes de São Paulo e nos dizia: “Escolham os presentes e rezem a São Nicolau, para que ele os consiga para vocês.” Acreditávamos que era assim; íamos às lojas e escolhíamos coisas muito desiguais: minha irmã preferia bonecas e eu soldadinhos de chumbo, objetos que exprimiam luta.
Além desses brinquedos, mamãe — creio que por dedicação — gostava de ela mesma fazer presentes para nós, especialmente para minha irmã, porque é mais fácil fabricar uma coisa para menina do que para menino. Este gosta de coisas meio brutas, enquanto aquela, de objetos mais delicados.
Lembro-me de vê-la trabalhar para compor algo semelhante a um abat-jour, colando em sua copa uma série de figuras de meninas, uma segurando na mão da outra, formando guirlanda, dando certa impressão de dança, em torno de um chafariz. Ela recortava essas figuras femininas de jornais brasileiros ou figurinos franceses, e colava-as em papel especial. Depois pintava os bordos das saias, espalhava uma espécie de poeira dourada e dava o abat-jour para minha irmã.
Apesar de sua má saúde, mamãe ficava às vezes até meia-noite, meia-noite e meia, preparando esse presente. Era algo trabalhoso, mas ela o fazia com perfeição.
Porém, o mais perfeito estava nisso:
Passado certo número de dias, a cola ia secando, as figuras se desprendendo e aquilo ficava feio. Então, ela mandava rasgá-lo e jogá-lo no lixo, sem o menor pesar. Agora a perfeição consiste em pensar noutra coisa, não lastimar o passado mas, isto sim, em ir para frente.

Desde o mais delicado e carinhoso, até ao mais firme e decidido, tudo mamãe fazia com perfeição.
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sábado, 22 de novembro de 2014

Primeiros encantos com a Igreja

Continuação do post anterior
Pouco depois de nossa Primeira Comunhão, terminado o curso de catecismo, o meu vínculo estreito com mamãe me ajudaria a discernir outras riquezas da Igreja Católica. Eu ia com ela às Missas de domingo na Igreja do Coração de Jesus e, sentado ao seu lado, me punha a analisar o ambiente do edifício sagrado, e o conjunto que seus diversos aspectos formava com os ritos e simbolismos da celebração litúrgica. Então, considerava o som do órgão, do sino que tocava para anunciar a entrada do padre, as expressões de fisionomia desta ou daquela imagem, tal paramento, tal gesto, tal vitral que me parecia muito bonito — de tudo aquilo resultava uma soma, uma unidade incomparavelmente mais bela e preciosa do que a soma das pessoas ali reunidas.
De tal maneira que, quando aquelas pessoas saíam e o templo se esvaziava, essa riqueza do ambiente permanecia inalterada até a Missa seguinte, quando outros fiéis ocupariam aqueles espaços e encontrariam aqueles mesmos e precisos aspectos dispostos para a contemplação deles.
Na minha mente de menino formava-se a idéia — incipiente e confusa como só podia sê-lo na cabeça de uma criança — de que se tratava de uma graça do Divino Espírito Santo a pairar naquele ambiente, e que agia na alma das pessoas, levando-as a compreender e a amar as belezas da Igreja. Daí, também, a noção do sagrado do templo católico, casa de Deus, onde se entra para adorá-Lo.
“Querendo bem à Igreja, queria bem à mamãe”
A concepção artística do interior da Igreja do Coração de Jesus é muito própria a despertar essas impressões. Por exemplo, do banco onde mamãe e eu costumávamos ficar, podia-se ver a imagem do Sagrado Coração de Jesus, na nave esquerda, e a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, do lado direito. Eu considerava aquelas imagens, que sempre me tocaram, analisava as decorações em volta, as pinturas que representam cenas bíblicas, as outras imagens de santos e, sentindo também a presença de mamãe, pensava: “Como ela se harmoniza tanto com todo esse ambiente! Como tudo isso penetra na sua alma e faz um com ela! Querendo bem a ela, quero bem a isso. Mas também, querendo bem a isso, quero bem a ela!”
Embora eu não conhecesse o conceito de “reversibilidade”, na minha cabeça estava a idéia de que havia uma analogia, uma certa semelhança, uma como que reversibilidade entre a Igreja e mamãe.
Cumpre dizer que a Igreja me impressionava incomparavelmente mais do que mamãe. E se é verdade que o convívio com Dona Lucilia me ajudou a compreender a Igreja, mais ainda a Igreja me ajudou a amar mamãe, porque eu a amei por ser ela um reflexo daquela Igreja à qual eu devotei minha vida inteira. Se quis tanto bem a mamãe, foi porque percebi na sua alma um reluzimento da mesma graça que pairava na Igreja do Coração de Jesus.
Lógica e coerente, como o lado racional da religião
Essa ideia da reversibilidade entre o espírito de mamãe e a Igreja se acentuou ainda mais quando comecei a frequentar o Colégio São Luís e, neste, além do contato mais assíduo com as práticas de piedade, fui conhecendo, pelos ensinamentos dos padres jesuítas, o lado racional da religião.
Como sempre tive particular apreço pela lógica, de um lado, e, de outro, como os jesuítas raciocinavam muito bem, diante de todo raciocínio bem feito por eles eu me extasiava: “Isso está direito, concatenado, é assim que se raciocina!”. E através daqueles ensinamentos, eu admirava o pensamento sério da Igreja que chega às últimas conseqüências. Encantava-me e me alegrava, com a alegria que a certeza tem de sentir-se a si mesma.
E então, voltava-me para a figura de mamãe: “Veja como ela é uma simples senhora, uma mãe de família, mas, naquilo que posso discernir dela, como é semelhante a tudo isso que me ensinam da Igreja. Como ela é lógica, coerente e direita! Portanto, eu a amo e a quero, porque ela se parece tanto v com a Santa Igreja Católica!”

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência em 21/9/1982

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Ensinando a amar Nosso Senhor Jesus

Recordando o modo como Dona Lucilia lhe falava da doçura de Nosso Senhor, Dr. Plinio evoca seus primeiros encantos com o Divino Mestre e com a Santa Igreja, aos quais sua saudosa mãe lhe ensinou a amar desde a mais tenra infância.
Quando minha irmã e eu éramos pequenos, e nos preparávamos para a Primeira Comunhão, mamãe reforçava nosso curso de catecismo, contando-nos episódios da História Sagrada. E se hoje, passado tanto tempo, não sou capaz de distinguir os fatos que ouvimos dela e os que conhecemos na catequese, lembro-me entretanto do ambiente que mamãe criava ao narrar essa ou aquela cena do Antigo Testamento, uma parábola do Evangelho ou algum momento da vida de Nosso Senhor. Fazia-o de modo a nos imbuir dos sentimentos de piedade e devoção que um bom católico deve ter, ao se inteirar da história e da doutrina cristãs.
Salientava a doçura de Nosso Senhor e de Maria
Recordo-me de maneira especial que mamãe nos falava muito da doçura de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora, fazendo-nos compreender tudo o que essa doçura tinha de carinho, afabilidade e bondade verdadeiramente penetrantes. Ao mesmo tempo, ao dizer que “Ele era bom”, esse “Ele” vinha impregnado da ideia de uma majestade superior à dos reis, da infinita nobreza divina refletida, pela união hipostática, na natureza humana d’Ele.

Então, pelas descrições de mamãe, percebíamos como tudo quanto Ele fazia era repassado de serenidade, de significado, e de uma sabedoria que transcendia a qualquer outra no mundo. Tais eram a bondade e a superioridade absolutas de Jesus, as quais Dona Lucilia nos apresentava ao nos contar os episódios bíblicos. Sem deixar de nos fazer ver também — cumpre notar — um fundo de tristeza que transparecia no Divino Redentor, por causa da Paixão que sofreria por nós. Esse aspecto estava igualmente presente nas narrações dela.
Concepção lendária da Terra Santa
É preciso dizer, ainda, que mamãe imaginava um pouco lendariamente a Terra Santa. Quer dizer, para ela, os desertos da Judéia eram míticos e poéticos como os arenais de um Saara. Lembro-me de ela pronunciar certos nomes, por exemplo, Mar de Tiberíades: vinha de Tibério, imperador romano pagão, mas, ao dizer “Mar de Tiberíades”, na entonação da voz dela, parecia-nos ver as ondas se formando de modo prestigioso naquelas águas...
Quanto aos personagens do Antigo Testamento, mamãe os representava como profetas grandiosos, menos suaves e mais categóricos. Quando, mais tarde, conheci as imagens dos profetas do Aleijadinho, lembrei-me das descrições de Dona Lucilia e pensei: “Esses são bem os profetas que eu imaginava quando mamãe começou a me falar deles.”
Continua

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Preparação para compreender a misericórdia de Maria

Continuação do post anterior
Mas, insisto, era uma correção intransigente mesclada com tanto afeto que não hesito em afirmar ter constituído essa postura de Dª Lucilia uma preparação para eu compreender a superior e insondável misericórdia de Nossa Senhora. Tal ideia se vincou ainda mais no meu espírito quando pude contemplar a imagem da Mãe do Bom Conselho de Genazzano.
Chamou-me muito a atenção a inteira intimidade do Menino Jesus com Nossa Senhora, refletida até no modo pelo qual Ele envolve com o braço o pescoço d’Ela. E essa efusão de carinho me trouxe à lembrança a intimidade que eu tinha com minha querida e saudosa mãe, feita de respeito, cheia de admiração, cumulada de veneração e de ternura, mas verdadeira intimidade.
E mamãe soube ser pequena, afável, meiga, quando eu era ainda um menino em tudo dependente dela. Por isso, desde os primeiros momentos em que comecei a articular palavras, eu a chamei de “mãezinha”, e por não saber falar direito, eu dizia “manguinha”. Seja como for, era já a expressão da ideia do que havia nela de miúdo, de proporcionado ao filho pequeno, de exorável por mim, de compassivo para comigo. Essa era a noção que despertava em mim o contato com a mansidão e a bondade de Dª Lucilia.
Clemência para justos e pecadores
Bondade e mansidão inteiras que me ajudaram a compreender melhor a figura da Mãe do Bom Conselho, que expressa de maneira tão eloquente a infatigável clemência de Maria.
Dir-se-ia fluir da imagem um mundo de misericórdias para a alma boa que a contempla, assim como para a alma do pecador que por Ela não se sente rechaçado nem desclassificado. Pelo contrário, o semblante materno e acolhedor de Nossa Senhora lhe incute ânimo e o faz se sentir amparado. Do olhar da Virgem se depreende um imenso teor de santidade, que convida e encoraja a alma presa de pecados a rezar o “Lembrai-Vos”, a Lhe dizer, gemendo sob o peso de suas culpas, que n’Ela confia e n’Ela espera a salvação. Maria Santíssima se mostra então acessível, e oferece ao pecador o contato com sua insondável bondade.
Entretanto, não sei deveras se eu teria compreendido assim essa manifestação de clemência da Mãe do Bom Conselho, se não fosse o exemplo de bondade séria e de intransigência afetuosa que me foi dado conhecer, ao longo de várias décadas, na pessoa de Dª Lucilia...

Plinio Corrêa de Oliveira - Extraído de conferências em 6/5/1968 e 18/6/1968

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Dois legados maternos

A harmonia entre o afeto e a severidade na pessoa de Dona Lucilia, manifestada por ela ao formar seus filhos, muito contribuiu para que Dr. Plinio um dia compreendesse melhor a insondável e superior clemência de Maria Santíssima.
Na ordem moral, os dois legados mais preciosos que minha mãe me deixou foram, de um lado, a bondade, e de outro, a severidade sábia.
Nunca uma censura por irritação pessoal
Com efeito, em toda a medida do razoável, ela demonstrava uma bondade imensa, inclusive na hora de admoestar a mim ou a outro por algo de errado que tivéssemos feito. A censura era logo seguida de um perdão, de uma indulgência repassada de suavidade, sem qualquer reclamação caso o mau ato houvesse atingido a ela. Nunca, no momento de nos corrigir, entrava a reivindicação de um direito dela transgredido; não eram pitos decorrentes de uma irritação pessoal, mas sempre por causa de um princípio ofendido, como, por exemplo, o da autoridade materna. Contudo, no que dizia respeito aos seus próprios interesses, manifestava invariável paciência e se mantinha quieta, como se nada a tivesse contrariado.
Antes de querer bem à mãe, amar os princípios
A par da bondade, porém, não posso me esquecer da seriedade no olhar de Dona Lucilia ao nos repreender, a sua compenetração de que era preciso fazer prevalecer um princípio, e sua convicção de que, se eu não conformasse minha vida com aqueles princípios, meu valor aos olhos dela seria menor. Quer dizer, ela esperava ver em mim o filho que, antes de querê-la bem, amasse e observasse os ditames morais que deviam ser obedecidos e amados.
“Só três medalhas?”
Além do olhar sério, suas palavras também exprimiam a sabedoria e a gravidade inerentes à atitude materna de corrigir e formar um filho. Embora, como disse, nessas correções o carinho não estivesse ausente, a intransigência dela em relação a algum relaxamento meu se mostrava inteira, como pude comprovar num dos marcantes episódios de minha infância, quando ainda aluno do Colégio São Luís.
Certo ano, no apogeu de meu desempenho estudantil, recebi quatro medalhas na festa de distribuição de prêmios, à qual mamãe não costumava comparecer. Como até hoje acredito fazerem os alunos premiados, voltei para casa — ainda me lembro — vestido com roupa de marinheiro, ostentando alegre e ingenuamente os distintivos de meus triunfos escolares. Ao me ver chegar, Dª Lucilia me recebeu com intensas efusões de afeto e contentamento pela aplicação do filho.
No ano seguinte, porém, retornei com apenas três medalhas... Mamãe me acolheu na porta de casa, olhou para meu peito e disse:
— Só três?
Havia no seu tom de voz aquela intransigência da censura materna:

— O que aconteceu para você decair?
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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Um grande Sinal da Cruz antes de partir

Continuação do post anterior
Eu formara a ideia de que seria melhor, nas minhas condições, que mamãe não morresse durante a noite, pois a dificuldade de me locomover, somada a outros incômodos, não me possibilitariam de dar-lhe toda a assistência que eu gostaria de oferecer a ela nesse supremo momento. Quisera, antes, que fosse de manhã, depois de eu ter dado as orientações necessárias ao desenvolvimento do nosso apostolado naquele dia, e assim, poder estar ao lado dela quando Deus a chamasse a Si. Contudo, não imaginei que esse passamento se desse tão logo.
No dia seguinte, 21 de abril, acordei e perguntei por mamãe. Disseram-me que o estado dela permanecera mais ou menos o mesmo. Trouxeram-me o lanche da manhã e o jornal. Ora, mal acabara de lê-lo, o médico que a assistia entra no meu quarto e me diz: “Dr. Plinio, venha depressa. Dona Lucilia está morrendo!”
Tão rápido quanto me era possível naquelas condições eu me dirigi ao quarto dela, e assim que entrei, o médico me disse: “Ela já morreu”. Contou-me, então, que a respiração de mamãe tornara-se cada vez mais ofegante, mas ela não quis me chamar. Quando ele percebeu que eram seus últimos instantes, foi me avisar e, ao voltar, a viu fazer um grande Nome do Padre e, em seguida, estender as mãos ao longo do corpo. Entregara sua alma a Deus.
Tristeza envolta em suavidade
Apesar dos meus 60 anos, à vista de mamãe morta, chorei copiosamente, e em altos soluços, entremeados com frases de gratidão e de amor para com ela. Na desolação profunda em que me encontrava, repetia que ela era a luz dos meus olhos, o que havia de mais precioso para mim na vida. Lamentei não ter podido vê-la no derradeiro momento, e rezei muito por sua alma.
Depois disso, era preciso que eu me aprontasse, e dei as recomendações necessárias para se preparar o velório e o sepultamento. Curiosamente, enquanto fazia minha toilette, não obstante a imensa tristeza que me confrangia, senti-me tomado de uma tranquilidade suave e distendida, de maneira que o peso trágico do fato deixou de acabrunhar a minha alma. Assim me foi possível estar o tempo inteiro ao lado do corpo de mamãe, até a hora em que seria levado para o cemitério.
Era minha intenção acompanhá-la até à beira da sepultura. Porém, a ferida cirúrgica no meu pé ainda não estava inteiramente cicatrizada, de um lado; de outro, era-me muito penoso vê-la pela última vez no caixão, e este em seguida ser depositado no fundo da cova, coberto de terra... Não tive coragem. Permaneci no meu automóvel, à porta do cemitério.
No restante do dia passei recebendo os cumprimentos de parentes e amigos. Na manhã seguinte, atendendo aos conselhos dos médicos que cuidavam de minha recuperação, dirigi-me a uma fazenda que nosso movimento possuía no interior de São Paulo e ali fiquei até retornar para a Missa do Sétimo Dia de mamãe.
Um sorriso do Céu...
Uma última recordação. Como se sabe, segundo a doutrina católica, mesmo almas que praticaram a virtude neste mundo podem passar pelo Purgatório, a fim de se purificarem de alguma imperfeição. Se, conforme se lê em relatos de certas visões, até mesmo almas de grandes santos tiveram de pagar esse tributo, era natural que eu me perguntasse se a de mamãe não estaria ainda ali, purgando-se de qualquer defeito. Essa idéia me incomodava, e eu, com confiança na misericórdia divina, pedi a Nossa Senhora que me desse um sinal de que a alma de Dª Lucilia já estivesse na bem-aventurança eterna.
Com essa esperança, dirigi-me à Igreja de Santa Teresinha, no bairro de Higienópolis, onde seria celebrada a Missa do Sétimo Dia. Ocupei um lugar no primeiro banco, junto com pessoas de minha família, e notei que nos degraus do presbitério havia sido colocada uma mortalha feita de rosas vermelhas, tendo no entroncamento dos dois braços da cruz um lindo buquê de orquídeas.
Ora, no momento da Consagração, surpreendo-me com este fato extraordinário: pela fenda aberta num dos vitrais da igreja passou um raio de sol que incidiu exatamente sobre a cruz de rosas, deslocando-se de modo lento até se fixar no buquê de orquídeas. Mas, iluminou-o com tanta intensidade que a luz parecia penetrar as pétalas das flores e fazê-las refulgir por dentro.
Ao término da Consagração, o raio de luz deslizou em direção à porta oposta à sacristia e desapareceu. Porém, moveu-se de um tal jeito que me fez lembrar o andar de Dª Lucilia, e então me veio o pensamento, senão a certeza, de que aquele era o sinal que eu havia pedido: “ela está no Céu!” Essa ideia muito me consolou, e saí da igreja aliviado. Sem dúvida, podem as almas do Purgatório rezar pelas que estão na Terra. A de mamãe, se lá estivesse, estaria pedindo por mim. Mas, que alegria saber que ela já o fazia na visão beatífica, inundada daquela felicidade eterna que um dia, pela misericórdia de Nossa Senhora, nos inundará a todos nós!

Extraído de conferências em 11/1/1982 e 20/4/1991

domingo, 5 de outubro de 2014

Presença enternecedora

Acolhida à sombra da árvore que plantara
É interessante constatar como essa compaixão de mamãe para comigo, embora se manifestasse sempre que as circunstâncias a despertavam, ia adquirindo feições novas ao longo de minha vida. Quando eu era menino, ela inteira se debruçava sobre mim para me amparar. Mais tarde, no período de constituição do meu caráter, a solicitude dela se fez sentir em relação à luta que eu era obrigado a travar, como adolescente, para a minha própria formação. Quando homem maduro, eu notava nela uma espécie de legítima ufania, à semelhança de quem construiu um barco e se compraz ao vê-lo navegar: “Deixe-o singrar, alegra-me ver como ele enfrenta as ondas; sinto satisfação por ter feito isso, em ter tido um filho e o haver formado para que depois enfrentasse a vida de peito aberto!”. Essa era a alegria dela.
E quando se aproximavam seus últimos anos de vida, a missão protetora e formadora da compaixão dela, enquanto mãe, ia cessando. Ela sentia esse compreensível minguamento e, por sua vez, passou a como que “se encostar” na minha compaixão para com ela. Portanto, deu-se uma nobre e natural inversão da situação antiga, ela veio se acolher à sombra da árvore que ela mesma tinha plantado.
Presença sempre enternecedora
Seja como for, já com seus 91 anos, a presença dela continuava sempre enternecedora, cumulando-me de agrado. Durante toda a vida, a conversa de mamãe foi agradável, mas sua presença era ótima, pelo fato de sua pessoa irradiar algo muito mais valioso do que a palavra humana possa exprimir, e de comunicá-lo com doçura, suavidade, alegria, ao mesmo tempo com tanto recolhimento, tanta dignidade e seriedade, que eu jamais me saciava de estar perto dela.
Lembro-me de que, às vezes, estando eu trabalhando no meu escritório, ela entrava, sentava-se na cadeira de balanço que ali havia e permanecia quieta ao meu lado, desfiando seu rosário. Quiçá, movida pela generosidade materna, ela encontrasse algum entretenimento na minha presença, mas a recíproca era inteiramente verdadeira, e eu me comprazia de modo prodigioso em estar com Dona Lucilia: dizia-lhe algo afetuoso, fazia-lhe um carinho, e a deixava contente.

Assim transcorreu nosso convívio, até alguns meses antes de ela falecer.
Na véspera da morte, calma e serenidade
Em fins de 1967, comecei a notar os primeiros sintomas da doença que haveria de me prostrar durante semanas, culminando numa operação1. Quando retornei do hospital, mamãe ainda estava viva, mas havia envelhecido muito. Acredito que ela não tenha percebido que eu estive fora tanto tempo, ou ao menos não se manifestou a esse respeito.
A convalescença me obrigava a permanecer com a perna estendida durante todo o tempo, numa posição bastante incômoda e desagradável. Após esse período de penosa recuperação, quando eu apenas começava a poder andar com o auxílio de muletas, afirmaram-me que a saúde de mamãe se agravara de modo alarmante: ela caminhava para o fim.
Recordo-me que na véspera da morte dela, mamãe se achava muito pior do coração, e por isso passei o dia inteiro no quarto dela. A falta de ar a oprimia de tal maneira que a impedia de conversar, e ela sofria muito com o mal-estar e a agonia que a asfixia traz consigo. Entretanto, mantinha-se calma, tranquila, serena.

Continua 

sábado, 27 de setembro de 2014

Compaixão e serenidade de Dona Lucilia

Dr. Plinio evoca alguns aspectos da bondade de sua mãe, manifestada ao longo de uma edificante existência, até o derradeiro sinal da Cruz com que se despediu deste mundo. Talis vita, finis ita: tal como foi sua vida, repassada de fé e compaixão, tal se apresentou a Deus.
Um dos predicados morais de Dona Lucilia que mais me tocava e estreitava minha união com ela era sua compaixão. Em diversos episódios e circunstâncias me era dado notar a ternura de mamãe para comigo e o modo como considerava as necessidades de uma criança, máxime sendo filho dela. A fragilidade daquele ser pequenino despertava em seu coração materno um desejo de proteção, ao lado de uma compreensão íntima, pormenorizada e delicada das carências próprias às condições de um menino.
 Compassiva nas doenças do filho
Ela percebia bem como eu mesmo sentia as minhas debilidades, e me acompanhava com um olhar solícito, como quem diz: “Essa é a trajetória de todo homem. Mas, é natural que um homem tenha uma mãe, e que esta seja toda ternura para ele. É conforme à lei da vida que as coisas se passem assim; você deve se sentir compreendido em tudo e não ter nenhuma espécie de amor próprio falso que lhe faça esconder de mim a sua debilidade. Pelo contrário, coloque-a em minhas mãos, que eu tratarei dela”. Essa disposição me era manifestada com um sorriso cumulado de afeto, e da promessa de que ela atravessaria comigo aquele caminho semeado de dificuldades.
De maneira especial, a compaixão de Dona Lucilia se mostrava inteira quando eu adoecia. Nessas circunstâncias, seu desvelo e seu carinho eram levados ao extremo, com uma preocupação inteira por causa de minha doença. Eu, sempre observador, não deixava de considerar sua atitude ao entrar no meu quarto nas pontas dos pés, sorrindo, com um copo de remédio de homeopatia nas mãos, e dizer-me: “Filhinho, chegou a hora de tomar o medicamento”. Na verdade, era a consolação de minha alma tê-la ali perto, e a presença dela compensava a dor que eu sofria.
Como se sabe, as analogias na cabeça de uma criança são vivazes, e eu fazia correlação entre o refrigério da água com que eu tomava o remédio e a bondade de mamãe. Pensava: “Ela é para mim o que esta água é para meu corpo doente — um refrigério. Sinto o meu espírito refrigerado na companhia dela”.
O mesmo desvelo na maturidade de Dr. Plinio
Essa compaixão manifestou-se invariável ao longo de toda a vida dela. Por exemplo, quando eu já era homem feito e formado, morávamos numa casa na Rua Itacolomi, onde tive uma indisposição física muito forte. Mamãe, num tom afetuoso e inquiridor de quem havia percebido, me perguntou:
— Filhão, você está indisposto, não é?
— Meu bem, realmente estou, mas prefiro não recorrer aos seus médicos. Eu não gostaria de dizer “não” à proposta da senhora de chamar algum deles, mas sobretudo não quero dizer “sim”.
Ela, com sua calma característica, aproximou-se de mim e colocou a mão sobre minha testa, e só aquele contato o frescor de sua mão me transmitiu alívio e tranqüilidade. Disse-me: “Você está com febre”. E eu pensei: “Agora ela vai colocar o termômetro e este indicará 38°, 39°. Mamãe ficará preocupada e eu vou me meter em uma engrenagem que não me agrada em nada”. Ela pôs o termômetro e, após alguns minutos, verificou a temperatura.
— Não é nada. O que você quer fazer meu filho?
— Meu bem, quero ganhar tempo, deitado e tranquilo.
Então, ela trouxe uma cadeira do quarto, colocou-a próximo à minha cama, sentou-se e começou a rezar. Ali permaneceu durante horas, até anoitecer. Em certo momento, eu disse:
— Meu bem, estou com muita fome e a senhora vai querer que eu coma algo.
— Diga o que você quer que sua mãe traz. Ela mesma foi preparar o que eu pedi, serviu-me, conversamos um pouco, e quando nos despedimos ela me disse, no mesmo tom de carinho e solicitude: “De outras vezes, você não esconda nada de sua mãe, porque ela percebe e não vai lhe impor coisa alguma”.
Só então eu percebi como ela não considerava bagatela aquela minha indisposição. Entretanto, a rogos de Nossa Senhora, a Providência me favorecera com boa saúde e na manhã seguinte eu já estava recuperado. Assim que me levantei, fui ao quarto de mamãe para cumprimentá-la, tranquilizá-la e agradecê-la pelos cuidados da véspera. E retomamos a vida comum de todos os dias.

Porém, ficara-me a certeza de que, se a doença se agravasse, o desvelo dela se desdobraria até o fim. E, provavelmente, se eu morresse, ela não sobreviveria por muito tempo. 
Continua no próximo post.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Reflexo de um afeto

Entre os edificantes aspectos da pessoa de sua mãe, Dr. Plinio apreciava a elevada clave de espírito em que ela se situava e da qual provinham seu afeto e sua benevolência, tão atraentes quanto consoladores. Na verdade, Dona Lucilia procurava, habitualmente, considerar todas as coisas em função do parâmetro absoluto que é Deus
Já tive ocasião de mencionar que minhas observações em relação a Dona Lucilia começaram muito cedo, quando eu, menino de 2 ou 3 anos, acordava durante a noite e saía do meu berço — colocado ao lado da cama dela — para ir me sentar sobre o peito de mamãe. Abria seus olhos com a mão e começava a analisá-la.
Reflexo da clemência de Nossa Senhora
Essa relação baseada no afeto e na bondade teve um importante papel na minha compreensão acerca da insondável misericórdia de Nossa Senhora para com os homens, especialmente para com os pecadores. Quando eu próprio me senti objeto dessa clemência da Mãe de Deus, foi como se Ela me dissesse: “Eu perdôo tudo, e por mais que você cambaleie e se apresente a mim nesse estado de penúria espiritual, terei pena e o perdoarei”. O sentir essa disposição maternal determinava em mim a idéia da proteção e do afago desinteressados de Nossa Senhora para comigo: a misericórdia d’Ela sobrepuja os últimos limites de minha miséria, cobre-os com sorriso, com ternura, com sobras de complacência, só porque eu sou o Plinio...
Ora, em grau menor, eu sentia análogas disposições de mamãe em relação a mim. Portanto, sem eu saber, ela preparava meu espírito paracompreender a extraordinária misericórdia de Nossa Senhora. Quiçá eu não a tivesse entendido como a entendi, não fosse esse contato prévio com o afeto de Dona Lucilia.
Ungido pelo perfume da bondade
A par dessa profunda analogia com a ternura de Maria Santíssima, eu apreciava em Dona Lucilia a elevada clave de espírito em que ela se situava e a partir da qual nos dispensava suas manifestações de afeto e benevolência. Na verdade, mamãe procurava habitualmente considerar as coisas em função de algo mais alto, em função do parâmetro absoluto que é Deus, assim como procurava atraí-las para essa elevação de alma.
De maneira que me sentia a mim mesmo sendo visto desde essa clave, e quando Dona Lucilia me agradava, era algo desse patamar que descia sobre mim, e como que me ungia. Por exemplo, quando ela me fazia o sinal da Cruz na testa, antes de ir dormir, eu percebia que alguma coisa daquela alta clave me recobria como um azeite, um bálsamo, e me fazia bem. Mas, no sentido próprio da palavra: era perfumado, suavizante, e penetrava em mim como o óleo penetra no papel.
Junto com essa elevação, a bondade invariável para comigo e para com os outros. Revestida de uma certa tristeza, igualmente comovedora, por constituir um ápice de conúbio com aquela clave elevada, na qual ela muitas vezes se sentia só: “Moro nesse patamar, que é o lugar do meu abandono. Convido-os para estarem comigo e desejo sua companhia. Porém, se não vierem, aqui permanecerei sozinha.” Supérfluo dizer que essas qualidades de Dona Lucilia falavam imensamente à minha alma de filho...
Plinio Correa de Oliveira – Transcrito de conferência em 4/12/1985

Revista Dr Plinio n. 118

domingo, 31 de agosto de 2014

Semelhança com a misericórdia de Nossa Senhora

Continuação do post anterior
Em sentido análogo, lembro-me igualmente de quando recebi a graça que me marcou inteiramente a alma (e queira Nossa Senhora, para todo o sempre), da devoção à Santíssima Virgem, diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na própria igreja do Coração de Jesus.
Naquele episódio, estando eu ajoelhado, fitando de longe a imagem e para ela rezando, na miséria e na aflição em que me encontrava, conheci a misericórdia de Maria. Então me veio logo o pensamento: “É compreensível, porque mamãe também é assim. Em Nossa Senhora, é claro, num grau indizivelmente maior; porém, há uma semelhança”. E minha alma estava toda modelada, pelo convívio com Dona Lucilia, para receber uma coisa e outra. As últimas lágrimas que eu verti por mamãe, ainda foram marcadas por essas duas impressões.
“Tudo começou com o batismo de mamãe”
Assim sendo, não posso deixar de considerar apropriada a lembrança da data do batismo de mamãe, pois se tudo o que acima dissemos é verdade, esse tudo começou no momento em que sobre ela caíram as santas águas batismais.
Ela teve como madrinha — quanto isso é expressivo! — Nossa Senhora da Penha, invocada no bairro paulistano de mesmo nome, imagem à qual ela tinha, como todos os paulistas naquele tempo, uma profunda devoção. A igreja da Penha era uma espécie de miniatura de Aparecida do Norte, para onde se faziam romarias, peregrinações, etc.
É interessante observar como, iniciando-se tão cedo essa vinculação de mamãe com Nossa Senhora, essa primeira graça era ordenada para, desenvolvendo-se e frutificando-se nela, pousasse um dia em mim. Ela tinha, portanto, uma longa caminhada diante de si.
Na eternidade, sorrindo...
Indubitavelmente, a recordação dessa data foi um gesto grato a mim e, certo estou, também a Dona Lucilia. Se, pela infinita bondade divina, ela, como espero, se acha na bemaventurança eterna, nesta hora estará nos sorrindo...
Agradecendo a Deus, por meio de Maria Santíssima, o favor inapreciável do dom da Fé concedido a mamãe por ocasião de seu batismo, peçamos ao Sagrado Coração de Jesus permita que essa graça da Fé e da esperança, do amor a Deus, ao sublime, ao absoluto, o amor a todos os valores morais e sobrenaturais tão negligenciados no mundo hodierno, se torne sobre nós ainda mais intensa e nos conforte nas provações e lutas que havemos de enfrentar em nossa trajetória rumo ao Céu.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência em 29/6/1982

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

“Mamãe também é assim...”

Dr Plinio discorre sobre o nexo íntimo de causalidade entre o que possa haver de bom nele e a influência católica recebida de sua mãe, Dona Lucilia.
Senso católico
Com efeito, sempre que as solicitações de meus ouvintes me levam a recordar situações de minha infância e dos meus tempos de moço, mais a figura de Dona Lucilia me aparece com uma confirmação ainda mais vincada, mais acentuada do imenso papel dela para a formação do senso católico em mim.
Neste sentido, não me esqueço um episódio — diversas vezes narrado por mim — que se deu comigo na igreja do Sagrado Coração de Jesus. Aliás, não foi um fato isolado, mas repetido incontáveis vezes, talvez anos a fio, o qual entretanto ficou-me marcado de modo particular quando se produziu pela primeira vez. Na minha memória, aquele foi o momento arquetípico, gravado indelevelmente no meu interior, em que eu formei certa idéia de conjunto da igreja do Sagrado Coração de Jesus, enquanto assistia à Missa.
Formou-se pelo agrado sucessivo, espontâneo, das figuras, da cor interna do templo, dos vitrais, da atmosfera, do que pairava de sobrenatural, do rito, da liturgia, etc. Ainda que eu não entendesse com toda a profundidade o significado do santo sacrifício da Missa, tinha a idéia — concebível e proporcionada ao intelecto de uma criança — de se tratar da renovação incruenta do holocausto de Nosso Senhor no Calvário. Ora, eu acompanhava aquela celebração e, de repente, constituiu-se no meu espírito a noção de conjunto, envolvendo as belezas artísticas da igreja, sua atmosfera sobrenatural, o esplendor do culto e a renovação do sacrifício de Jesus. O intercâmbio, as reversibilidades de todas aquelas coisas se patentearam à minha alma, sem que eu conhecesse a palavra “reversibilidade”.
Conferindo com a alma de Dona Lucilia
Percebi esta inter-comunicação e compreendi haver por detrás de tudo um espírito, uma alma, uma causa superior que era Deus Nosso Senhor e o Divino Espírito Santo, agindo acima de tudo e a tudo sustentando. Essa reversibilidade fazia com que aquele conjunto brilhasse como um reflexo muito fiel, preciso, exato e rico da fisionomia do próprio Deus. E meu ato de Fé se manifestou inteiro: era a Santa Igreja Católica Apostólica Romana! E, ao mesmo tempo, um ato de amor: “Ela vale tudo e é tudo!”
Vinha-me, então, a esperança do Céu e a idéia dos esforços e da luta que eu deveria travar para alcançálo. E, com naturalidade assombrosa, para explicar-me essas noções todas, eu pensava em Dona Lucilia, que talvez estivesse junto a mim: “Isso é assim mesmo, pois a alma, o espírito de mamãe é assim. Logo, devo interpretar tal coisa e tal outra dessa maneira. É mesmo, confere com ela...”
E assim como aquele primeiro ato de Fé e de amor, pela graça de Nossa Senhora se estendeu pela vida inteira, também durante o longuíssimo convívio que a Providência determinou tivéssemos mamãe e eu, cada vez mais me fazia notório esse paralelo — “É claro, mamãe é assim” —, vendo nela um reflexo da Igreja, através dela contemplando melhor a Igreja e, conhecendo mais a Igreja, compreendendo melhor a ela.

Continua no próximo post

sábado, 16 de agosto de 2014

Emulação na virtude para formar os filhos

Seria oportuno ponderar que uma das atitudes que mais aflige o homem é a  inveja.  E  esta  nasce  das  comparações. A experiência na vida espiritual nos mostra que o costume de nos  compararmos  com  os  outros  é  um  dos erros mais funestos que se pode  cometer. Fazendo-o, logo nascem a  inveja, as feridas do orgulho, as más  ambições, e uma cascata de desejos  perniciosos que, não raro, darão entrada às tentações contra a virtude  da pureza.
Ora, essa forma de comparação  é algo que nunca vi em DªLucilia,  fosse em relação a ela, fosse em relação  aos  filhos.  A única ocasião em que ela se permitia de nos comparar com outros era quando nos passava alguma  repreensão.  Se havia uma criança que procedia melhor do que nós em determinado ponto, ela então a apontava como exemplo e  dizia: “Veja tal pessoa!”
Tratava-se, porém,  de uma  boa  e  compreensível  emulação  na  virtude, própria a nos educar. A não  ser  essa  atitude  formativa,  ela  jamais se comparava, nem a nós, com  ninguém. Era  uma  disposição  de  espírito em tudo coerente com a serena  e invariável retidão de sua alma.
Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência em 13/6/1982