sábado, 22 de dezembro de 2012

Anelos de elevação, gentileza e bom trato

Sempre solícita e diligente em tudo que dizia respeito à educação de seus filhos, Dª Lucilia aproveitava-se de todas as circunstâncias favoráveis para fazê-los progredir na formação de suas personalidades, bem como na aquisição de valores morais que os tornassem aptos a enfrentar as vicissitudes desta vida. Nessa preparação tinha lugar de destaque a arte de conversar, na qual Dª Lucilia era exímia.
As crianças introduzidas no mundo dos adultos
Em sua residência da Alameda Barão de Limeira, costumava-se congregar grande número de parentes, sendo habitual transformar-se a ampla sala de jantar em palco de prolongados entretenimentos e debates, que se estendiam após as refeições, já de si demoradas.
Concluída a sobremesa, as pessoas se sentavam confortavelmente nos sofás e poltronas dispostos nos cantos da sala e, enquanto sorviam a pequenos goles um aromático cafezinho, prosseguiam a conversa. Esta, sempre animada, comportava com frequência o trato de temas elevados, feita ao mesmo tempo com naturalidade e distinção. Naquela época, as conversas desse tipo, apesar de espontâneas, obedeciam a regras não escritas em nenhum manual e constituíam uma verdadeira arte, que o aparecimento do cinema e, mais tarde, do rádio e da televisão, extinguiu por completo.
Saber manter presa a atenção dos interlocutores, conseguir interessá-los por um tema, fazê-los participar sem constrangimento do animado diálogo, eram habilidades de espírito que tinham seus campeões, cujo mérito era vivamente apreciado pelas pessoas cultas. A tal ponto que a história sempre registrou os grandes causeurs de cada época. Um deles foi um bisavô de Dª Lucilia, o Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, notável parlamentar do Segundo Reinado, não lhe tendo ficado atrás alguns de seus descendentes, que cultivaram e transmitiram o elevado dom da conversação.
A partir de certa idade, as crianças eram admitidas à mesa dos adultos, mas sem tomar parte na troca de ideias, a não ser quando alguma pergunta era dirigida a elas ou se lhes pedia uma opinião. Eram introduzidas desse modo ordenado no mundo das pessoas de mais idade, o que lhes ajudava a desde cedo tomar posição definida sobre as grandes questões do momento.
Aprendendo a julgar os fatos com Dª Lucilia
Naqueles pós-jantares, se alguém, folheando o jornal, encontrasse uma notícia interessante, lia-a em voz alta aos demais, contribuindo para alimentar a prosa. Dª Lucilia, porém, para melhor formar seus filhos, não se contentava em ouvi-la de modo passivo. Pelo contrário, procurava explicar-lhes a importância dos diversos fatos estampados nos diários. Quando ela reputava que algo tinha especial interesse, dizia em voz baixa:
— Meus filhos, prestem atenção no que foi comentado agora.
Habitualmente, as matérias tratadas pelos mais velhos iam variando e, ao discorrerem sobre acontecimentos relacionados com os assuntos pouco antes assinalados por Dª Lucilia, ela voltava a chamar a atenção dos pequenos, sempre em voz baixa:
— Meus filhos, isto também é muito importante.
E assim Dª Lucilia os educava, proporcionando-lhes de forma paulatina mais experiência e conhecimento, a fim de poderem relacionar os temas entre si e hierarquizá-los. Não tardou Plinio em perceber que os assuntos que Dª Lucilia mais comentava nem sempre eram os que saíam em manchete. Pelo contrário, não raras eram as notícias à primeira vista secundárias às quais ela dava mais importância. Isto despertou-lhe a curiosidade e o desejo de conhecer as razões desse modo de proceder. Sem muita dificuldade, concluiria ele: “Mamãe dá mais importância aos fatos que se relacionam com a Religião...”
Personagens históricos, modelos a imitar
Ao lado da arte de conversar, do interesse por narrações de histórias e de acontecimentos grandiosos do passado, bem como do senso do maravilhoso que Dª Lucilia procurava despertar nas crianças, ela se preocupava igualmente em lhes apresentar modelos que lhes pudessem orientar os passos. Foi assim que, em 1920, quando estiveram em visita a São Paulo o rei Alberto da Bélgica e sua consorte, a rainha Elizabeth, Dª Lucilia não perdeu a oportunidade de mostrá-los aos pequenos. Na ocasião, quando a comitiva dos soberanos passava pela Alameda Barão de Limeira, ela ressaltou aos olhos dos filhos a categoria, a distinção e o heroísmo daquele rei que, na Primeira Guerra Mundial, soubera defender com intrépida coragem seu país contra o invasor alemão. Fez notar também a postura correta da dama de honra da Soberana e comentou: “É assim que se deve ser!”
Era, portanto, explícita a intenção de apresentar aos filhos tais personagens históricos como modelos a imitar.
Última fantasia
Nesses seus preciosos desígnios de formação, Dª Lucilia idealizava para seus filhos (por ocasião dos inocentes festejos de carnaval daqueles tempos) fantasias que correspondiam aos modelos a eles propostos por ela.
Plinio e Rosée, entretanto, no início da década de 20, já iam abandonando a meninice. As tragédias e desilusões da vida estavam cada vez mais presentes aos olhos dos jovenzinhos, não lhes cabendo mais algo que não condissesse com a realidade, como eram tais disfarces.
Todavia, estando a família em Águas da Prata na época do carnaval, houve uma festa no hotel em que se hospedavam, e se tornava um tanto pesado e desgracioso, ante parentes e conhecidos, não participarem da alegria geral. Dª Lucilia então, habilidosamente, improvisou para seus filhos trajes típicos espanhóis. Seria a última vez que Plinio vestiria uma fantasia. Como nas ocasiões anteriores, ela soube dar-lhes um caráter muito mais real que ilusório.
Em consonância com aquela formação que lhes proporcionava, em ordem a admirar a tradição, ela procurava sempre, nessas circunstâncias, exprimir em trajes os valores de uma nação ou de um tipo humano determinado. No caso concreto, o que ela procurava incutir nos filhos de forma bem autêntica era a Espanha católica, das épicas touradas, dos grandes santuários e dos guerreiros cristãos.
“Ah! Agora o mundo entrou em seu verdadeiro eixo...”
É por essa época, em que os trens se mostravam ainda vagarosos e pouco estáveis, que um susto, seguido de aflição, não só marcará a pré-adolescência de Plinio, como deixará novamente transparecer o entranhado amor dele por sua querida mãe.
Dª Lucilia se encontrava em Águas da Prata. Iam ter com ela Dr. João Paulo, o filho e a governante deste. Ora, durante o percurso de trem, como acontecia por vezes, Plinio sentiu enjoo. Assim, quando de uma parada na estação de Campo Limpo, antes de Campinas, pediu licença ao pai para sair e tomar ar. Desceu à plataforma e pôs-se a percorrê-la tranquilamente de uma ponta a outra.
De repente ouviu um apito e notou que o trem se punha em movimento. Correu e, quando ia saltar, sentiu que decididas mãos o seguravam vigorosamente por trás, impedindo-o de realizar seu intento. Tratava-se da Fräulein que, muito perspicaz, também descera para não perdê-lo de vista.
— E agora, o que vamos fazer? — perguntou ele.
— Não tem nada. Vamos nos encontrar com seu pai em Campinas.
— Mas, como papai vai tomar contato conosco?
— Isto é muito simples. Vou falar com o chefe da estação. Ele passará um telegrama para a estação de Campinas, pedindo que avisem “o senhor que procura um filho, que o menino está em Campo Limpo e partirá para lá no próximo trem de tantas horas”.
Plinio pensou: “Há o risco de papai adormecer e não perceber o trem passar por Campinas”. Mas isto não se deu. Ao chegarem a Campinas, encontraram Dr. João Paulo tão satisfeito por ver resolvido o problema, que não continha seu afável e generoso riso pernambucano.
Passaram a noite num hotel daquela cidade e no dia seguinte Plinio se encontrava entre os braços de sua mãe. De forma instantânea configurou-se em seu interior a ideia: “Ah! Agora o mundo entrou em seu verdadeiro eixo...”
Pêsames pela morte da Princesa Isabel
Ao longo dos anos, desde 1912, quando se conheceram em Paris, a mãe de Dª Lucilia manteve assíduo contato epistolar com a Princesa Isabel e com a dama de honra desta, a baronesa de Muritiba. Evocativas de outras eras, algumas dessas missivas foram cuidadosamente conservadas pela filha, possibilitando-nos degustar agora um pouco daquele elevado relacionamento.
As cartas endereçadas à matriarca dos Ribeiro dos Santos, em geral lhe chegavam às mãos no final do almoço. Era a hora em que Luís, o copeiro, como de estilo, as apresentava a Dona Gabriela numa salva de prata.
Nessas ocasiões era comum estarem à mesa vários membros da família, que com indisfarçável interesse ouviam, por exemplo, Dona Gabriela anunciar: “Acaba de chegar uma carta da Princesa Isabel...”, e ler em voz alta as palavras da imperial signatária. Por vezes, como no caso a seguir, tratava-se de um simples postal:
Minha querida Dª Gabriela
Muitíssimo lhe agradeço seu telegrama por ocasião de nosso grande dia 13 de Maio. A baronesa de Muritiba lhe dará noticias de nós todos.
Sua muito afeiçoada
Isabel Condessa d’Eu Boulogne-sur-Seine, 4 de junho de 1917
Nesses momentos todos prestavam atenção, e era patente que seus espíritos ficavam tomados de um passageiro enlevo, do qual brotavam comentários elogiosos.
Próximo ao fim daquele ano, chegou a notícia do falecimento da Princesa Isabel, que encheu de tristeza os corações, em especial o de Dª Lucilia. Sua mãe redigiu um telegrama de pêsames para o Conde d’Eu e demais membros da Família Imperial: Queira Vossa Alteza aceitar...
Plinio, que fazia sozinho, havia já algum tempo, suas incursões ao centro da cidade, foi incumbido de passar esse telegrama. Décadas depois, ele ainda se lembraria da reação da funcionária ao ler as primeiras palavras da mensagem. Ela se voltou para uma colega e disse:
— Fulana, venha aqui depressa ver que beleza!... Veja que coisa linda!
Tratava-se presumivelmente de uma pessoa em dia com as modas e costumes mais avançados, e que, naquele instante, fora tocada por uma brisa de tradição. Aquelas simples palavras de pêsames dirigidas a um Príncipe constituíam um símbolo dos tempos passados, que naqueles já tão modificados anos ainda exerciam sua benéfica influência.
Não nos é difícil imaginar o apreço com que Dª Lucilia deve ter acompanhado tal correspondência, tão adequada a seus anelos de um mundo onde só reinassem benquerença, gentileza, elevação e bom trato...
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Lembranças e riquezas de outrora


Já vimos em outros artigos como Dª Lucilia usava seu esplêndido dom de narradora para, por meio de histórias dos antepassados, educar seus filhos no desejo de imitar os bons valores familiares. Entre seus temas prediletos estavam certos episódios ocorridos no Brasil imperial, que lhe traziam saudosas recordações. Um exemplo.
 O avô de Dª Lucilia ensina a Imperatriz a dançar
Dª Teresa Cristina, sempre boa esposa e mãe exemplar, atraiu as afetuosas atenções de Dª Lucilia por causa de um infortúnio que a acompanhara desde os seus primeiros dias.
Com tocante bondade, contava Dª Lucilia que o Barão de Cairu fora enviado por D. Pedro II à Europa, a fim de lhe escolher uma esposa. O Imperador, como é natural, desejava que entre outros predicados da futura Imperatriz estivesse a beleza. O barão entrou em contato com representantes de várias cortes europeias, à procura de uma princesa ideal, e como não havia ainda chegado a era da fotografia, mandava ao Imperador medalhões em esmalte, reproduzindo as fisionomias das pretendentes, para que o soberano escolhesse a noiva.
Quando chegou às mãos do Imperador o retrato da Princesa Teresa Cristina, filha do Rei das Duas Sicílias, sua formosura o encantou desde logo, e ele decidiu casar-se com ela. O matrimônio realizou-se por procuração e o irmão da noiva, o Príncipe Leopoldo de Bourbon Parma, conde de Siracusa, representou o augusto consorte na cerimônia. Pouco depois a princesa embarcou para o Brasil.
Logo que o navio aportou no Rio de Janeiro, D. Pedro II, acompanhado da corte, foi a bordo receber, com toda a pompa, a esposa. Ao vê-la de longe caminhando em direção a ele, o monarca notou desde logo que ela mancava, e ao lograr discernir-lhe os traços do rosto, perdeu a fala. Em nada se parecia com a fisionomia do medalhão!
Pelo protocolo, uma vez chegada diante dele, ela devia fazer uma reverência, a ponto de quase se ajoelhar. E, por sua vez, ele deveria segurá-la e beijar-lhe a mão. D. Pedro II, de tão aturdido, deixou que Dª Teresa Cristina tocasse com o joelho no chão...
Naqueles bons tempos de honra e de compromisso sério, um matrimônio realizado, ainda que simplesmente por procuração, não mais era desfeito. Principalmente se os consortes fossem de Casas Reais. Assim, D. Pedro II se conformou com o irremediável drama que se estabelecera na vida de ambos. Por seu lado, quanto a Imperatriz desejaria que seu esposo jamais houvera tido aquela desilusão!
O sofrimento de Dª Teresa Cristina crescia de intensidade por ocasião das festas na Corte, pois, devido a seu defeito físico, julgava que lhe era impossível dançar, não podendo portanto ser a alma daquelas solenidades sociais.
Numa noite de baile no Palácio Imperial, Dr. Gabriel — avô de Dª Lucilia — então deputado por São Paulo, ao percorrer aquelas belas e luxuosas dependências, encontrou Dª Teresa Cristina sozinha, meio tristonha, sentada no sofá de uma pequena sala, enquanto no salão vizinho todos participavam alegremente da dança, ao som de melodiosa orquestra.
Ao vê-la ali isolada, dela teve pena. Aproximou-se, fez uma reverência, ela lhe deu a mão a beijar e o convidou a sentar-se numa cadeira ao lado. Com o incomparável dom da conversa que possuíam os Ribeiro dos Santos, em pouco tempo Dr. Gabriel proporcionou à Imperatriz a oportunidade de pensar noutros temas que não seus aborrecimentos. Em determinado momento, ele, que já observara como a soberana caminhava, surpreendeu-a com uma sugestão:
— Se Vossa Majestade me der licença, posso tentar ensinar-lhe um modo de dançar...
Dª Teresa Cristina, a princípio, não quis acreditar que fosse possível isso, mas Dr. Gabriel insistiu com muito respeito e lhe propôs fazer, naquela sala, uma experiência. A Imperatriz aceitou e ensaiou uns passos de dança. Ele ia explicando como apoiar com certo jeito o pé no chão, a fim de contornar a dificuldade, e ela rapidamente aprendeu como devia proceder. Ao perceber que já estava bem segura, Dª Teresa Cristina sugeriu a Dr. Gabriel entrarem no salão e dançarem na presença de toda a corte. Qual não foi a agradável surpresa dos presentes ao verem a Imperatriz, com toda a normalidade, constituir com Dr. Gabriel o par por excelência daquela noite de gala!
Dª Lucilia, que já era mocinha quando se passaram semelhantes acontecimentos, sabia ilustrar a história da família Imperial através de pequenos fatos, como o narrado a seguir.
A almofadinha de alfinetes da Imperatriz
Certo dia Dª Lucilia esteve na residência de uma senhora que possuía, como era costume nas boas casas de outrora, em certo salão da casa uma vitrine com bibelots. Depois de os ter elogiado, a visitante comentou:
— Perdoe-me a pergunta, mas por que razão se encontra em meio a objetos tão bonitos essa almofadazinha tão comum?
A dona da casa respondeu tratar-se de uma recordação recebida da viúva de um ex-Presidente da República, senhora que, estando para falecer, lha entregou revelando sua procedência.
Quando foi proclamada a República, após a ocupação do Palácio Imperial por tropas republicanas, as esposas dos chefes vitoriosos tiveram curiosidade de conhecê-lo por dentro. Foi-lhes fácil obter autorização do governo provisório para a visita.
Ao entrarem, o Palácio jazia completamente deserto. Percorreram um a um os vários salões, a Sala do Trono, os apartamentos. À medida que caminhavam, iam sentindo uma espécie de aperto na garganta, uma crescente emoção as envolvia. Por fim, chegaram ao quarto dos soberanos. Estava tudo como se há pouco tivessem saído. Via-se que o abandonaram às pressas, deixando em cima das cadeiras algumas roupas de que não mais necessitariam, além de vários objetos esparsos. Esse quadro causava a sensação de haverem eles recém passado por ali.
As senhoras se impressionaram profundamente. Uma delas viu, em cima da mesa de toilette da Imperatriz, singelo objeto: uma almofadinha de seda, preenchida com ervas, que servia para as senhoras fixarem alfinetes. Notando que aquilo não tinha nenhum valor econômico e querendo a todo custo levar uma recordação da Residência Imperial, aproveitou-se de um momento em que as amigas não estavam prestando atenção, pegou a pequenina almofada e a guardou em sua bolsa. Durante décadas não revelaria a ninguém esse gesto.
Quando sentiu a morte se aproximar, ao receber a visita de uma amiga, entregou-lhe aquele objeto, certa de que ela também lhe daria o devido apreço.
Riquezas da tranquilidade de outrora
Fatos como esse da vida passada constituíam com frequência tema de conversa para Dª Lucilia e os seus, numa feliz época em que a inexistência dos modernos meios de comunicação deixava que, vagarosamente, o tempo corresse permitindo melhor se degustar uma vida tranquila, confortável e serena.
As famílias, conservando ainda traços patriarcais, formavam pequenos mundos cheios de vitalidade que, de algum modo, bastavam-se a si próprios. Seus numerosos membros conviviam muito entre si, pois se viajava pouco, e a vida familiar girava em geral em torno da casa do respectivo “patriarca”. Este, por vezes, chegava a reunir à sua volta gerações sucessivas de descendentes; mútuo respeito, cordialidade e atenção eram as notas tônicas do relacionamento entre eles.
Nesse ambiente, coberto pela bênção de Deus, a serenidade fazia uma das alegrias da vida, a tal ponto que, ao se despedirem as pessoas, antes de se recolherem para dormir, não era raro ouvir-se:
— Deus lhe dê uma noite tranquila.
Não era diferente a existência no palacete Ribeiro dos Santos. Por volta das cinco e meia da tarde os homens retornavam do trabalho e ficavam no living da casa, ou então no terraço, lendo o jornal e conversando distendidamente sobre tudo e sobre nada, enquanto desfrutavam a fresca brisa do entardecer.
Dr. João Paulo, esposo de Dª Lucilia, junto com um cunhado ou algum irmão de sua sogra, saíam a passear a pé, após a refeição, enquanto as senhoras iam fazer tricot. Ao voltarem os homens, ficavam todos ainda longo tempo em conversa na sala, até que o relógio fazia soar lentamente dez badaladas, lembrando que o serão caminhava para seu fim.
Que monotonia! será alguém levado a pensar, e talvez com certa razão. Porém, era essa mesma calma que proporcionava ao espírito humano condições para a reflexão, para o operar do pensamento, do qual brotariam as grandes realizações. Um dos frutos dessa tranquilidade foi sendo destilado ao longo dos séculos, e resultou em precioso licor, que os homens civilizados degustavam agradados, e cujo segredo o infeliz habitante da babel contemporânea perdeu de todo: a arte de conversar.
Nesta habilidade também se distinguiu Dª Lucilia, que a herdou de seus maiores e a soube cultivar de um modo tal que, ainda na extrema ancianidade, sabia como ninguém cativar seus enlevados ouvintes...
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Estímulos e alegrias na formação dos filhos

Confiando nos exímios préstimos de Fräulein Mathilde (a governanta que trouxera da Europa), Dª Lucilia deixava a cargo desta boa parte da responsabilidade no tocante aos estudos de seus filhos. Se Plinio preparava as lições e fazia os exercícios prescritos pelos professores, se levava cada dia para o colégio os livros correspondentes às matérias, se Rosée estudava as lições de piano... todas essas pequenas providências ficavam por conta da meticulosidade germânica, que era exercida com precisão.
Assim, por exemplo, nas tardes de quinta-feira — período de folga no Colégio São Luís — quando os meninos estavam despreocupados, brincando no jardim, desfrutando da alegria de um dia sem aulas, a Fräulein Mathilde ia verificar se os cadernos de Plinio estavam em ordem e se os deveres tinham sido cumpridos. Quando descobria algum “esquecimento”, procurava o faltoso:
 — Pliniô! Você se lembra que tem três equaciones de álgebra para resolver ainda hoje, e apresentar amanhã no São Luís?
Por trás da pergunta da Fräulein o menino sentia o peso da autoridade de Dª Lucilia, que não transigia com relaxamentos nos estudos. Por outro lado, via como isso era razoável. E conformado lá ia resolver a complicada equação: a2+2ab+b2=(a+b)2...
Em compensação, a afabilidade com que Dª Lucilia o chamava para saborear o suculento lanche do fim dos estudos, fazia-lhe degustar melhor o bem-estar do dever cumprido, da consciência tranquila e da vida em estado de graça.
Relíquias do passado
Dessa época em que Plinio estudava no Colégio São Luís, Dª Lucilia guardou consigo, até o fim de seus dias, inúmeras recordações, como santinhos distribuídos pelos professores, boletins escolares, medalhas, diplomas, e até mesmo uma ou outra redação. Estas bem ilustram a elevação de espírito com que seu filho fora educado por ela, pois pelos frutos se conhece a árvore.
Eis uma das composições, escrita por ele em 1919, que atravessou as décadas e chegou até nós:
Monótono e imenso, o deserto do Sahara só é entrecortado por pequenos rios, e também lá existem os oásis, único refúgio do viajante contra sede e fome.
O poderoso monarca da Abissínia atravessava um desses extensos areais, e de repente, viu uma palmeira, em cuja folha resplandecia o orvalho, brilhante da natureza, e o rei disse: “vinde ó gota adornar meu turbante”, mas a gota não veio.
Tempos depois, passava um cavaleiro, era cruzado, e ia defender os cristãos, e o cavaleiro, morto de sede, viu a gota, chamou-a e ela caiu-lhe, a refrescá-lo, nos seus lábios. Caiu porque era aquele, que ia defender a religião de um Ente supremo que muitos homens não conhecem, mas cuja glória a natureza canta.
Plinio Corrêa de Oliveira
 “Só três medalhas, meu filho?”
Dª Lucilia sempre se empenhou em transmitir seu constante desejo de perfeição a seus filhos.
No fim do ano letivo, os padres jesuítas do Colégio São Luís organizavam uma solene sessão, para distribuir prêmios aos alunos mais bem classificados. Para ela eram convidados os pais dos meninos e certas pessoas de destaque na sociedade, chegando às vezes a estar presente o próprio Governador do Estado, por frequentar esse colégio a flor e a nata de São Paulo.
O ato incluía peças de teatro, apresentações musicais, declamações, discursos, feitos pelos próprios alunos, devidamente orientados pelos padres. Chegava por fim o momento da entrega das medalhas. Para cada matéria havia três categorias diferentes: a de ouro, a de prata e a de bronze. Ao ouvir seu nome citado, o laureado subia ao palanque, e o próprio pai ou mãe lhe colocava a medalha no peito. Às vezes, para honrar alunos mais destacados, alguma autoridade o fazia.
Toda aquela aparatosa cerimônia estimulava altamente os meninos a se aplicarem durante o ano, a fim de serem louvados de público ante seus conhecidos.
Houve um ano, porém, em que Dª Lucilia, por estar doente, não pôde comparecer à solenidade. Quando Plinio voltou para casa, foi logo até o quarto dela, encontrando-a recostada na chaise longue. Vestido ainda a rigor e com as medalhas no peito, recebeu os abraços e beijos dela, que logo em seguida o afastou um pouco para vê-lo melhor, e lhe perguntou com certo tom de desapontamento:
— Mas só três medalhas, meu filho?!
— Mas, mamãe — respondeu ele — uma é de ouro! No ano passado eram quatro, mas todas de prata.
Ela quis então saber a qual das matérias correspondia a de ouro. A explicação deixou-a duplamente satisfeita: pelo prêmio e pela matéria. Seu filho havia conquistado o primeiro lugar em francês. Abraçou-o então de novo, com redobrado afeto.
Plinio se aprofunda na cultura francesa
Como admiradora da cultura francesa, Dª Lucilia tinha particular satisfação em ver Plinio enveredar pelo mesmo caminho. Conforme vimos anteriormente, assinava para Rosée a Semaine de Suzette (com as deliciosas histórias da camponesa Bécassine), e ela própria lia L’Université des Annales, cuja coleção guardava longe do alcance das crianças, num armário do escritório de Dr. João Paulo.
Por essa época, o médico da família diagnosticou em Plinio um incipiente desvio da coluna, aconselhando-lhe repouso diário de uma hora sobre a superfície reta e dura do solo. Dª Lucilia, maternalmente irredutível, aplicou a receita à letra, reservando para isto a hora da sesta. E para evitar a seu filho a tentação de passar para a cama, escolheu o escritório de Dr. João Paulo como local do descanso.
Chegada a hora, estendia um lençol sobre o assoalho, encostava as venezianas e fazia o menino se deitar. Ele achava tudo isto aborrecidíssimo. Não dormia bem e, por outro lado, não tinha nada para se entreter. Até que um dia casualmente pegou uma das revistas da coleção de L’Université des Annales e se embrenhou pelas luminosas veredas da história.
Se viesse a ter conhecimento disso, Dª Lucilia não aprovaria essas leituras. Entretanto foi através delas que seu filho aprofundou-se no fascinante universo da cultura francesa. Aliás, modas, estilos arquitetônicos, literatura, teatro, culinária, tudo na São Paulo de então exalava ainda o requintado aroma francês, a ponto de nas boas famílias se falar frequentemente à mesa nessa língua, sobretudo quando se desejava que criados ou crianças não entendessem a conversa.
Uma atriz que não se deixou dobrar pelo infortúnio
Fizera história a vinda ao Brasil de uma atriz francesa de grande fama mundial: Sarah Bernhardt. Dª Lucilia gostava de contar as peripécias da passagem dela por nosso País, sem perder ocasião de tirar lições do evento, úteis à formação de seus filhos. Fazia-o nestes termos:
No teatro ninguém havia mais célebre do que ela. Favorecida de todos os lados, fez uma excursão aos Estados Unidos, onde ganhou rios de dinheiro. Na França, sempre representava na “Comédie Française” e no “Opéra”, também com altos proventos. Mas ela não se satisfazia e gastava loucamente. Quando se entra pelo caminho da vaidade e da ostentação, não há o que chegue para saciar os caprichos.
Então, teve a ideia de vir à América do Sul. No Teatro Municipal do Rio de Janeiro, merecidamente famoso por sua riqueza, representou uma peça durante a qual, em certo momento, devia aparecer sobre um alto muro, jogando-se depois para o outro lado deste ao chão... Estava combinado que no lugar onde cairia estariam colocados vários colchões. Ela não conhecia o Brasil... Sem tomar a cautela de olhar para baixo, atirou-se... Ouviu-se então um grito lancinante que sobressaltou todo o teatro. Por esquecimento de um funcionário, os colchões não estavam no local combinado, e ela quebrou a perna.
Os médicos, com os parcos recursos daquele tempo, viram-se na contingência de lhe amputar o membro ferido. E nesse estado voltou para a Europa. Bem se pode imaginar a tragédia que esse acidente representou para ela: cair, de repente, dos galarins da fama para uma cama de hospital, condenada a não mais poder representar, a não mais ser aplaudida, admirada, quase idolatrada por seu magnífico talento.
No entanto ela não se deixou dobrar pelo infortúnio. Os médicos de Paris lhe colocaram uma perna artificial, e à custa de muito esforço conseguiu aprender a andar tão bem que não se lhe notava a deficiência. Quando voltou ao palco do “Opéra” pela primeira vez, caminhando elegantemente como se nada tivesse acontecido, o público entusiasmado se levantou e a saudou com uma prolongada e merecida ovação.
O fanatismo por Sarah Bernhardt era tal que, quando ela esteve aqui em São Paulo, os estudantes puxavam a carruagem dela, sentindo-se honrados com isso. Quando visitou a Faculdade de Direito, receberam-na jogando suas capas ao chão, formando, desse modo, uma espécie de tapete para ela passar.
Dª Lucilia tinha pena da famosa atriz pela tragédia ocorrida e o deixava transparecer em sua narração. De outro lado, não se esquecia de ressaltar o mérito dela ao enfrentar heroicamente a adversidade, o que constituía um belo exemplo a ser admirado e imitado por Rosée e Plinio.
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João. S. Clá Dias.)

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Cuidados e desvelos maternais

Quiçá a fase crucial da vida de uma pessoa seja a adolescência. É a época em que lutam na alma tendências boas e más que, reprimidas ou cultivadas, exercerão influência até o fim da vida. É a hora em que a inocência corre perigo e, infelizmente, quase sempre naufraga. No 5º aniversário do falecimento do varão católico que foi Dr. Plinio — homem de profunda fé, de fortaleza inquebrantável e de pureza virginal — é bem o momento de lembrar o decisivo apoio e a vigilância de sua querida mãe naquela difícil fase da vida.
Como vimos em anteriores posts, Dª Lucilia se esmerava por dar a seus filhos, em casa, a melhor educação possível. Contudo, em 1919, tendo Plinio atingido a idade adequada para tal, viu-se ela na contingência de, não sem grande apreensão, ter de matriculá-lo numa escola.
Naturalmente deveria ser a melhor de São Paulo na ocasião, o Colégio São Luís, dos padres jesuítas. Era sob a orientação dos discípulos de Santo Inácio que o menino devia continuar seus estudos, mas isto não bastava para tranqüilizar seu maternal coração. Possuía ela inteira noção dos perigos que, já naquele tempo, podia acarretar o convívio entre estudantes.
Seu filho resistiria ou não, ao entrar em choque com um mundo em diversos aspectos oposto à preservação moral inerente à atmosfera do lar? Só o futuro o diria.
Um dia o próprio Plinio abordou o assunto com sua mãe. Seus primos, que já frequentavam aquele colégio, haviam-no convidado insistentemente a ir estudar também com eles. Um primo mais chegado, a fim de atraí-lo com mais facilidade, dissera que no pátio do recreio havia muitas cerejeiras, sendo um dos passatempos dos alunos comerem dessas saborosas frutas no intervalo das aulas.
o Colégio São Luís, dos jesuítas, então dirigido pelo
Padre Du Dréneuf (no destaque)
À tardezinha, quando Dr. João Paulo voltou do trabalho, Dª Lucilia tratou com ele do assunto. Ficou acertado que ele iria ao Colégio São Luís no dia seguinte falar com o reitor, Pe. du Dréneuf, para matricular o filho. Tudo se fez sem a menor dificuldade. O sacerdote, recebendo-o amavelmente em sua sala, expôs o sistema e o horário do estabelecimento, informou que material Plinio necessitaria levar, e em pouco tempo estava o assunto resolvido. Despediram-se com cortesia e voltou cada um aos seus afazeres. O jesuíta, satisfeito por receber um aluno a mais; Dr. João Paulo, aliviado por ter um problema a menos para solucionar.
No primeiro dia de colégio, após uma ou duas aulas, chegou a hora do recreio. Ao sair para o amplo pátio, Plinio procurou seus primos com o olhar, em meio àquela multidão de meninos correndo de um lado para o outro e gritando, pois eles lhe haviam prometido apresentá-lo aos demais colegas. E onde estariam as cobiçadas cerejeiras? Por fim um deles apareceu, ofegante, agitado:
— Plinio! — gritou.
— E as cerejeiras, onde estão? — perguntou o novo aluno, desejoso de, já naquele primeiro intervalo, deliciarse com seu manjar preferido.
— Vamos jogar futebol! — respondeu o primo.
Esse esporte, que para a época ainda fazia parte das inovações da modernidade, atraía a atenção e a participação dos alunos. Entretanto, que diferença dos serenos entretenimentos de casa!...
Sob o apreensivo olhar materno
Para Plinio começava a dura batalha da vida, com suas tragédias, desilusões e fracassos, pela qual todo filho de Adão irremediavelmente tem de passar. A primeira decepção foi a de não encontrar as sonhadas cerejeiras. Depois, ante seus olhos, dois mundos se desenvolviam lado a lado, porém em constante oposição: o dos padres que, voltados para o sagrado, por seu porte grave e seus trajes austeros, criavam em torno de si um ambiente que simbolizava a tradição e lembrava as verdades eternas; e o dos alunos, empolgados, naquele pós-guerra, pelas “modernidades” soezes de Hollywood, e atraídos pelos costumes simples e fáceis daí decorrentes.
Dª Lucilia discretamente observava as mínimas reações do filho, para ver se ele estava resistindo às más influências, ou se, de modo imperceptível, ia-se deixando levar por elas. Pelo modo de Plinio falar, gesticular, tratar os outros e, sobretudo, por aquele “sexto sentido” que só o desvelo materno dá, ela procurava discernir nele os eventuais sintomas de adaptação aos novos padrões.
Ao fim da tarde, ao se aproximar a hora de Plinio retornar da escola, Dª Lucilia ia ao terraço da casa e o aguardava. Queria vê-lo ao longe chegando, a fim de observar os matizes quiçá deixados no espírito e no modo de ser de seu filho, quando trazia em si os vestígios acumulados, de ambientes tão diversos quanto o colégio, a rua e a casa de família.
Em seguida entrava e, por uma janela, o via abrir e fechar com calma o pesado portão do jardim, ganhar ajuizadamente a escada que conduzia à moradia e tocar a campainha. Esperava-o numa sala, abraçava-o, beijava e dava-lhe a bênção. Tranquilizava-se, notando que seu filho continuava o mesmo, como no primeiro dia de aula.
Irredutibilidade e doçura


O jovem Plinio (o primeiro no fundo à esquerda) ao lado
de alguns de seus colegas no São Luís
Plinio deu só contentamento a Dª Lucilia durante o curso secundário. De sua parte, continuava ela a dispensar-lhe todos os extremos de carinho de que era capaz. Provara-o mil vezes em circunstâncias diversas, e seu filho tinha experiência disso a cada momento. Eis um pequeno exemplo:
Normalmente Plinio ia e voltava do colégio de bonde. Porém, quando chovia, Dª Lucilia mandava-lhe tomar um táxi, pois tinha receio de que, molhando-se, adoecesse. Plinio, que nunca deixava de seguir a recomendação materna, à saída do colégio já ia convidando alguns amigos para retornarem com ele no veículo.
Evidentemente, se por preguiça ele quisesse ficar mais tempo na cama na hora de levantar, Dª Lucilia não toleraria, pois no cumprimento do dever não permitia moleza. Mas a irredutibilidade dela tinha sempre como contrapeso a doçura, que se manifestava por sua atitude compassiva em favor de quem havia-se esforçado para se desincumbir de uma obrigação.
Deliciosos sanduíches
Outra manifestação dessa doçura estava no modo de Dª Lucilia, todos os dias, preparar e com todo o cuidado empacotar sanduíches para seu filho. O conteúdo ia variando agradavelmente a cada dia, constituindo afetuoso incentivo para ele enfrentar a aridez dos estudos ou o ardor das polêmicas. Ora vinham recheados de saborosas fatias de língua, ora de lombo de porco ou filé, queijos ou alface, sem nunca faltar a manteiga. Tais petiscos faziam a cobiça dos outros meninos...
Um dia, Plinio pediu a sua mãe que dali em diante preparasse sempre um pacote de sanduíches a mais, pois ficava mal para ele estar tomando lanche e não poder oferecer nada a um colega com quem estivesse conversando.
Dª Lucilia alegrou-se com a atitude de seu filho e, diante de tão bons sentimentos, prontamente o atendeu. Mal sabia ela o destino real do inocente sanduíche. Plinio utilizava-o sagazmente para atrair a amizade de certos companheiros mais corpulentos, que o protegessem contra as investidas de certos alunos de mau caráter, visto que sua compleição, ainda pouco robusta, não lhe permitiria aguentar um embate físico contra seus primeiros opositores ideológicos.
Sem o saber, Dª Lucilia prestou assim um valioso auxílio às pugnas iniciais de seu filho.
O Menino Jesus entre os doutores no templo
Apesar de em sua delicadeza não compreender certos métodos ou argumentos mais enérgicos utilizados por Plinio, Dª Lucilia de modo algum estava alheia à batalha que diariamente ele travava para se manter fiel aos princípios da Igreja Católica, Apostólica e Romana, ensinados por sua mãe ao longo dos anos.
Por certos comentários dele a respeito dos próprios colegas, por seu relacionamento com eles, bem como por outros pequenos detalhes, notava Dª Lucilia que Plinio necessitava sobretudo de auxílio do alto. Talvez por isso, após a Missa dominical na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, ela se detinha longamente a rezar diante de um belo conjunto de imagens de um altar lateral. Representam elas o encontro de Nossa Senhora com o Menino Jesus, em discussão no Templo com os Doutores da Lei.
Nunca seu filho lhe perguntou o motivo daquelas preces, nem ela alguma vez o revelou. Mas certamente rezava para que o Divino Infante, vencedor da soberba e incredulidade dos orgulhosos escribas, concedesse também àquele menino, ali a seus pés, a vitória nas polêmicas mantidas com seus colegas de colégio.
“Por que você há de ser tão ruinzinho assim?”
Embora Dª Lucilia tivesse perfeita noção de como o mundo ia piorando cada vez mais, e das dificuldades que em consequência seus filhos enfrentariam, nunca lhes permitia qualquer falta de objetividade no apreciar as pessoas.
Em certa ocasião, estando ela a conversar com Plinio, fez este um comentário depreciativo a respeito de um conhecido, carregando demais as tintas em certos defeitos da pessoa em questão. Dª Lucilia, sempre pronta a tomar a defesa dos outros, logo atalhou:
— Por que você há de ser tão ruinzinho assim, meu filho? Você não vê que não se deve ser desse modo? Tenha pena, afinal!...
Seu tom de voz ameno, era de quem queria dizer: “Desse pobre miserável, diga apenas o que é justo. Você não vê como sou benévola para com ele? Afinal, ele é filho de fulana, pessoa que tem lados muito bons, e a quem eu quero bem por isso”.
A esse propósito, Dr. Plinio mais tarde comentaria: “Era tal a bondade com a qual mamãe corrigia seus filhos, que eu me sentia inteiramente tomado por sua benevolência. Esta contribuía mais para me afastar do perigo de reincidir na falta, do que o próprio temor de uma repetição da censura...”
Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.

domingo, 11 de novembro de 2012

Cintilações de uma ilimitada bondade

Enquanto Rosée e Plinio eram muito pequenos, Dª Lucilia deles nunca se separou, nem mesmo por ocasião de viagens, raras então. Com o correr do tempo, as circunstâncias impuseram separações mais longas ou menos, que tiveram como resultado o início de uma expressiva correspondência, da qual, felizmente, Dª Lucilia conservou inúmeros postais e cartas.
Traçadas com letra segura e elegante, quase desenhada, redigidas em despretensioso estilo, as missivas de Dª Lucilia exprimem um oceano de afeto por seus filhos, bem como as saudades que as ausências, mesmo quando não tão longas, faziam brotar em seu maternal coração.
Os primeiros escritos são dois cartões postais de 1919, enviados do Rio de Janeiro, onde Dª Lucilia esteve, possivelmente em março, por ocasião dos funerais do célebre Conselheiro João Alfredo, tio de Dr. João Paulo:
Minha filhinha querida!
Recebi teu telegrama, portador de boas notícias tuas e de teu irmãozinho, o que muito me alegrou! Estou muito contente de ver que vocês estão tão bonzinhos e ajuizados... que Deus os abençoe e os faça muito felizes!
Penso a todo momento com muitas saudades em vocês, mas espero seguir depois de amanhã sem falta! para abraçar os queridinhos de meu coração.
Abraça-te com imenso afecto, tua mamãe extremosa,
Lucilia
Meu filhinho querido!
Fiquei muito satisfeita ao receber teu telegrama! Deus permita que continuem a passar bem e desejo encontrá-los bem bonzinhos e alegres. Fui hoje mesmo procurar uns brinquedinhos para vocês... Tenho achado uma falta enorme em vocês, parece-me ouvir a cada instante suas vozes! Até quinta pela manhã, se Deus quiser.
Abraça-te com imenso afecto, tua mamãe extremosa,
Lucilia
Tal transbordamento de carinho não podia deixar insensíveis Rosée e Plinio que, como era natural, sentiam muito o estar longe de tão dedicada mãe. É o que nos mostra este bilhete, deixado por Plinio antes de uma rápida viagem:
Quase adorada mãezinha
Já antes de sair senti tantas saudades que lhe deixo aqui 500.000 beijos. Esteja sossegada. Logo que chegar eu lhe telefonarei. Eu levei meu capote. Eu volto amanhã durante o dia.
100.000.000.000.000.000 de beijos e abraços de
Pigeon
No meio de todos os cuidados para com seus filhos, Dª Lucilia entretanto não se olvidava de um velho amigo, que há muito não via, e que estivera exposto às agruras da Primeira Grande Guerra: seu cirurgião, Dr. Bier.
Preocupação com a sorte de Dr. Bier
Dizia alguém, com acerto, ser a gratidão a mais frágil das virtudes. Não porém em Dª Lucilia, que guardava profundo reconhecimento em relação a quem lhe proporcionasse algum benefício. Jamais se esquecia do bem recebido e procurava com generosidade retribuí-lo. O mero interesse pessoal nunca penetrou em sua nobre e grandiosa alma durante toda a sua longa existência. Até o mal que lhe fizessem, ela pagava com bondade ainda maior.
Por isso mostrou-se sempre muito grata para com o médico que lhe salvara a vida, o famoso Dr. Bier, mantendo com ele amável correspondência. Apesar de suas ocupações como cirurgião de renome universal e médico pessoal do Kaiser, ele nunca deixava de responder às cartas de Dª Lucilia. Porém, sobreveio a guerra e as comunicações se tornaram difíceis, sobretudo depois do rompimento de relações entre o Brasil e a Alemanha. Dª Lucilia, não tendo mais notícias dele, externava em algumas conversas preocupação pela sorte de seu benfeitor. Embora a prestigiosa função de Dr. Bier junto ao Kaiser Guilherme II tornasse pouco provável sua participação pessoal nos combates, as vicissitudes de um conflito armado sempre trazem consigo surpresas, o mais das vezes trágicas.
Tão logo terminada a primeira conflagração mundial, Dª Lucilia voltou a lhe escrever, pedindo notícias dele e da família, e perguntando se precisavam de algo. Talvez por julgar um pouco excessivas tantas mostras de delicadeza, alguém amavelmente comentou:
— Lucilia, vejo que você faz isso por bondade, mas Dr. Bier nem se lembra mais da cirurgia que lhe fez...
Ela, motivada muito mais pelo amor de Deus do que por um natural e legítimo sentimento de gratidão, respondeu com toda a serenidade:
— Ele deve recordar-se de mim, porque ficamos bons amigos. Mas ainda que não se lembre, não importa, eu me lembro dele. E por isso lhe escrevo.
Transcorrido algum tempo, Dª Lucilia recebeu, com grande contentamento, amabilíssima carta do Dr. Bier, em francês, na qual ele agradecia a atenção e contava haver ficado completamente surdo, pois um estampido de canhão lhe rompera os tímpanos. E acrescentava que, se ela quisesse ser gentil, lhe mandasse um pacotinho de café, produto raro na Alemanha do pós-guerra.
Em sua ilimitada bondade, Dª Lucilia lhe enviou, não um pacotinho, mas uma saca inteira...
Dr. Bier, comovido, escreveu mais uma vez agradecendo. Sua morte, em 1949, causou tristeza a Dª Lucilia, que devotamente rezou em sufrágio de sua alma.
Se a difícil situação de um antigo médico dera a Dª Lucilia ocasião de poder manifestar sua imensa benevolência, quanto mais uma persistente moléstia de seu queridíssimo filho.
Doença interminável
Grande foi sua solicitude quando Plinio se viu atacado por uma dessas doenças comuns na infância, aliás não de todo isenta de riscos, a caxumba. Essa enfermidade foi especialmente penosa para ele, não tanto pela gravidade do mal, mas pelo demorado da convalescença, verdadeiro tormento para uma criança.
Plinio não sabia que a caxumba podia passar de uma parte para outra do organismo. Quando se julgava próximo da cura — pois os sintomas iam progressivamente diminuindo — e começava já a fazer planos de brincar no jardim, para seu desconsolo tudo recomeçava, com o reaparecer dos mesmos incômodos. Era então a hora dos suavizantes bálsamos da resignação que só Dª Lucilia sabia aplicar:
— Filhão, tenha paciência, isto passa, como já passou deste lado da garganta.
Quando estava quase são da garganta, Plinio sentiu uma forte indisposição. Seu quarto era ao lado do de Dª Lucilia. Chamou-a:
— Mamãe, faz favor.
Ela veio, afável e sorridente, e ele explicou o que estava sentindo.
— Filhão — disse-lhe com voz meiga — a caxumba passou para o aparelho digestivo.
Ele de novo teve dificuldade em manter a paciência:
— Mas isto passa para onde mais? Para os olhos, para a língua?
— Não — respondeu ela — fique calmo. Agora é mesmo a última vez. Esteja consolado, vou arranjar um brinquedo para você. Tenha confiança!...
Esse “tenha confiança”, dito por ela, de fato comunicava ao filho uma doce serenidade de espírito que o tranquilizava. E para retribuir tão imensa solicitude, Plinio não poupava suas manifestações de ternura...
Marcas de um agrado
Certa feita, no decurso de um almoço em casa de Dª Gabriela, um participante notou que Dª Lucilia tinha no braço esquerdo uma pequena mancha roxa, fruto evidente de contusão, mal disfarçada por uma pulseira de marfim com incrustação de bronze. Ao lhe perguntarem a causa do inusitado sinal, Dª Lucilia com doçura respondeu:
— Foi um agrado do Plinio.
Todos deram uma gargalhada, e ela também riu. Alguém lhe indagou então por que permitia da parte do filho tão truculenta prova de carinho. Ela respondeu:
— Recusar agrado de filho meu, nunca me acontecerá na vida. Desde que não seja o mal, Plinio pode fazer o que quiser.
Essa contínua benquerença de Dª Lucilia, nunca desmentida, levou-a, certa vez, a dispensar seu filho de um tipo de atividade não condizente com as inclinações dele.

Aulas fracassadas
Quando Plinio entrou na adolescência, Dª Lucilia lhe deu mais liberdade de ação para que ele sentisse sobre si o peso da responsabilidade, mas não deixou de se preocupar com a saúde dele. Por isso lhe recomendou fazer exercício físico e aprender a nadar.
Naquela época a natação não tinha os inconvenientes morais de hoje, tudo se fazendo com recato nos trajes e a devida compostura.
Foi assim que, em um dos estabelecimentos balneários especializados e de alto padrão de São Paulo, Plinio passou a receber aulas numa piscina, alugada por Dª Lucilia só para ele. As professoras de ginástica e natação eram suecas. Antes de entrar na água, procedia-se aos exercícios de aquecimento. Plinio, pouco afeito a esforços desse gênero, ia repetindo, sem grande atenção, os movimentos que a enérgica mestra fazia. Conformava-se com aquelas pequenas “torturas” apenas para agradar a sua mãe.
Depois passava para a piscina. Apesar de todo o empenho e insistência da instrutora, não havia forma de Plinio aprender sequer a boiar. Todas as tentativas acabavam em naufrágio, sem maiores consequências além de uns indesejados goles de água. Por fim a professora perdeu a paciência e lhe disse que a única solução seria jogá-lo numa piscina funda. Ele teria de sair de qualquer jeito do outro lado, aprendendo de uma vez por todas a nadar.
Quando ele voltou para casa, Dª Lucilia lhe perguntou como tinha sido a aula. Plinio explicou o ocorrido, certo de que sua mãe insistiria para que ele continuasse. E ele não seria capaz de lhe recusar um pedido. Porém, as imposições não se coadunavam com o modo de ser ameno de Dª Lucilia. Vendo que seu filho não tinha pendor para a natação, não quis obrigá-lo a retornar às aulas. Afinal, o que acabaria realmente mostrando-se eficaz para dar vigor à frágil saúde de Plinio seria sua maternal solicitude que, à força de carinho, haveria de transformar aquele franzino adolescente num robusto e saudável moço.
Lições de piano, de afeto e bondade
Dos bons costumes daqueles tempos, fazia parte ter em casa um piano. Dª Lucilia tinha gosto em tocá-lo e via com esperança a possibilidade de transmitir a sua filha essa arte.
Assim, contratou durante certo tempo um professor para dar aulas particulares de música a Rosée. Era o Prof. Wancolle, uma das principais figuras do corpo docente do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. No decurso das aulas, a que Dª Lucilia assistia com frequência e grande comprazimento, formou-se entre professor e aluna uma sincera amizade, da qual Rosée guardou, até o fim de sua vida, emocionada recordação.
Mais tarde quis Dª Lucilia que sua filha aprimorasse seus dotes musicais, matriculando-a no próprio conservatório. Rosée continuou a manifestar excepcional talento para a música, e se tornou, já no primeiro ano, uma das melhores alunas do egrégio estabelecimento.
Foram estes os únicos cursos que Rosée frequentou, além da escola de afeto e bondade, na qual Dª Lucilia era a grande e inimitável mestra naquele abençoado lar...
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)