sábado, 27 de outubro de 2012

Fidelidade à concepção católica da vida

Entre as virtudes que ornavam a alma de Dª Lucilia, destacava-se uma que é tão esquecida quanto difícil de praticar: a fidelidade ao modo de viver inspirado nos ensinamentos da Igreja
Corria para seu fim o ano de 1918. Antes de ele se encerrar, terminaria a mais terrível e mortífera guerra que a humanidade até então conhecera, e cujas consequências provocariam transformações mais profundas do que as destruições causadas pelas bombas ou pelo ímpeto guerreiro dos combatentes.
Até o início da conflagração, ainda refulgiam nas nações ocidentais e cristãs os últimos fulgores da civilização medieval, cujo edifício, magnífico como uma catedral, vinha sendo derruído ao longo das centúrias por sucessivas revoluções: Renascimento, Protestantismo, Revolução Francesa. Ante o mundo atônito surgiria em breve o Comunismo, que haveria de se constituir no flagelo das décadas vindouras.
Porém, apesar dessas desastrosas mutações, aos povos nascidos sob o civilizador influxo da Santa Igreja algo restava em seus usos e costumes, como nas leis e nas instituições que os regiam, da herança espiritual e cultural recebida de seus maiores. Quentes ainda estavam algumas brasas da Fé ardente que outrora incendiara a Cristandade.
Ao terminar a guerra, quase que por exaustão das partes beligerantes, a Europa já não era a mesma. O Velho Continente perdera a primazia no mundo civilizado, deixando que os Estados Unidos lhe tomassem a dianteira. Mais ainda, aceitou sem restrição os princípios novos que regiam o estilo de vida americano (American way of life). Era o fim de uma era e o início de outra diametralmente oposta.
Numa época em que o rádio e a televisão ainda não haviam invadido os lares, a maior distração tanto dos indivíduos como das famílias era o cinema. Este, muito mais do que a imprensa, constitui-se no máximo instrumento mentor da opinião pública. Tinha sua sede principal em Hollywood, onde viviam autores, diretores, cenaristas e os atores dos enredos mais famosos. Em comparação com o cinema americano, o europeu parecia franzino, tímido e sem verve.
Para fazer sensação, Hollywood apresentava de modo exagerado tudo quanto era americano. E incutia, na Europa como na Ibero-América, o desejo de fazer passar por uma transformação ultra-americanizadora todos os aspectos de sua existência. “Americanizar-se”, na verdade, era menos adaptar-se a um autêntico American way of life do que assumir todos os exageros de uma ficção hollywoodiana distante da realidade.
Sem derramar uma gota de sangue, uma imensa revolução contra a qual bem poucos tiveram coragem de levantar eficaz barreira se operava quase imperceptivelmente nos espíritos.
A esses ventos não se mostrou infenso o Brasil, e muito menos a São Paulo aristocrática de então, que passo a passo seguia todos os acontecimentos mundiais.
Uma nova mentalidade, chamada moderna
Ao findar o conflito em 1918, inicia-se o período que os historiadores denominam entre deux-guerres (ou seja, entre a primeira e a segunda guerra mundial). Os harmônicos acordes da valsa são substituídos pelos estridentes sons do jazz; as sóbrias e graves carruagens puxadas a cavalo são suplantadas em definitivo pelo automóvel, que imprime novo ritmo à existência; e as senhoras, até então rainhas do lar, dão os primeiros passos rumo à igualdade dos sexos. Quase de uma só vez, as saias sobem dos tornozelos aos joelhos, libertando os passos dos longos e belos vestidos de outrora. Encetava-se assim resoluta caminhada cujo termo final era, todos o sentiam, o despudor.
Os cabelos naturais das senhoras, cuidadosamente penteados, como coroas a honrar sua dignidade, são cortados em aras à moda e ao pragmatismo. Era o estilo chamado à la garçonne*. O rouge e o bâton irrompem nos costumes, até então recatados e sobranceiros a esses artifícios de maquiagem. O riso, que antes ocupava discreto papel na vida, passou a ser considerado símbolo necessário de felicidade, ideia amplamente difundida pelo cinema de Hollywood, relegando a segundo plano, nas reuniões sociais, todos os que não sabiam contar piadas e não tinham o pseudo-carisma de provocar constante hilaridade.
Era inerente a esse novo modo de ser o desenfreado desejo de ganhar dinheiro, muito dinheiro. Deus, moral, reflexão, tradições, requinte, bom gosto, educação, eram mitos do passado e deviam ser abandonados, pois o importante era viver “bem” o momento presente.
Fidelidade aos bons costumes de outora
Essa nova mentalidade, chamada de moderna, cujos derradeiros e amargos frutos ainda provamos em nossos dias, Dª Lucilia a rejeitou, sempre à sua maneira cortês e afável, mas ao mesmo tempo séria e firme. Aceitá-la constituía, no seu modo de ver, o abandono de uma via que jamais cumpriria deixar. Para ela, a Religião não se limitava só à observância dos sagrados preceitos da Lei de Deus e à prática de piedosas devoções, desligadas da boa ordem temporal. Incluía, além disso, uma concepção da vida modelada segundo as revelações e os ditames do Sagrado Coração de Jesus, que deveriam abarcar todos os aspectos da atividade humana. Conforme essa concepção, ela procurava primorosamente moldar seu dia-a-dia, o governo da casa, a educação dos filhos e até sua vida social.
Um pequeno e comovedor episódio ilustrará com nitidez a resistência que ela vinha opondo ao espírito “moderno”.
Certa ocasião, durante um almoço do qual participavam amigos e parentes, tentavam todos convencer Dª Lucilia a cortar os cabelos à la garçonne e a se pintar, pois era a única pessoa daquela roda social que não aderira à nova moda. Talvez sua mansa mas inabalável persistência na fidelidade aos antigos costumes importasse em certa fricção moral com os mais chegados.
Enquanto pôde, durante a conversa, Dª Lucilia foi jeitosamente esquivando o problema, para não se mostrar desagradável aos visitantes, porém, estes continuaram sua incômoda insistência. Em certo momento, notando que as pressões passavam do limite tolerável, num assunto só a ela concernente, reagiu, como tantas vezes fazia, guardando expressivo silêncio.
Sentado ao lado dela, Plinio, então com aproximadamente doze anos, que possuía um natural loquaz e afirmativo, assistia calado a toda a conversa: não era permitido aos menores falarem à mesa. Encantado com sua mãe e notando nela a inteira adequação da apresentação externa com o nobre interior de alma, ao perceber o silêncio em que ela se pusera, resolveu intervir para sustentar a boa posição. Afastou sua cadeira e, ajoelhando-se aflito diante de Dª Lucilia, de modo carinhoso implorou:
— Mamãe, a senhora vai me prometer que nunca cortará o cabelo nem usará bâton?
Enternecida com a atitude de seu filho, voltou-se para os presentes e, como que gracejando, encerrou suave e amavelmente a discussão:
— Estão vendo? Plinio não quer que eu corte os cabelos. Então, não vou cortar...
Um silêncio geral pairou sobre a sala. E nunca mais familiares ou amigas tocaram nesse assunto, até o fim dos longos dias de Dª Lucilia.
Quando, pela última vez, seus filhos a viram jacente em seu caixão, lá estava ela com seus veneráveis cabelos prateados e seus lábios, para sempre cerrados, isentos de bâton. Morreu atendendo ao pedido que seu filho, quando ainda menino, com um drama na alma, genuflexo lhe fizera.
A pretexto dos bondes, as saias encurtaram
Com referência ao traje feminino, Dª Lucilia notou o primeiro sintoma de decadência moral não muito depois de se generalizar o uso do bonde elétrico, como principal meio de transporte urbano.
Ela assistira à inauguração da primeira linha em São Paulo, em 1900. Anos depois, contava a seus filhos haver sido tão grande a euforia da população, pelo fato de poder andar num veículo movido a eletricidade, que pessoas viajavam até em cima do teto do bonde.
Tal euforia serviu de ocasião para uma grave e profunda modificação na moda feminina. Dª Lucilia comentava que as senhoras, por usarem saias que iam até o tornozelo, tinham certa dificuldade para descer do bonde, pois um traje tão comprido fazia tropeçar nos degraus. Por estas e outras razões, os vestidos foram se encurtando, ao longo dos anos, até chegarem à altura dos joelhos. A cada encurtamento, Dª Lucilia via o perigo aumentar.
 — Deixe... Não tem nada! — respondia sempre uma despreocupada otimista.
Hoje, a polêmica mini-saia dos anos 60 e 70 já se tornou ultrapassada... “Deixe, não tem nada!” — continuam a repetir. De fato não há mais nada, pois todo o pudor foi destruído.
O “estouro da boiada”
Quem, entrando no Coliseu romano, não terá sido tomado por uma sensação de respeito e veneração, pensando na lealdade dos milhares de mártires que ali foram devorados pelas feras, por se recusarem a queimar incenso aos ídolos?
Não menor, e por certo mais subtil, tem de ser o heroísmo de alguém que queira manter a integridade dos princípios ensinados pela Santa Igreja, numa sociedade que caminha em rumo oposto à verdade e ao bem. É pelo pânico dos efeitos desta separação, em relação ao próprio ambiente, que milhões de pessoas cedem e espiritualmente perecem.
Perante a avassaladora onda forjada em Hollywood, a atitude de Dª Lucilia foi a de enfrentar com serenidade tudo quanto contundia suas convicções católicas.
De futuro contaria ela, de modo discreto, embora manifestando toda a sua censura, um escândalo ocorrido por aquela ocasião em São Paulo. O fato passou-se entre famílias abastadas e, portanto, muito em destaque na sociedade.
Deixando sua esposa, um homem foi morar com certa senhora que também abandonara o marido, passando a viver ambos em regime de concubinato duplamente adúltero. Para conferir ares de legitimidade a seu péssimo proceder, foram ao Uruguai e, de lá voltando, fizeram constar terem-se casado no civil. Amigas e conhecidas ouviram, da própria concubina, que aquela união era verdadeiramente um “casamento”, o que redundava em equiparar o concubinato ao matrimônio. Manifestando por sua fisionomia toda a censura que o fato lhe causava, Dª Lucilia, ao narrar este episódio, acrescentava haver ainda naquela época restos de moral, razão pela qual o acontecido provocou em todos uma atitude de repúdio.
Departamento da Loja Mappin
Certo dia, entretanto, uma parente de Dª Lucilia foi fazer compras na Casa Mappin — estabelecimento que, naquele tempo, só trabalhava com artigos muito finos, sendo por isso frequentado pela melhor sociedade — e presenciou uma cena insólita. Ouviu, de repente, uma algazarra, pouco demorando a deparar com duas mulheres que se atracavam a tapas e pontapés. Eram a esposa legítima e a concubina mencionadas acima.
Conhecida de ambas, a referida senhora preferiu retirar-se rapidamente do local, com receio de acabar por ver-se envolvida naquela briga indecente, o que não queria por nenhum preço. Almoçando esse dia em casa dos Ribeiro dos Santos, contou o fato, provocando vivos comentários à mesa. Dª Lucilia ouviu tudo em silêncio. No entanto, quando se começou a dizer que o concubinato era um absurdo, mas que as senhoras deveriam suportar com mais paciência a sem-vergonhice dos maridos, ela suspirou profundamente e disse:
— Suportar, suportar! Não esperem muito... Os homens pintaram tanto que deixaram as mulheres numa situação que não suportam mais. E, além dos costumes péssimos dos maridos, o cinema e a literatura imorais fazem com que elas vão ficando tão ruins quanto eles. Esse fato mostra que está começando o estouro da boiada...
Era uma judiciosa observação, uma previsão muito bem feita, porém as palavras de Dª Lucilia foram acolhidas com gargalhadas por alguns, não porque achassem ridículo o que dizia, mas porque lhes divertira a expressão “estouro da boiada”. Não entenderam o fundo do pensamento, que o correr das décadas não fez senão confirmar. Hoje o divórcio generalizou-se, e o concubinato também: “a boiada” debandou.
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)
* Um neologismo feminino para garçon, “menino”.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Preparando os filhos para a Primeira comunhão


Os anos passavam, as crianças cresciam, era chegada a hora de fazerem a Primeira Comunhão. O ambiente de autêntica piedade e ardente Fé que Dona Lucilia criava em casa era sem dúvida a melhor preparação. Além disso, sua transbordante benevolência ajudava os meninos a compreenderem que, acima dela, Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo derramado até a última gota de seu Preciosíssimo Sangue pela salvação das almas queria-lhes infinitamente mais que sua própria mãe.
A partir do momento em que lhes falara da Primeira Comunhão, ela dera uma alta ideia da grandeza desse augusto ato. Conseguira também que o vigário da Paróquia de Santa Cecília desse a Rosée e a Plinio, como também a Ilka, um curso de catecismo.
Com o passar dos dias, Dona Lucilia notou estarem as crianças tirando muito proveito das aulas. Sumamente comprazida, ela lhes dava algumas explicações e os arguia sobre certos pontos. Narrava também trechos da História Sagrada, de maneira tão elevada e entretida, e com tanta unção, que lhes incutia grande respeito pelos personagens bíblicos.
Imaginava um pouco lendariamente a Palestina. Por exemplo, descrevia as areias dos desertos da Terra Santa, marcadas por sublimes recordações. O modo de ela pronunciar certos nomes: “Mar de Tiberíades...” dava, a quem ouvia, a impressão de estar vendo as ondinhas do mar e nelas se refletindo a figura do Salvador.
Falava muito da doçura de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora. As ações d’Ele eram mostradas como sempre serenas e medidas, cheias de significado, de uma sabedoria que transcendia de longe a tudo quanto há no mundo; as atitudes d’Ele, como expressões de suma majestade e superioridade absoluta. A Santíssima Virgem, Dona Lucilia a apresentava como afável, bondosa e transbordante de carinho.
Os profetas do Antigo Testamento, nos lábios dela, apareciam grandiosos e categóricos. Dr. Plinio conta que, ao ver pela primeira vez os profetas do Aleijadinho, lembrou-se logo de Dona Lucilia e pensou: “Estes são bem os profetas que eu imaginava quando mamãe me falava deles”’.
As Narrações da História Sagrada
Qualquer episódio narrado por Dona Lucilia tomava um colorido comovedor, sabendo ela realçar o aspectos mais impressionantes. Ouçamo-la contar, adaptado às crianças, o ocorrido com a casta Suzana, no Antigo Testamento1:
Suzana era mulher casada, formosíssima e temente a Deus. Um dia, quando se encontrava no jardim de sua casa, foi vista por dois iníquos anciãos, que por sinal eram juízes. Invejosos por tão bela dama não lhes pertencer como esposa, quiseram forçá-la a enganar o marido, ameaçando caluniá-la, caso não cedesse.
Suzana, tomada por grande aflição, preferiu não ofender a Deus e enfrentar a calúnia. Os dois perversos juízes a acusaram, logo em seguida, diante das autoridades, de ter sido infiel ao esposo; e em virtude desse falso testemunho, ela foi condenada à morte, pelo lento e terrível suplício da lapidação.
Dona Lucilia repetia então a oração de Suzana: «Deus eterno, que penetras as coisas escondidas, que conheces todas as coisas ainda antes que elas aconteçam, Tu sabes que eles levantaram contra mim um falso testemunho; e eis que morro sem ter feito nada do que eles inventaram, maliciosamente contra mim”.
Quando a conduziam ao suplício, o Senhor suscitou o espírito de profecia num menino chamado Daniel, que gritou em alta voz: “Eu estou inocente do sangue dessa mulher”. Tendo o povo lhe perguntado o que queria dizer aquilo, ele se pôs de pé no meio de todos e disse: “Julgai-a de novo, porque disseram um falso testemunho contra ela”.
Daniel, interrogando diante de todo o povo os dois juízes separados um do outro, fê-los cair em contradição, tornando patente a calúnia. E os dois criminosos foram mortos, recebendo o castigo que tentaram desferir contra uma inocente. Deus ouvira a oração da casta Suzana”.
A narração serena, grave e cheia de atração cativava os pequenos ouvintes, fazendo-lhes penetrar na alma não só a admiração pelo verdadeiro, pelo bom e pelo belo, mas também a repulsa ao mal.
1 Cfr. Dan 13.
Quero que não estejam pensando em festa...”
Chegou afinal o dia máximo para Rosée, Plinio e Ilka. Naquela época era hábito as famílias darem uma grande festa para as crianças que pela primeira vez se aproximavam da Sagrada Mesa, convidando filhos de parentes e amigos. Dona Lucilia, pelo contrário, chamou os seus e lhes disse:
— Meus filhos, a Sagrada Comunhão é o mais importante acontecimento na vida, após o Batismo. Por isso, não é conveniente que nesse dia estejam pensando, desde a manhã, principalmente na festa, pois desvia a atenção da Eucaristia.
E transferiu as comemorações sociais dessa grande data para o dia seguinte, a fim de as crianças se compenetrarem bem da excelência do ato e, assim, não lhes ser perturbado o recolhimento interior. Pelo mesmo motivo, deixou-os até a noite com a roupa da Primeira Comunhão, a era, segundo os costumes do tempo, para o menino um Eton — traje inspirado no uniforme do famoso colégio inglês de mesmo nome — e para as meninas vestidos de noiva, pois Nosso Senhor Jesus Cristo é o Divino Esposo das almas virgens.
Não é de admirar que Dr. Plinio, ao se recordar do momento, bendito entre todos, no qual recebeu pela primeira vez o Divino Redentor, comentasse:
“Mamãe foi a luz da preparação de minha Primeira Comunhão.”
* * *

Dona Lucilia verá seus filhos irem deixando a infância, fortalecidos agora pelo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sua atenção estará voltada especialmente para Plinio, que ingressará no Colégio São Luís, dos Padres Jesuítas, onde terá seu primeiro contato com o mundo, longe de sua mãe. Que efeito terão sobre ele as companhias, nem sempre boas, que inevitavelmente se encontram fora do ambiente familiar?
Carregado de tais cogitações, o maternal coração de Dona Lucilia se voltará, mais devoto ainda, para o Sagrado Coração de Jesus, cuja misericórdia jamais abandona a quem confiantemente Lhe pede proteção.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Com os filhos, em Águas da Prata

Na educação de uma criança desempenha importante papel a movimentação, porquanto tem ela natural necessidade de gastar as próprias energias: correr, saltar, jogar, etc. Dª Lucilia procurava orientar bem as propensões dos filhos, a fim de a vulgaridade não lhes tomar conta do espírito, nem mesmo através desses aspectos correntes da vida como são as brincadeiras infantis.
Quase sempre era a governante alemã, Fräulein Mathilde, que os acompanhava nos passeios, ora ao Parque Antarctica, ora ao Jardim da Luz, o que ela empreendia metodicamente, bem de acordo com o modo de ser germânico, obrigando por vezes o menino a fazer um pouco de exercício, pois não era ele muito dado a grandes esforços físicos. Plinio corria o mínimo indispensável para evitar maiores complicações com a governante e poder, assim, retornar às distrações de sua preferência, como, por exemplo, contemplar o belo colorido das borboletas que, brincando com os raios de sol, despreocupadamente esvoaçavam por entre o arvoredo do parque.
Em outras ocasiões, indo passar temporadas na estância termal de Águas da Prata, muito recomendada pelos médicos para aliviar problemas hepáticos, Dª Lucilia levava consigo os filhos.
Nem ali descurava a Fräulein os passeios, conquanto Dª Lucilia ficasse, por vezes, temerosa com o excesso de zelo demonstrado pela governante. Porém, após ouvir as razões dadas por esta, acabava aquiescendo, não sem guardar um fundo de preocupação, com receio de as crianças não suportarem tanto esforço. Mas, tal não ocorria à mente da dedicada alemã. Conduzia pela mão os pequenos, um de cada lado, e lá ia contente, escalando com seu passo decidido os morros circundantes. Estava convicta de que um bom exercício só beneficiaria a saúde de seus pupilos, inclusive por ser o ar das alturas privilegiadamente puro.
Se as crianças, às vezes, demonstravam pouco entusiasmo por essas caminhadas, Dª Lucilia procurava compensar o necessário sacrifício com seu maternal afeto. Assim, para eles, a estadia em Águas da Prata não era destituída de entretenimentos mais apetecíveis, o melhor dos quais era a companhia de sua mãe, que ali tomava um colorido próprio, ao longo da leitura das histórias de Bécassine...
Em Águas da Prata, Bécassine
Com a finalidade de proporcionar uma boa leitura a Rosée, Dª Lucilia assinara, para alegria de sua filha, uma revista infantil francesa intitulada Semaine de Suzette. Esta trazia, em capítulos, as histórias de Bécassine, uma pitoresca e ingênua camponesa bretã, muito pouco dotada de inteligência, mas a quem não faltava grande dose de bom senso.
Nas histórias entrava um sem-número de outros personagens, representativos dos diversos tipos humanos da sociedade francesa de então. Um dos mais interessantes era, sem dúvida, Madame la Marquise de Grand Air, senhora de um belo castelo, também na Bretanha, a quem Bécassine servia fiel e dedicadamente desde muito jovem. Destacava-se ainda a figura simpática do tio Corentin, característico “notável” da pequena localidade de Clocher-les-Bécasses.
A história era narrada por meio de desenhos coloridos em quadrinhos, acompanhados do texto apropriado, o que tornava sua leitura muito atraente para as crianças.
Contudo, mais apreciados pelos pequenos ouvintes eram os comentários que, com fino senso psicológico, Dª Lucilia entremeava na leitura, feita aliás em francês, para se aprimorarem numa língua que, segundo ela, toda pessoa culta e educada devia falar como segundo idioma. Ora elogiava a boa atitude tomada por alguém, tirando daí uma lição moral, ora descrevia os costumes da França e as regras de etiqueta, para seus filhos aos poucos aprenderem a viver em sociedade.
O amor materno não conhece limites, e Dª Lucilia nunca achava demasiado o tempo que dedicava à educação dos pequenos, mesmo em prejuízo de sua comodidade pessoal.
Nas primeiras temporadas em Águas da Prata, Plinio e Rosée, junto a uma pedra nos arredores de Águas da Prata Dª Lucilia se hospedava com a família no Hotel Costa, ocupando três quartos contíguos. A vida naquela então longínqua estância termal do interior de São Paulo era diferente da que a família levava na Capital, sobretudo para as crianças. Estas ficavam um tanto livres das obrigações e lições dadas pela Fräulein, tendo mais tempo para estar com Dª Lucilia.
A pequena cidade ficava como que dissolvida nas vastidões rurais da bucólica região, próxima de Poços de Caldas.
O hotel era um simpático e tradicional estabelecimento, mas de construção tão antiga e imprópria, que da rua se podia olhar para dentro dos quartos, de tal modo ficavam baixas as janelas. Por isso, Dª Lucilia mantinha as venezianas fechadas, pois, devido às suas frequentes indisposições hepáticas, passava longos períodos deitada.
Após a sesta das crianças, lá pelo meio da tarde, elas iam geralmente até o quarto da mãe, guardado na penumbra, cortada por discretos filetes de luz que se esgueiravam por entre as frestas das janelas. Abriam devagarinho a porta, acendiam o abat-jour, uma delas recostava-se ao lado de Dª Lucilia, passava o braço por cima do travesseiro, e com a Semaine de Suzette já na mão, perguntava:
— Meu bem, vamos comentar Bécassine?
Seus filhos guardaram enormes saudades daquelas longas horas de ininterrupto convívio, enquanto o sol, que as venezianas filtravam, ia esmorecendo aos poucos até dar lugar à escuridão da noite, sem Dª Lucilia em nenhum momento manifestar cansaço ou dar a entender às crianças terem chegado num momento inoportuno.
Amenizando a doença de Plinio
Certa vez, inverteram-se os papéis. Plinio adoeceu em Águas da Prata, ficando de cama. Todas as tardes, Dª Lucilia, com o fascículo de Bécassine nas mãos, ia até o quarto de seu filho e, sentando-se a seu lado, comentava longamente as pitorescas aventuras da simpática camponesa bretã. Com seus delicados dedos, passava devagar as páginas da revista, enquanto sua melodiosa voz dourava aos olhos do menino as descrições.
Malgrado todos os desvelos de Dª Lucilia, a doença de seu filho não passava. Começou por uma dor de garganta, depois apareceu uma erupção na pele e, por fim, o médico já não acertava o que fazer. Foi razão suficiente para ela redobrar as manifestações de carinho, ficando a maior parte do tempo junto a Plinio, com o intuito de lhe tornar menos enfadonho o arrastar das horas.
Não há dúvida que tão agradável companhia tornava célere o percurso dos ponteiros do relógio, transcorrendo assim dez inesquecíveis dias.
Mas este paraíso foi bruscamente interrompido por Dr. João Paulo, que, apesar dos temores de Dª Lucilia, optou por drástica medida. Envolveu o filho num cobertor e, com a família, embarcou no trem para São Paulo. Ao descerem na estação da Luz, verificaram ter a doença desaparecido como por encanto.
Embora sem aflição, Dª Lucilia ainda se manteve preocupada todo o resto do dia da chegada à Capital, pois receava um agravamento da enfermidade. Suas confiantes orações certamente foram decisivas para o restabelecimento do pequeno Plinio.
“Meu filho, mais doçura em suas palavras”
Um belo dia Dª Lucilia passeava com seus filhos por uma rua de Poços de Caldas. A eles deparou-se então um grupo de leprosos a cavalo, munidos de longos bastões na ponta dos quais estavam amarradas canecas de metal, utilizadas para angariar esmolas dos transeuntes. As crianças ficaram explicavelmente chocadas com o aspecto dos infelizes.
Naquele tempo corriam muitos boatos segundo os quais os leprosos queriam transmitir sua moléstia a outras pessoas, pois imaginavam que, contagiando sete, sarariam. Dizia-se que se serviam da caneca, na ponta dos bastões, não só para recolher o dinheiro, mas também para encostá-las no benfeitor, com esse censurável intuito.
Apesar das explicações, Plinio não entendeu bem do que se tratava, e pensando nos boatos, comentou com horror o triste estado daquelas vítimas da terrível doença, obrigadas a mendigar e resignadamente acomodadas à própria situação. Ante aquele confrangedor espetáculo, o menino exclamou:
— Mamãe, não se tem o direito de ser assim! Não se pode ser assim!
Dª Lucilia, sempre materna, mas nesse momento com uma nota de gravidade, repreendeu-o:
— Meu filho! mais doçura em suas palavras. Nosso Senhor Jesus Cristo também remiu os pecados desses pobres coitados. Ele os aceitará no Céu. E você, não os aceita?
Essas palavras, vindas do fundo do coração de Dª Lucilia, marcaram a alma do menino, e ele entendeu melhor a causa do afeto transbordante de sua mãe, ou seja, o amor de Deus, já que até em relação àqueles pobres leprosos, cuja vista tanto espanto causava, ela tinha sentimentos de comiseração.
Aliás, Dª Lucilia se condoía de modo muito especial dos desvalidos, a quem dispensava, sempre que necessário, toda espécie de afabilidade e de consolações. Não obstante, exigia respeito em relação a qualquer pessoa e, como norma geral de conduta, jamais permitia que se caçoasse de alguém.
Se acontecesse escapar dos lábios de seus filhos um dito impróprio contra outrem — e as crianças são facilmente levadas a isso — ela intervinha, repreendendo-os com doçura, e os fazia compreender que não se deve zombar de ninguém. Procurava mostrar o lado bom do infeliz visado, a fim de evitar que Rosée e Plinio desenvolvessem em si uma tendência contrária à caridade verdadeiramente bem entendida. E nem mesmo quando seus filhos já se haviam tornado adultos, dispensou Dª Lucilia essa afetuosa vigilância materna...
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Educando os filhos pela narração de histórias

Sobressaindo entre os excelentes atributos com que a Providência ornou sua alma de mãe e educadora, o fino senso psicológico de Dª Lucilia lhe proporcionava adequado conhecimento dos filhos e dos sobrinhos. Conhecimento este que ela sabia aplicar, de modo todo especial, no momento de lhes contar alguma história. Razão pela qual não nos é difícil compreender como, em tempos idos, as crianças se apinhavam alegres ao seu redor, pedindo-lhe mais uma narração.
Todas as noites de quinta-feira, a maior parte da família se reunia na residência de Dª Gabriela para um longo e cerimonioso jantar. Os pequenos tomavam a refeição numa dependência secundária, e naturalmente acabavam antes dos adultos. Nesse momento, estando a casa cheia de meninos, estes chamavam Dª Lucilia:
— Queremos histórias de tia Lucilia! Queremos histórias de tia Lucilia!
Ela, embora muito carinhosa, fazia valer o princípio de que os mais velhos não são interrompidos pelos mais moços. Assim, estes não podiam entrar na sala de jantar enquanto aqueles não terminassem. Do lado de fora, através da porta entreaberta, os pequenos passavam a dirigir agradinhos a Dª Lucilia, para obter que fosse logo estar com eles. Ela não respondia e, tranquilamente, continuava a comer. Quando acabava, dizia muito comprazida:
— Vou para o escritório e conto uma história para vocês.
O aposento ficava apinhado de crianças, todas encantadíssimas, à espera de mais uma atraente descrição.
Enquanto na sala de jantar os adultos prosseguiam a conversa sobre assuntos da atualidade, Dª Lucilia se recostava numa chaise longue do escritório do esposo, e os meninos, literalmente, se empoleiravam em torno dela, até mesmo atrás de sua cabeça.
A história do nobre manco
Dª Lucilia modelava suas descrições no intuito de favorecer a maturação do espírito de seus jovens ouvintes, o que constituía um dos principais atrativos de suas histórias. Levada por maternal carinho, procurava ela incutir-lhes o amor ao cumprimento do dever e a admiração pelos atos belos e louváveis. E, em certas ocasiões, aproveitava os contos para dar às crianças uma lição de caráter moral e religioso.
O do nobre manco, fato que se havia passado no Ancien Régime, era característico. Assim descrevia ela:
A pequena distância de uma estalagem, à beira de uma estrada, conversavam animadamente alguns rapazes do povo miúdo, fortes, saudáveis e bem dispostos.
Em certo momento aproximou-se uma carruagem puxada por cavalos brancos, magnificamente ajaezados, e parou diante da casa. Os ornatos dourados do coche, o brasão pintado em suas portas, os finos cristais das janelas, os postilhões vestidos de libré, tudo, enfim, denotava a nobre origem do ocupante daquele belo veículo.
Saltam em terra os lacaios: um segura com força os cavalos, outro, ligeiro, corre a abrir a porta, enquanto um terceiro estende a escadinha até o chão. Os rapazes se apressam, curiosos, para ver quem era o feliz viajante. Através das cortinas de damasco vermelho, entreabertas, distinguem o busto de um jovem de bela aparência que se prepara para sair. Com elegante gesto, este se cobre com seu tricórnio ornado de plumas e, lentamente, desce da carruagem... apoiado, porém, em muletas, pois tinha um pé cortado.
Os jovens, então, caíram em si. Quão pouco vale o dinheiro, e quão pouco valem as aparências da terra! Eles, por não terem nenhum pé amputado, eram mais felizes do que o nobre manco em meio de toda a sua opulência.
Os Três Mosqueteiros
Vendo Dª Lucilia aproximar-se o fim da infância de seus filhos e sobrinhos, julgou adequado incutir-lhes o gosto pela literatura. Sem descurar daquele seu grande empenho em fazer crescer o espírito analítico das crianças, nas quais começavam a despontar as primeiras manifestações de preferências ou repulsas, já próprias à adolescência.
Assim, os enredos por ela elaborados sempre terminavam de modo exemplar: o personagem era premiado por sua virtude ou, quando derrotado, ela o descrevia em seu isolamento, na tranquilidade majestosa de uma consciência limpa — outro tipo de prêmio do qual, com maestria, ela sabia realçar os aspectos aprazíveis e gloriosos.
Supérfluo será dizer que os resumos feitos por Dª Lucilia excluíam qualquer forma de episódios ou detalhes atentatórios à moral. Para fixar a atenção das crianças naqueles longínquos tempos prenunciativos de um apogeu cinematográfico, era preciso que a história fosse novelesca, recheada de aventuras imprevistas e sensacionais. Se o tema escolhido fosse diverso, elas logo se alheavam da narração, que só continuavam a ouvir de olhos distraídos e distantes.
Nessas circunstâncias, a escolha de Dª Lucilia não podia recair sobre tema mais apropriado do que Os Três Mosqueteiros, um dos famosos romances de Alexandre Dumas, cujas passagens inconvenientes eram por ela censuradas com todo o cuidado.
A história também se desenrolava em pleno Ancien Régime, no reinado de Luís XIII. Dª Lucilia, rodeada de seus pequenos ouvintes, ia pintando na imaginação deles, com vivas cores, através de suas harmoniosas palavras, aquela remota época como um período áureo, em que o Ocidente estava para atingir um ápice de bom gosto, de boas maneiras, de elegância e de nobreza de atitudes.
Depois da atraente introdução, os meninos, com sua imaginação presa, já estavam ávidos de ouvir Dª Lucilia descrever a personalidade de cada um dos mosqueteiros, com suas virtudes e defeitos. Os quatro mosqueteiros eram gentis-homens característicos de seu tempo e ela procurava, ressaltando esse aspecto, incentivar as crianças a tomarem suas qualidades cavalheirescas como modelo.
Porém, mais belo do que a descrição sobre os valentes mosqueteiros era o aparente contraste entre a narradora e aqueles heróis: ela, suave, delicada, afável; eles, acostumados aos perigos, ao risco, às rudezas próprias da guerra. As palavras de Dª Lucilia eram tão expressivas que despertavam nos inocentes corações de seus ouvintes o entusiasmo por feitos heróicos, realizados por esses insignes batalhadores, entretanto exímios em brilhar nos salões, com suas reverências, rendas e panaches.
Excelente educadora, analisava ela os personagens sob o ponto de vista da moral católica. Como juiz imparcial, reprovava com severidade o que neles merecia censura, e exaltava as virtudes e outros predicados dignos de louvor.
Quando falava da probidade e correção de Athos, deixava transparecer sua própria integridade moral. Ao pintar a coragem de D’Artagnan, fazia-o com tanta admiração que os meninos pareciam notar o heróico vento da intrepidez acariciar-lhes a face.
De outro lado, Dª Lucilia procurava mostrar-lhes como era rejeitável o “ideal” de um Porthos, cuja preocupação primordial consistia no gozo da vida, e explicava o que havia de superior na carreira intelectual, na preeminência do espírito sobre a matéria. Finalmente, fazia reluzir aos olhos das crianças o que havia de mais elevado no tipo humano de um valente Aramis, eclesiástico e guerreiro.
Com a mente povoada de feitos de armas, grandes heróis, épocas de esplendor e de fidalguia, mas especialmente enlevadas com aquela atraente narradora, as crianças aguardavam, não sem impaciência, o próximo dia em que ela daria seguimento ao conto.
Assim, em sucessivos e animados encontros, Dª Lucilia chegou ao epílogo da história, enriquecendo-a sempre de novos pormenores. Como fecho daquela aventura, descreveu aos pequenos o que ela, na sua rica e virtuosa imaginação, pensava ter sucedido a cada um dos briosos mosqueteiros.
O Conde, o Bispo, o “parvenu” e...
Athos, amadurecido pelos reveses da vida, aperfeiçoado pelo ofício militar, retirou-se para o antigo feudo de sua família, onde passou a morar só, envolto em sua nobre e melancólica tristeza.
Era de ouvir como Dª Lucilia pintava aos olhos das crianças uma tarde no castelo de Athos, quando este, terminados seus afazeres no campo, se recolhia ao aconchego de sua morada. Segundo Dª Lucilia, ele atravessava um pátio interno, adornado de trepadeiras e plantas aromáticas, em cujo centro se erguia um gracioso chafariz.
Assim continuava ela a narração:
Quem, naquele sereno crepúsculo, espreitasse por entre as cortinas do salão nobre do castelo, surpreenderia o Conde de la Fère andando de um lado para outro, entregue a profundas meditações. Chegado o momento do jantar, o Conde se dirigia à sua grande sala de refeições, onde, à bruxuleante luz das velas, degustava saborosos pratos e requintados vinhos. Dentro em pouco, todo o castelo estava imerso no silêncio, entrecortado apenas pelo ecoar dos passos do Conde que, novamente, palmilhava o solo de seus ancestrais. Afinal, recolhia-se ele também a seus aposentos. E quando sua luz se extinguia, era escuridão em todo o feudo...
Desse modo, de acordo com o senso poético de Dª Lucilia, transcorria a vida de Athos. Em seguida, narrava ela o que acontecera ao elegante Aramis:
Satisfazendo seus mais ardentes anseios, abandonou a carreira militar e tomou ordens num convento. A seriedade coerente e profunda dos estudos eclesiásticos veio assim somar-se às suas qualidades de tato e de tino no tratar com as pessoas, predicados estes preciosos para um zeloso pastor de almas. Assim, Aramis não tardou a atrair sobre si a atenção de seus superiores, o que, dentro de pouco tempo, ocasionou sua elevação ao episcopado. Passou assim ele a viver num pequeno castelo de uma diocese, no interior da França.
Depois de ter apresentado às crianças a dignidade da vida particular de Athos e a grandeza da condição eclesiástica de Aramis, Dª Lucilia se voltava, uma vez mais, para aquele a quem os pequenos não deviam imitar: o vaidoso Porthos...
Contava-lhes que, fiel a uma concepção mais bem materialista da vida, Porthos também abandonou a carreira militar em troca da fortuna que lhe prometia uma rica viúva e, nunca dispensando os prazeres da mesa, tornou-se ainda mais avantajado de físico. Passou a ostentar um luxo desmesurado, bem ao contento de suas pretensões. Assim, comprou um castelo que enfeitou e engalanou com um gosto muito discutível. Adquiriu também uma carruagem, em cuja porta mandou fixar, esculpida em madeira e revestida de ouro, uma figura mitológica tocando uma cornetinha, que era o símbolo de Monsieur de Porthos.
... D’Artagnan!
— E D’Artagnan?! — perguntavam as crianças.
Com sua invariável amenidade, Dª Lucilia respondia:
Ele foi o único que continuou na carreira das armas. Combateu em diversas batalhas, e alcançou, por sua coragem e dedicação, o marechalato de França.
Havia muito tempo que os quatro amigos não se encontravam, quando uma arriscada circunstância exigiu que eles se reunissem em torno de D’Artagnan. Então Athos, Porthos e o Bispo Aramis vieram socorrer seu antigo companheiro. Foi a última vez em que foram vistos juntos.
Pouco depois, numa guerra contra os holandeses, comandando as tropas francesas que faziam cerco à cidade de Maastricht, D’Artagnan, atingido por um tiro, caiu do cavalo. Estava morto...
Era o desfecho de uma maravilhosa história, que trouxera o juveníssimo auditório, ao longo de várias noites, suspenso dos lábios de Dª Lucilia. Assim, ela formava seus filhos e sobrinhos, recomendando-lhes imitar a nobreza de sentimentos, a abnegada dedicação, a desinteressada fidelidade a uma causa superior, que constituíam o verdadeiro ornato daqueles heróicos personagens.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)