quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Preparação para compreender a misericórdia de Maria

Continuação do post anterior
Mas, insisto, era uma correção intransigente mesclada com tanto afeto que não hesito em afirmar ter constituído essa postura de Dª Lucilia uma preparação para eu compreender a superior e insondável misericórdia de Nossa Senhora. Tal ideia se vincou ainda mais no meu espírito quando pude contemplar a imagem da Mãe do Bom Conselho de Genazzano.
Chamou-me muito a atenção a inteira intimidade do Menino Jesus com Nossa Senhora, refletida até no modo pelo qual Ele envolve com o braço o pescoço d’Ela. E essa efusão de carinho me trouxe à lembrança a intimidade que eu tinha com minha querida e saudosa mãe, feita de respeito, cheia de admiração, cumulada de veneração e de ternura, mas verdadeira intimidade.
E mamãe soube ser pequena, afável, meiga, quando eu era ainda um menino em tudo dependente dela. Por isso, desde os primeiros momentos em que comecei a articular palavras, eu a chamei de “mãezinha”, e por não saber falar direito, eu dizia “manguinha”. Seja como for, era já a expressão da ideia do que havia nela de miúdo, de proporcionado ao filho pequeno, de exorável por mim, de compassivo para comigo. Essa era a noção que despertava em mim o contato com a mansidão e a bondade de Dª Lucilia.
Clemência para justos e pecadores
Bondade e mansidão inteiras que me ajudaram a compreender melhor a figura da Mãe do Bom Conselho, que expressa de maneira tão eloquente a infatigável clemência de Maria.
Dir-se-ia fluir da imagem um mundo de misericórdias para a alma boa que a contempla, assim como para a alma do pecador que por Ela não se sente rechaçado nem desclassificado. Pelo contrário, o semblante materno e acolhedor de Nossa Senhora lhe incute ânimo e o faz se sentir amparado. Do olhar da Virgem se depreende um imenso teor de santidade, que convida e encoraja a alma presa de pecados a rezar o “Lembrai-Vos”, a Lhe dizer, gemendo sob o peso de suas culpas, que n’Ela confia e n’Ela espera a salvação. Maria Santíssima se mostra então acessível, e oferece ao pecador o contato com sua insondável bondade.
Entretanto, não sei deveras se eu teria compreendido assim essa manifestação de clemência da Mãe do Bom Conselho, se não fosse o exemplo de bondade séria e de intransigência afetuosa que me foi dado conhecer, ao longo de várias décadas, na pessoa de Dª Lucilia...

Plinio Corrêa de Oliveira - Extraído de conferências em 6/5/1968 e 18/6/1968

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Dois legados maternos

A harmonia entre o afeto e a severidade na pessoa de Dona Lucilia, manifestada por ela ao formar seus filhos, muito contribuiu para que Dr. Plinio um dia compreendesse melhor a insondável e superior clemência de Maria Santíssima.
Na ordem moral, os dois legados mais preciosos que minha mãe me deixou foram, de um lado, a bondade, e de outro, a severidade sábia.
Nunca uma censura por irritação pessoal
Com efeito, em toda a medida do razoável, ela demonstrava uma bondade imensa, inclusive na hora de admoestar a mim ou a outro por algo de errado que tivéssemos feito. A censura era logo seguida de um perdão, de uma indulgência repassada de suavidade, sem qualquer reclamação caso o mau ato houvesse atingido a ela. Nunca, no momento de nos corrigir, entrava a reivindicação de um direito dela transgredido; não eram pitos decorrentes de uma irritação pessoal, mas sempre por causa de um princípio ofendido, como, por exemplo, o da autoridade materna. Contudo, no que dizia respeito aos seus próprios interesses, manifestava invariável paciência e se mantinha quieta, como se nada a tivesse contrariado.
Antes de querer bem à mãe, amar os princípios
A par da bondade, porém, não posso me esquecer da seriedade no olhar de Dona Lucilia ao nos repreender, a sua compenetração de que era preciso fazer prevalecer um princípio, e sua convicção de que, se eu não conformasse minha vida com aqueles princípios, meu valor aos olhos dela seria menor. Quer dizer, ela esperava ver em mim o filho que, antes de querê-la bem, amasse e observasse os ditames morais que deviam ser obedecidos e amados.
“Só três medalhas?”
Além do olhar sério, suas palavras também exprimiam a sabedoria e a gravidade inerentes à atitude materna de corrigir e formar um filho. Embora, como disse, nessas correções o carinho não estivesse ausente, a intransigência dela em relação a algum relaxamento meu se mostrava inteira, como pude comprovar num dos marcantes episódios de minha infância, quando ainda aluno do Colégio São Luís.
Certo ano, no apogeu de meu desempenho estudantil, recebi quatro medalhas na festa de distribuição de prêmios, à qual mamãe não costumava comparecer. Como até hoje acredito fazerem os alunos premiados, voltei para casa — ainda me lembro — vestido com roupa de marinheiro, ostentando alegre e ingenuamente os distintivos de meus triunfos escolares. Ao me ver chegar, Dª Lucilia me recebeu com intensas efusões de afeto e contentamento pela aplicação do filho.
No ano seguinte, porém, retornei com apenas três medalhas... Mamãe me acolheu na porta de casa, olhou para meu peito e disse:
— Só três?
Havia no seu tom de voz aquela intransigência da censura materna:

— O que aconteceu para você decair?
Continua no próximo post

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Um grande Sinal da Cruz antes de partir

Continuação do post anterior
Eu formara a ideia de que seria melhor, nas minhas condições, que mamãe não morresse durante a noite, pois a dificuldade de me locomover, somada a outros incômodos, não me possibilitariam de dar-lhe toda a assistência que eu gostaria de oferecer a ela nesse supremo momento. Quisera, antes, que fosse de manhã, depois de eu ter dado as orientações necessárias ao desenvolvimento do nosso apostolado naquele dia, e assim, poder estar ao lado dela quando Deus a chamasse a Si. Contudo, não imaginei que esse passamento se desse tão logo.
No dia seguinte, 21 de abril, acordei e perguntei por mamãe. Disseram-me que o estado dela permanecera mais ou menos o mesmo. Trouxeram-me o lanche da manhã e o jornal. Ora, mal acabara de lê-lo, o médico que a assistia entra no meu quarto e me diz: “Dr. Plinio, venha depressa. Dona Lucilia está morrendo!”
Tão rápido quanto me era possível naquelas condições eu me dirigi ao quarto dela, e assim que entrei, o médico me disse: “Ela já morreu”. Contou-me, então, que a respiração de mamãe tornara-se cada vez mais ofegante, mas ela não quis me chamar. Quando ele percebeu que eram seus últimos instantes, foi me avisar e, ao voltar, a viu fazer um grande Nome do Padre e, em seguida, estender as mãos ao longo do corpo. Entregara sua alma a Deus.
Tristeza envolta em suavidade
Apesar dos meus 60 anos, à vista de mamãe morta, chorei copiosamente, e em altos soluços, entremeados com frases de gratidão e de amor para com ela. Na desolação profunda em que me encontrava, repetia que ela era a luz dos meus olhos, o que havia de mais precioso para mim na vida. Lamentei não ter podido vê-la no derradeiro momento, e rezei muito por sua alma.
Depois disso, era preciso que eu me aprontasse, e dei as recomendações necessárias para se preparar o velório e o sepultamento. Curiosamente, enquanto fazia minha toilette, não obstante a imensa tristeza que me confrangia, senti-me tomado de uma tranquilidade suave e distendida, de maneira que o peso trágico do fato deixou de acabrunhar a minha alma. Assim me foi possível estar o tempo inteiro ao lado do corpo de mamãe, até a hora em que seria levado para o cemitério.
Era minha intenção acompanhá-la até à beira da sepultura. Porém, a ferida cirúrgica no meu pé ainda não estava inteiramente cicatrizada, de um lado; de outro, era-me muito penoso vê-la pela última vez no caixão, e este em seguida ser depositado no fundo da cova, coberto de terra... Não tive coragem. Permaneci no meu automóvel, à porta do cemitério.
No restante do dia passei recebendo os cumprimentos de parentes e amigos. Na manhã seguinte, atendendo aos conselhos dos médicos que cuidavam de minha recuperação, dirigi-me a uma fazenda que nosso movimento possuía no interior de São Paulo e ali fiquei até retornar para a Missa do Sétimo Dia de mamãe.
Um sorriso do Céu...
Uma última recordação. Como se sabe, segundo a doutrina católica, mesmo almas que praticaram a virtude neste mundo podem passar pelo Purgatório, a fim de se purificarem de alguma imperfeição. Se, conforme se lê em relatos de certas visões, até mesmo almas de grandes santos tiveram de pagar esse tributo, era natural que eu me perguntasse se a de mamãe não estaria ainda ali, purgando-se de qualquer defeito. Essa idéia me incomodava, e eu, com confiança na misericórdia divina, pedi a Nossa Senhora que me desse um sinal de que a alma de Dª Lucilia já estivesse na bem-aventurança eterna.
Com essa esperança, dirigi-me à Igreja de Santa Teresinha, no bairro de Higienópolis, onde seria celebrada a Missa do Sétimo Dia. Ocupei um lugar no primeiro banco, junto com pessoas de minha família, e notei que nos degraus do presbitério havia sido colocada uma mortalha feita de rosas vermelhas, tendo no entroncamento dos dois braços da cruz um lindo buquê de orquídeas.
Ora, no momento da Consagração, surpreendo-me com este fato extraordinário: pela fenda aberta num dos vitrais da igreja passou um raio de sol que incidiu exatamente sobre a cruz de rosas, deslocando-se de modo lento até se fixar no buquê de orquídeas. Mas, iluminou-o com tanta intensidade que a luz parecia penetrar as pétalas das flores e fazê-las refulgir por dentro.
Ao término da Consagração, o raio de luz deslizou em direção à porta oposta à sacristia e desapareceu. Porém, moveu-se de um tal jeito que me fez lembrar o andar de Dª Lucilia, e então me veio o pensamento, senão a certeza, de que aquele era o sinal que eu havia pedido: “ela está no Céu!” Essa ideia muito me consolou, e saí da igreja aliviado. Sem dúvida, podem as almas do Purgatório rezar pelas que estão na Terra. A de mamãe, se lá estivesse, estaria pedindo por mim. Mas, que alegria saber que ela já o fazia na visão beatífica, inundada daquela felicidade eterna que um dia, pela misericórdia de Nossa Senhora, nos inundará a todos nós!

Extraído de conferências em 11/1/1982 e 20/4/1991

domingo, 5 de outubro de 2014

Presença enternecedora

Acolhida à sombra da árvore que plantara
É interessante constatar como essa compaixão de mamãe para comigo, embora se manifestasse sempre que as circunstâncias a despertavam, ia adquirindo feições novas ao longo de minha vida. Quando eu era menino, ela inteira se debruçava sobre mim para me amparar. Mais tarde, no período de constituição do meu caráter, a solicitude dela se fez sentir em relação à luta que eu era obrigado a travar, como adolescente, para a minha própria formação. Quando homem maduro, eu notava nela uma espécie de legítima ufania, à semelhança de quem construiu um barco e se compraz ao vê-lo navegar: “Deixe-o singrar, alegra-me ver como ele enfrenta as ondas; sinto satisfação por ter feito isso, em ter tido um filho e o haver formado para que depois enfrentasse a vida de peito aberto!”. Essa era a alegria dela.
E quando se aproximavam seus últimos anos de vida, a missão protetora e formadora da compaixão dela, enquanto mãe, ia cessando. Ela sentia esse compreensível minguamento e, por sua vez, passou a como que “se encostar” na minha compaixão para com ela. Portanto, deu-se uma nobre e natural inversão da situação antiga, ela veio se acolher à sombra da árvore que ela mesma tinha plantado.
Presença sempre enternecedora
Seja como for, já com seus 91 anos, a presença dela continuava sempre enternecedora, cumulando-me de agrado. Durante toda a vida, a conversa de mamãe foi agradável, mas sua presença era ótima, pelo fato de sua pessoa irradiar algo muito mais valioso do que a palavra humana possa exprimir, e de comunicá-lo com doçura, suavidade, alegria, ao mesmo tempo com tanto recolhimento, tanta dignidade e seriedade, que eu jamais me saciava de estar perto dela.
Lembro-me de que, às vezes, estando eu trabalhando no meu escritório, ela entrava, sentava-se na cadeira de balanço que ali havia e permanecia quieta ao meu lado, desfiando seu rosário. Quiçá, movida pela generosidade materna, ela encontrasse algum entretenimento na minha presença, mas a recíproca era inteiramente verdadeira, e eu me comprazia de modo prodigioso em estar com Dona Lucilia: dizia-lhe algo afetuoso, fazia-lhe um carinho, e a deixava contente.

Assim transcorreu nosso convívio, até alguns meses antes de ela falecer.
Na véspera da morte, calma e serenidade
Em fins de 1967, comecei a notar os primeiros sintomas da doença que haveria de me prostrar durante semanas, culminando numa operação1. Quando retornei do hospital, mamãe ainda estava viva, mas havia envelhecido muito. Acredito que ela não tenha percebido que eu estive fora tanto tempo, ou ao menos não se manifestou a esse respeito.
A convalescença me obrigava a permanecer com a perna estendida durante todo o tempo, numa posição bastante incômoda e desagradável. Após esse período de penosa recuperação, quando eu apenas começava a poder andar com o auxílio de muletas, afirmaram-me que a saúde de mamãe se agravara de modo alarmante: ela caminhava para o fim.
Recordo-me que na véspera da morte dela, mamãe se achava muito pior do coração, e por isso passei o dia inteiro no quarto dela. A falta de ar a oprimia de tal maneira que a impedia de conversar, e ela sofria muito com o mal-estar e a agonia que a asfixia traz consigo. Entretanto, mantinha-se calma, tranquila, serena.

Continua