domingo, 29 de dezembro de 2013

Dona Lucilia e o Natal

Dona Lucilia formou seus filhos de modo a terem o espírito sempre voltado para a transcendência. Tal orientação influenciou a fundo o Natal da família
Dona  Lucilia  tinha  uma  grande  elevação  de  alma. Ela estava na direção  de uma família pequena e levava uma vida muito recolhida, serena, tranquila, própria de uma senhora de casa. E habitualmente percebia-se, por seu olhar, seu timbre de voz,  sua expressão de fisionomia, seus gestos, que tudo quanto ela pensava se  relacionava com as mais altas considerações possíveis; e seu espírito contemplava as coisas de uma altura metafísica, —  embora ela não fosse uma senhora de  cultura filosófica — de uma grande elevação.
Espírito voltado para a transcendência
Isso  se  notava  nas  menores  coisas; por exemplo, agradando seu filho enquanto  brincava, como qualquer  mãe  faz  com  seu  filho.  Porém  esse agrado era deduzido de tão altas considerações que percebia-se em sua fisionomia, seu  modo de ser, provirem de muito alto e serem muito lógicas.
Dessa forma, todo agrado que ela fazia aos filhos era um incentivo para  serem melhores, visando uma elevação altíssima.
Essa transcendência marcava  o Natal. Por  exemplo, seu filho Plinio  acreditava  muito  em  São Nicolau, mas percebia haver algo de meio mítico, lendário, de maneira  que  não se  preocupava  em  imaginar como era sua figura. Dona Lucilia ensinava que São Nicolau vinha do Céu e dava presentes. Relacionava com valores dos mais altos, mais transcendentes, que o espírito humano possa atingir. 
Rezando junto ao presépio
Isso  transparecia  muito  na  noite  de Natal. Dona Lucilia providenciava uma  grande árvore de Natal, que ela mesma ornamentava com muitos enfeites.  Estando tudo pronto, convidava seus filhos, depois primos irmãos, — era um grande número de crianças —, e ainda outros parentes. Então  desciam todos do andar superior da  casa, segurando  pelas mãos e cantando  canções natalinas, até junto àquela árvore que estava toda iluminada, ao pé  da qual havia um presépio com o Menino Jesus. Ela mandava que todos se  ajoelhassem e rezava uma oração na  qual se percebia toda a sua elevação  de alma, toda a sua suavidade e doçura. Compreendia-se haver ali uma  alegria superior que impregnava tudo aquilo; era a alegria da bondade,  da virtude, da retidão, da limpeza, da  consciência tranquila.
Em ultima análise, era a alegria  de  Deus  que  se  comunicava  a  todos  pelos sorrisos do Menino Jesus.
Alegria de praticar a virtude
Tudo aquilo impregnava  profundamente a noite de Natal com esta  ideia  que  falta  muito  na  educação  de hoje: a vida do homem virtuoso  é mais suportável, mais aceitável, do que a do não-virtuoso. A virtude traz  alegria, é entusiasmável. É possível  viver 70, 80 anos na virtude sem desanimar; isso Dona Lucilia, pelo seu modo  de ser, deixava muito claro, e  ensinava a degustar essa alegria sobrenatural que pairava em torno da noite de Natal.
Terminada a festa, os convidados  iam para as suas casas, e seus filhos para  cama. Ela os esperava adormecer para pôr aos seus pés o  presente. E eles acordavam de madrugada na ânsia de vê-lo. Porém — fato por onde se nota a temperança de dona Lucilia e como  ela os educava —compreendiam que não deviam acender o abajur,  pois  havia  pessoas  dormindo  na casa. Seria uma desordem, não  só porque as acordaria, mas em razão de um princípio superior: hora  de dormir é hora de dormir, não se brinca; hora de brincar é hora de  brincar, não se dorme.
Quando clareava o dia, despertavam, saltavam da cama e abriam o pacote. Sentiam um gáudio, uma satisfação. Esperavam, então, Dona lucilia acordar para ir agradecer-lhe. E  o abraço, o beijo, a bênção dela, eram  um  presente  maior  do  que  aquele  que ela acabara de os dar.
Tudo  isso constituía aquela espécie  de alegria meio angélica do  Natal, que somente conhece  quem a teve.  Esta ideia  da alegria como  fruto do bem, como um modo de nos sustentar na prática da virtude,  foi complementar de uma outra  que ela ensinava muito: aguentar a vida dura, porque a vida é  difícil, é uma luta, e temos  que sofrer. Vendo como Dona Lucilia sofria, colhiam lições para sua  formação.
Plinio Correa de Oliveira - extraído com adaptações de conferência de 27/12/1975


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Os “jeitinhos” suaves e delicados de Dona Lucilia

O “jeitinho”, característico do povo brasileiro, era também uma qualidade de Dona Lucilia. Lembrando um episódio da vida familiar, Plinio Correa de Oliveira comenta a arte de solucionar situações delicadas com serenidade e grandeza.
O que vem a ser o “jeitinho”? O que faz aí o diminutivo, necessário e indispensável, para que a palavra “jeito” tenha o seu verdadeiro valor?
Pode-se falar que uma pessoa, uma resposta, uma saída são jeitosas; e o mesmo a respeito da defesa de alguma pessoa a quem se quer bem, ou da acusação a quem se julga dever denunciar. Que significa “jeito”, nesses casos? É uma qualidade de uma pessoa que, devendo praticar algo e se deparando com dificuldades, encontra surpreendentemente uma solução para resolvê-las.
O que é o “jeitinho”?
O “jeitinho” é uma solução inesperada de uma situação que, aparentemente, não tem saída. Ele exige muita finura de visão para perceber que existe solução e, depois de descobri-la, executá-la de tal maneira que a dificuldade fique inteiramente resolvida sem encrenca.
Deve ter êxito e chamar pouca atenção, do contrário não é “jeitinho”. Às vezes, não é necessário falar; com um movimento de dedos, um golpe de olhar, um sorriso, ou um cumprimento, atinge-se o objetivo. Por isso ele é “jeitinho”: rápido, pequenino e triunfante.
Toda a riqueza desta arte consiste em perceber, com grande gênio, pequeníssimos problemas, na realidade importantes, e soluções menores ainda do que os problemas. Soluções que exigiriam quase um microscópio para serem descobertas, mas que a pessoa percebe, arranja e vai para frente.
Os “jeitinhos” de Dona Lucilia
Analisando mamãe, eu via que ela era muito jeitosa, sobretudo num ponto: consolar as pessoas que estavam sofrendo física ou moralmente; a esse respeito não havia ninguém igual à Dona Lucilia.
Recentemente, um sobrinho dela — portanto, meu primo-irmão — contou um fato que estava nas brumas da minha memória, do qual me lembrava confusamente.
Minha avó, dona da casa onde morávamos, era uma senhora já velha, mas muito bonita e imponente. Com o olhar ela dominava as pessoas. Durante as refeições — como é natural, sendo ela a matriarca —, ficava sentada junto à cabeceira da mesa.
Um filho dela, que viajara com a esposa para o Rio de Janeiro, deixou hospedados na casa de vovó dois filhos e uma filha, ainda meninos, o que ela aceitou como a coisa mais natural do mundo, e o era de fato. Mandou instalar as crianças, colocando os meninos num quarto e a menina em outro.
O mais velho tinha ganhado, recentemente, uma bicicleta, que ele levou para a casa de sua avó, onde iria passar alguns dias, pois queria dar alguns giros com o veículo.
Situação difícil
Certa manhã, esse meu primo havia saído de bicicleta e, na hora do almoço, não estava presente, ou porque gostara do passeio e não quis voltar, ou se esquecera da refeição.
O almoço começou e, em certo momento, minha avó disse:
— Por que Fulano não está presente?
Somente neste instante, dei-me conta de que ele não estava; fiquei quieto.
Ela, então, perguntou a mamãe:
— Lucilia, Fulano não está?
— A senhora está vendo, ele não se encontra.
— Quando ele chegar, verá o que lhe custará isso.
Algum tempo depois, o menino apareceu e minha avó disse-lhe antes de ele sentar-se:
— Onde é que você andou?


 — Eu fui dar um passeio de bicicleta.
— Mas você foi onde com essa bicicleta?
— Estive em tais e tais ruas — ele em pé esperando licença para sentar-se.
— Mas você se dá conta de que está em casa de sua avó, lugar de sumo respeito, e não tem o direito de chegar atrasado?
Ele ficou esmagado porque não supunha essa censura. E disse:
— A senhora me desculpe.
— Não, senhor, não se trata de desculpa. Esse assunto não terminou; depois do almoço verá o que é punição. Agora se sente e coma depressa sem conversar, para não atrasar o serviço da mesa.
O resultado foi que o menino — que tinha então uns doze anos — retirou-se da sala, chorando. Isso produziu nas pessoas certo movimento, muito brasileiro, de compaixão. Mas a dona da casa estava vigiando os olhos e os olhares; todos ficaram quietos.
A saída encontrada por Dona Lucilia
Olhei para mamãe: ela permanecia inteiramente tranquila, conforme seu modo de ser. O normal seria que estivesse com muita pena do menino, o qual era seu sobrinho, mas ela ficou em silêncio.
Tomou um ar o mais neutro possível e, quando a conversa tinha mudado de tema, ela disse:
— Com licença, preciso sair um pouco para ver uma coisa.
Levantou-se e percebi que mamãe fora para o corredor, situado ao lado da sala de jantar, a fim de consolar o rapazinho que chorava debandadamente, explicando-lhe entre outras coisas:
— Sua avó é assim mesmo, você não se incomode. Ela é uma senhora muito boa.
Realmente, vovó era, por exemplo, muito esmoler e tinha grande pena dos pobres. Porém, seus netos não estavam na lista dos pobres...
Diga-se entre parênteses que às vezes minha irmã e eu enfrentávamos discussões tempestuosas com ela. Conosco as coisas não se passavam assim, mas à maneira de duelo.
O menino, então, parou de chorar, entrou com mamãe na sala de jantar, sentou-se e começou a comer ativamente, em silêncio; possuía um apetite de leão. Minha avó tinha-se acalmado e o ambiente da sala se recompôs; o “jeitinho” de Dona Lucilia havia resolvido o caso.
Esse menino, hoje homem feito, há pouco tempo atrás, conversando com alguém que se interessava pela vida de mamãe, narrou esse fato e acrescentou o seguinte: “Tia Lucilia era uma santa! O calor de um afeto assim eu nunca mais senti na minha vida, e até hoje me lembro disso.”
Nesse caso, no que consistiu o “jeitinho”?
Em compreender que não adiantava dizer qualquer coisa à vovó, nem consolar o menino naquela ocasião, porque minha avó não permitiria. Ele estava sendo castigado e não podia ter consolo.
O que fez mamãe? Conservou-se numa neutralidade tranquila que irradiava tranquilidade em torno de si.
Então, primeira característica do “jeitinho” foi ter essa tranquilidade e saber espargi-la no momento certo. Segunda, o haver percebido qual era o instante em que ela podia sair para atender o sobrinho. Logo que chegou esse momento, ela levantou-se muito calma e tranquila, dizendo “Eu preciso ver uma coisa lá dentro”; isso não era mentira, pois ela tinha que ver esse menino, e todos os presentes tomaram suas palavras com naturalidade. Julgo não terem eles nem se lembrado de que mamãe ia atender seu sobrinho.
Outra característica: de um modo rápido tranquilizou o menino, para não ficar muito tempo fora da sala e não causar à minha avó a desconfiança de que ela estava consolandoo. Depois, regressou com o sobrinho e o pôs junto à mesa, tendo prestado atenção no assunto da conversa para evitar que a prosa voltasse a se referir ao menino. Assim, o almoço continuou normalmente.
Assim era mamãe: com “jeitinho”, resolvia uma série de situações difíceis.

Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 19/10/1994

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Amparo maternal

Em Dona Lucilia havia duas qualidades que pareciam antitéticas, mas se completavam muito bem. Ela era muitíssimo carinhosa enquanto notava em seu filho, ou numa outra criança, a debilidade da infância. Seu entranhado carinho se debruçava para amparar a criança na sua fragilidade. Quando menino, Plinio Correa de Oliveira sentia muito que sua debilidade de criança era uma razão especial para ela o querer bem.

“E não posso dizer quantas vezes eu a vi sorrir a essa debilidade e como ela a manuseava amavelmente, afavelmente, delicadamente, ora brincando, gracejando um tanto, ora explicando um pouco o mundo dos mais velhos, na medida em que uma criança pudesse compreender. E eu me sentia ultra à vontade com a tradução que ela fazia do mundo dos mais velhos para os mais novos.

Eu sentia muito isso também nos cuidados dela para conosco. Mais especialmente, prestava atenção no modo de ela cuidar de mim, é natural. Quer dizer, cuidados com a saúde, com o corpo, com as maneiras — não fazer brincadeiras abrutalhadas —, cuidado com tudo. Um cuidado meticuloso e afetuoso, tudo bem direito, arranjado, como deveria ser, mas de uma observação benevolente e disposta a sorrir a qualquer pequeno defeito, desde que não houvesse a insistência nele. A persistência no defeito ela não tolerava.

Por outro lado, sentia muito nela uma espécie de guindaste: ela me suspendia. Era dotada de uma fortaleza de alma, por onde a força da convicção dela fortalecia minhas convicções. A retidão de sua conduta dava-me retidão na minha. A repulsa que ela fazia do mal, do erro e do feio, fazia-me repudiá-los também.


Eu era um menino muito mole — aliás, pode-se perceber isso pelas fotografias —, e ela me animava enormemente. Para usar uma figura da Sagrada Escritura: de um lado, ela apoiava em mim o Jacó, no que este tinha de delicado em comparação com Esaú; de outro lado, ela preparava em mim o Jacó que lutaria contra Esaú. Nesse sentido também, fez-me um bem colossal!”

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Serenidade na alegria e na dor

A impostação de uma alma diante da normalidade da vida quotidiana prepara-a para os momentos de alegria, bem como para os de sofrimento. Assim se dava com Dona Lucilia, serena na alegria, mas também na provação.
Dona Lucilia tinha um temperamento eminentemente sereno. Mesmo quando algo lhe transmitia uma especial alegria, ela não perdia a tranquilidade, hauria  esta  serenidade  que  depois se estendia para os momentos de dor e sofrimento. Nestas ocasiões, sua reação não era distinta da que ela teria nos dias  comuns. Pois ela amava Nosso Senhor Jesus Cristo, e se Ele tanto  sofreu sem  nunca  reclamar, conservando  inteira  serenidade,  também ela deveria ser desta forma.
As pequenas alegrias preparavam-na para conservar a serenidade diante da dor
Desta  forma,  todas  as  suas  pequenas  alegrias  ao  longo  de  cada  dia preparavam-na para conservar-se serena diante de sofrimentos futuros. 
Por  exemplo,  num  dia  comum,  agradável  e  tranquilo  —  como  era  normal  na  São  Paulinho  daqueles tempos —, ao aproximar-se a hora do retorno de seu filho Plinio do colégio, ela sempre  ficava um pouco preocupada, com receio de que lhe acontecesse algo pelo caminho. Sobretudo por ser ele um  pouco  distraído,  ela  temia  que  um  automóvel o atropelasse. Por isso, ela permanecia no terraço andando um pouquinho e tomando ar, muito  serena, apesar de preocupada.
Em certo momento, ela via o portão se abrir e ele entrar. Quando ele  percebia que sua mãe estava lá, tirava  o chapéu e a cumprimentava, depois  ia  correndo  falar  com  ela.  Mas,  às  vezes, ele não a via e entrava direto.  Nestas ocasiões, ao vê-lo  entrar, ela deveria sorrir serenamente e dizer: “O meu filhão chegou.” Era um fato inteiramente  normal,  mas ela o vivia dentro de uma atmosfera religiosa, a qual fazia de uma simples chegada uma causa de felicidade para ela. Nestas alegrias suaves e tranquilas, ela encontrava a serenidade e a paz para sua alma.
Assim,  quando ele  chegava  junto dela, não encontrava nenhum resquício da preocupação que tinha há  pouco, pois a primeira impressão de sua chegada bastava para a tranquilizar.  E, aproximando-se dela,  ela dizia suavemente: “Filhão, como vai?”
“Sua serenidade me tranquilizava”
À noite, quando seus filhos  já estavam dormindo, Dona Lucilia passava pelo quarto deles e fazia várias cruzinhas em suas frontes, pedindo a  Deus que os abençoasse.  
Algumas vezes, acontecia de Plinio  acordar nessa hora, mas, ainda que   não  despertasse  inteiramente, percebia tratar-se de sua mãe; então,  dormia ainda mais contente e tranquilo, por saber que aquela serenidade havia pousado sobre ele.
Assim era Dona Lucilia: suave e  afetuosa, até mesmo à noite! 
Calma e serenidade em meio aos dissabores
Dona Lucilia conservava  esta  serenidade até mesmo nos momentos mais difíceis. Em todas as dificuldades, ela nunca se portava com agitação ou torcida.
Depois  do  primeiro  impacto  de  um revés qualquer, ela pensava um  pouco e dizia: “Bom, eu vou fazer isto, falar aquilo, resolver de tal forma.” Planejava tudo, e depois, com toda a tranquilidade, começava a execução do plano.
Este estado de espírito, no fundo,  era uma plena confiança em Deus,  que  a  levava  a  pensar  o  seguinte: “Por mais que nos advenham os piores infortúnios, Deus permitiu, e, portanto, é para o nosso bem. Estes sofrimentos são o ornato da vida.” Assim ela via o sofrimento, com inteira serenidade, sabendo que tudo acontece por uma razão mais alta que está em Deus.
Jesus sofredor, modelo de serenidade seguido por Dona Lucilia
Para  conservar  esta  serenidade,  concorriam as Vias Sacras  que ela rezava na Igreja do Sagrado  Coração de Jesus, diante de estações  não muito artísticas, porém sérias e  piedosas. Em cada uma das estações  está representado um sofrimento de  Cristo durante sua Paixão. Em todos  eles,  Nosso  Senhor é  apresentado  com uma enorme serenidade e tranquilidade, por mais que sejam enormes seus sofrimentos. Ele sofre, sabendo que tem de sofrer, e por isso não toma aquilo como sendo algo  extraordinário e inconcebível.
Frei Pedro de Cristo, ao compor uma canção que diz “Ojos claros serenos, si pues morís por mi, miradme al menos — olhos claros serenos, se  morreis por mim, olhai-me pelo menos”, acertou enormemente. Pois, de  fato, se Aquele que, em meio a tantos sofrimentos, conservou tal serenidade,  pousasse  o  olhar  sobre  alguém, isto bastava para infundir-lhe  a mesma paz.
Dona Lucilia várias vezes parava diante  da imagem do Sagrado Coração de Jesus, olhando-O durante longas horas,  talvez tenha recebido d’Ele um olhar,  que bem pode ter sido a causa de haver nela tanta serenidade. Algo semelhante dava-se  com  Dona  Lucilia: quem se aproximava dela recebia algo desta serenidade que, em última análise, vinha de Cristo Nosso Senhor.  

Transcrito com adaptações da conferência de Plinio Correa de Oliveira de 11/03/1995

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O afeto de uma mãe

Vejamos pelas palavras de Plinio Correa de Oliveira alguns aspectos da bondade de Dona Lucilia.
Um dos predicados morais de Dona Lucilia que mais me tocava e estreitava minha união com ela era sua compaixão. Em diversos episódios e circunstâncias me era dado notar a ternura de mamãe para comigo e o modo como considerava as necessidades de uma criança, máxime sendo filho dela. A fragilidade daquele ser pequenino despertava em seu coração materno um desejo de proteção, ao lado de uma compreensão íntima, pormenorizada e delicada das carências próprias às condições de um menino.
Compassiva nas doenças do filho
Ela percebia bem como eu mesmo sentia as minhas debilidades, e me acompanhava com um olhar solícito, como quem diz: “Essa é a trajetória de todo homem. Mas, é natural que um homem tenha uma mãe, e que esta seja toda ternura para ele. É conforme à lei da vida que as coisas se passem assim; você deve se sentir compreendido em tudo e não ter nenhuma espécie de amor próprio falso que lhe faça esconder de mim a sua debilidade. Pelo contrário, coloque-a em minhas mãos, que eu tratarei dela”. Essa disposição me era manifestada com um sorriso cumulado de afeto, e da promessa de que ela atravessaria comigo aquele caminho semeado de dificuldades.
De maneira especial, a compaixão de Dona Lucilia se mostrava inteira quando eu adoecia. Nessas circunstâncias, seu desvelo e seu carinho eram levados ao extremo, com uma preocupação inteira por causa de minha doença. Eu, sempre observador, não deixava de considerar sua atitude ao entrar no meu quarto nas pontas dos pés, sorrindo, com um copo de remédio de homeopatia nas mãos, e dizer-me: “Filhinho, chegou a hora de tomar o medicamento”. Na verdade, era a consolação de minha alma tê-la ali perto, e a presença dela compensava a dor que eu sofria.
Como se sabe, as analogias na cabeça de uma criança são vivazes, e eu fazia correlação entre o refrigério da água com que eu tomava o remédio e a bondade de mamãe. Pensava: “Ela é para mim o que esta água é para meu corpo doente — um refrigério. Sinto o meu espírito refrigerado na companhia dela”.
O mesmo desvelo na maturidade de Dr. Plinio
Essa compaixão manifestou-se invariável ao longo de toda a vida dela. Por exemplo, quando eu já era homem feito e formado, morávamos numa casa na Rua Itacolomi, onde tive uma indisposição física muito forte. Mamãe, num tom afetuoso e inquiridor de quem havia percebido, me perguntou:
Filhão, você está indisposto, não é?
Meu bem, realmente estou, mas prefiro não recorrer aos seus médicos. Eu não gostaria de dizer “não” à proposta da senhora de chamar algum deles, mas sobretudo não quero dizer “sim”.
Ela, com sua calma característica, aproximou-se de mim e colocou a mão sobre minha testa, e só aquele contato o frescor de sua mão me transmitiu alívio e tranquilidade. Disse-me: “Você está com febre”. E eu pensei: “Agora ela vai colocar o termômetro e este indicará 38°, 39°. Mamãe ficará preocupada e eu vou me meter em uma engrenagem que não me agrada em nada”. Ela pôs o termômetro e, após alguns minutos, verificou a temperatura.
Não é nada. O que você quer fazer meu filho?
Meu bem, quero ganhar tempo, deitado e tranquilo. Então, ela trouxe uma cadeira do quarto, colocou-a próximo à minha cama, sentou-se e começou a rezar. Ali permaneceu durante horas, até anoitecer. Em certo momento, eu disse:
Meu bem, estou com muita fome e a senhora vai querer que eu coma algo.
Diga o que você quer que sua mãe traz.
Ela mesma foi preparar o que eu pedi, serviu-me, conversamos um pouco, e quando nos despedimos ela me disse, no mesmo tom de carinho e solicitude: “De outras vezes, você não esconda nada de sua mãe, porque ela percebe e não vai lhe impor coisa alguma”.
Só então eu percebi como ela não considerava bagatela aquela minha indisposição. Entretanto, a rogos de Nossa Senhora, a Providência me favorecera com boa saúde e na manhã seguinte eu já estava recuperado. Assim que me levantei, fui ao quarto de mamãe para cumprimentá-la, tranquilizá-la e agradecê-la pelos cuidados da véspera. E retomamos a vida comum de todos os dias.
Porém, ficara-me a certeza de que, se a doença se agravasse, o desvelo dela se desdobraria até o fim.
Extraído de conferência 11/1/1982

sábado, 9 de novembro de 2013

Suavizante bondade

Entre os edificantes aspectos da pessoa de sua mãe, Dr. Plinio apreciava a elevada clave de espírito em que ela se situava e da qual provinham seu afeto e sua benevolência, tão atraentes quanto consoladores. Na verdade, Dona Lucilia procurava, habitualmente, considerar todas as coisas em função do parâmetro absoluto que é Deus.
Quando menino de 2 ou 3 anos acordava durante a noite e saía do meu berço — colocado ao lado da cama de Dona Lucilia — para ir me sentar sobre o peito de mamãe. Abria seus olhos com a mão e começava a analisá-la.
Líquidos de sabores semelhantes em taças distintas
Creio que, instintivamente, conforme os rudimentares anseios de uma criança nessa idade, eu percebia através do modo como ela então me tratava, a expressão de uma bondade superior, arquetípica, cuja manifestação me apareceria mais tarde, quando me fosse dado compreender a misericórdia do Sagrado Coração de Jesus para conosco.
Essa afinidade entre a bondade e a compaixão infinitas d’Ele com as de mamãe sempre me chamou a atenção. Aos olhos de menino, essa consonância poderia ser comparada a duas taças a mim oferecidas, com líquidos cujos sabores me pareceriam análogos. Eu tomaria de uma e me deliciaria com seu conteúdo; pouco depois, beberia da outra, e igualmente me sentiria agradado, sem chegar à conclusão de que era o mesmo líquido.
Claro está, devem-se guardar as proporções entre o finito e o infinito. Assim, ao conhecer o Sagrado Coração de Jesus, discerni n’Ele o perfeitíssimo a perder de vista, sem nenhuma ressalva ou restrição, o suprassumo do que se podia conceber em matéria de misericórdia e bondade. Entretanto, afim com a bondade de mamãe, embora incomparavelmente menor, como se Ele vivesse nela. De sorte que o maravilhamento causado em mim por Dona Lucilia, de modo mais circunscrito, era do mesmo gênero que o superior encanto produzido pelo Coração de Jesus na minha alma. Aquele era derivação deste. E quando, anos mais tarde, cheguei à conclusão de que eram coisas afins, não tomei essa definição como uma conquista nem como uma surpresa, e sim como uma constatação natural do que eu sempre sentira. Eram taças com líquidos parecidos.
Em qualquer parte do mundo ela me atrairia!”
Parece-me interessante notar que as descrições feitas por pessoas que conheceram mamãe, correspondem minuciosamente à essa impressão que ela me causava. E corroboram em mim a certeza de que, em qualquer parte do mundo onde nos encontrássemos, eu seria atraído por Dona Lucilia.
Diversas vezes, durante o nosso longo convívio, me pus este problema: qual seria o teor deste relacionamento, caso eu não fosse filho dela, mas sobrinho? E concluía que só não seria idêntico pela razão de não estarmos continuamente juntos, sob o mesmo teto. Quanto ao mais, não haveria diferença.
E se ela fosse uma pessoa que eu conhecesse noutro ambiente da sociedade paulista? A mesma resposta. Em qualquer lugar, eu teria sido conquistado pelo olhar dela, pelo seu modo de ser, e teríamos estabelecido uma amizade inabalável. E me agradaria pensar que tais sentimentos fossem recíprocos.
Daí o meu trato com mamãe se traduzir em manifestações as mais carinhosas possíveis. Chamá-la de “meu bem” a todo momento era o mínimo que eu lhe dizia, de tal maneira nossa união era completa, natural, constante. Mais que união, era uma identidade.
Reflexo da clemência de Nossa Senhora
Essa relação baseada no afeto e na bondade teve um importante papel na minha compreensão acerca da insondável misericórdia de Nossa Senhora para com os homens, especialmente para com os pecadores. Quando eu próprio me senti objeto dessa clemência da Mãe de Deus, foi como se Ela me dissesse: “Eu perdôo tudo, e por mais que você cambaleie e se apresente a mim nesse estado de penúria espiritual, terei pena e o perdoarei”. O sentir essa disposição maternal determinava em mim a idéia da proteção e do afago desinteressados de Nossa Senhora para comigo: a misericórdia d’Ela sobrepuja os últimos limites de minha miséria, cobre-os com sorriso, com ternura, com sobras de complacência, só porque eu sou o Plinio... Ora, em grau menor, eu sentia análogas disposições de mamãe em relação a mim. Portanto, sem eu saber, ela preparava meu espírito para compreender a extraordinária misericórdia de Nossa Senhora. Quiçá eu não a tivesse entendido como a entendi, não fosse esse contato prévio com o afeto de Dona Lucilia.
Ungido pelo perfume da bondade
A par dessa profunda analogia com a ternura de Maria Santíssima, eu apreciava em Dona Lucilia a elevada clave de espírito em que ela se situava e a partir da qual nos dispensava suas manifestações de afeto e benevolência. Na verdade, mamãe procurava habitualmente considerar as coisas em função de algo mais alto, em função do parâmetro absoluto que é Deus, assim como procurava atraí-las para essa elevação de alma.
De maneira que me sentia a mim mesmo sendo visto desde essa clave, e quando Dona Lucilia me agradava, era algo desse patamar que descia sobre mim, e como que me ungia. Por exemplo, quando ela me fazia o sinal da Cruz na testa, antes de ir dormir, eu percebia que alguma coisa daquela alta clave me recobria como um azeite, um bálsamo, e me fazia bem. Mas, no sentido próprio da palavra: era perfumado, suavizante, e penetrava em mim como o óleo penetra no papel.
Junto com essa elevação, a bondade invariável para comigo e para com os outros. Revestida de uma certa tristeza, igualmente comovedora, por constituir um ápice de conúbio com aquela clave elevada, na qual ela muitas vezes se sentia só: “Moro nesse patamar, que é o lugar do meu abandono. Convido-os para estarem comigo e desejo sua companhia. Porém, se não vierem, aqui permanecerei sozinha.”
Supérfluo dizer que essas qualidades de Dona Lucilia falavam imensamente à minha alma de filho...
Plinio Correa de Oliveira - Transcrito de conferência em 4/12/1985

sábado, 2 de novembro de 2013

Alma feita de harmonias

Calma dentro da apreensão, serenidade no repreender, convicção firme nos princípios. Em Dona Lucilia, todo o equilíbrio de alma era profundamente católico, como nos descreve Dr. Plinio ao recordar as suaves atitudes de sua mãe perante o cumprimento do dever.
Dona Lucilia possuía seu modo peculiar de corrigir os filhos, e na sua forma de nos repreender agradava-me constatar o equilíbrio entre a firmeza e o afeto, o carinho entristecido e condicionado, como se dissesse: “Se deixar de ser bom filho, não deixarei de lhe querer bem, mas será em outros termos”.
Com voz aveludada...
Quando havia necessidade de me censurar, ela me chamava, passava a mão pela minha cintura, fitava-me de frente com seus olhos castanhos bem escuros, e me perguntava:
Meu filho, é verdade que você fez tal coisa errada?
Diante de minha confissão, mamãe prosseguia numa análise inexorável do meu mau procedimento, e demonstrava por “a + b” tudo quanto aquela ação tinha de ruim. E ela o dizia com o timbre de voz aveludado, nunca estridente, pelo qual percebia-se a sua tristeza em nos fazer sentir a reprovação que aquilo merecia. De maneira tal que eu acabava compreendendo quanto era justa a repreensão, e com esta me tornava consoante. Terminado o pito, Dona Lucilia acrescentava:
Agora peça perdão à sua mãe. Eu pedia perdão, osculava a testa dela e, envolvido naquele carinho, saía de junto dela como se tivesse ganho uma indulgência plenária...
Cumpre salientar, aliás, que se eu deixasse de merecer essa forma de ternura materna para comigo, sobretudo quando era corrigido, eu perderia certa comunhão de alma com Dona Lucilia, a qual não desejava absolutamente perder. E mamãe me tornava isso presente.
Equilíbrio entre calma e apreensão
Essas composições e harmonias na alma de Dona Lucilia se manifestaram sempre ao longo do nosso extenso convívio. O que se pode constatar através das fisionomias dela registradas em muitas fotografias.
Por exemplo, diversas vezes eu a vi perplexa, mantendo o semblante imóvel, sem franzir a testa, como se ela se ausentasse da própria face. Esta permanecia impassível, e o olhar posto num ponto indefinido no ar, enquanto sua alma considerava suas preocupações. Em certos momentos ela balanceava a mão, de maneira discreta.
Percebia-se, então, como no espírito de mamãe estavam presentes os princípios, a gravidade, a imobilidade e a perplexidade, perguntando-se ela, a cada instante, como agir e como conduzir de modo acertado o curso das coisas. Conservando sempre o equilíbrio entre a calma e a apreensão: “Pode ser que algo não corra como espero. Não desejo o resultado desfavorável de nenhum modo, exceto se for inevitável. Vejamos a situação com serenidade, sem aflições desnecessárias. Se não der certo, Deus é Pai, e Nossa Senhora é minha Mãe; permitirão o melhor para mim.”
A meu ver, essa calma dentro da apreensão constitui um belo estado de espírito que eu pude observar em Dona Lucilia, assim como outros que se compunham na alma dela, à maneira de ogivas.
Dificuldade do homem moderno em obedecer
Nesse sentido, chama particularmente a atenção em certas fisionomias de mamãe a conjunção entre a amenidade, a afabilidade e a intransigência nos princípios que a norteiam. E essa harmonia nos causa especial comprazimento. Por quê?
Talvez a maior dificuldade existente no homem concebido no pecado original venha a ser que, em determinado momento, pronuncia-se nele um pendor oposto ao dever. E essa inclinação em geral é para o agradável, pois ninguém se sente atraído para o dissabor. Assim, quando o pendor se anuncia, apresenta-se com o aspecto de uma atração deleitosa, não raro enfática, acompanhada de uma espécie de cegueira por onde a pessoa não discerne claramente o mal encerrado naquilo que a seduz.
Ora, posto nesse estado de atração, não há nada que o homem mais deteste do que ouvir a repreensão, baseada na Lei de Deus. Ele não quer ouvir falar em virtude, em obediência aos Mandamentos. Não quer, e não os pratica, pois a virtude só é verdadeiramente virtude quando a pessoa age por persuasão, convicta do que não deve fazer. De tal maneira que esteja vincado no seu espírito essa resolução: “Ainda que eu não veja porquê, sendo uma disposição da autoridade competente, não posso transgredir a Lei de Deus; devo obedecê-la. Ele tem o direito de mandar em mim, e agirei de modo acertado se tiver gosto e alegria em acatar suas disposições, ainda que não as entenda.”
Eis um elemento de virtude indispensável, sem o qual não há virtude autêntica. E é o que vai desaparecendo do espírito do homem moderno.
Cumprindo seu dever com a Lei de Deus
Donde o comprazimento em notar na alma de Dona Lucilia essa convicção de princípios, essa forma de firme obediência aos preceitos divinos. Ao lado da doçura acolhedora, a certeza: “Há uma lei à qual estou sujeita; quero obedecê-la e quero que seja obedecida pelos outros. Portanto, cumprirei esta lei e só terei a plenitude de minha concórdia para quem igualmente a cumprir. Eu tenho o direito de fazer conhecer essa Lei, e um dever especial de simbolizá-la. Se não gostarem...”
Mas, percebe-se que ela tinha imenso desejo de que os outros gostassem, a fim de mais seguramente glorificar a Deus e fazer bem ao próximo. Um imenso desejo!
Seria, pois, um equívoco interpretar a fisionomia de mamãe em certas fotografias, tão amena, tão atraente, tão afável, assim: “Façam o que quiserem...” De modo algum. A afabilidade não se confunde com o relaxamento nos princípios. A firmeza nestes se conjuga com aquela e resulta num equilíbrio de alma que eu não hesito em chamar de católico.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência em 23/3/1982


sábado, 26 de outubro de 2013

Esmero no escolher presentes para os filhos

Dona Lucilia cuidava dos assuntos de casa, conferindo-lhes aquela sua nota característica de bondade e delicadeza de alma.
Por exemplo, quando preparava os presentes de Natal para os dois filhos, em geral brinquedos comprados nas melhores lojas do gênero então existentes em São Paulo. Até atingirmos certa idade, mamãe costumava pedir à nossa governanta, Fräulein Mathilde, que nos levasse a essas lojas e nos fizesse escolher os nossos brinquedos favoritos, dizendo-nos em seguida: “Agora rezem a São Nicolau, e peçam a ele que lhes traga esses presentes”.
Claro, crianças que éramos, acreditávamos naquela afetuosa combinação, e nos dirigíamos à loja de brinquedos contentes e ansiosos, esperando que São Nicolau nos fosse favorável. No dia de Natal, nossa alegria era completa ao vermos que tínhamos sido atendidos . . .
Mas, além desses presentes, mamãe se comprazia em confeccionar, ela mesma, outros brinquedos para nós, especialmente para minha irmã, pelo fato de ser mais fácil elaborar algo que agrade a uma menina. Lembro-me, por exemplo, de vê-la trabalhar num enfeite para abajur que era uma espécie de guirlanda formada por figuras femininas de mãos dadas, como se fossem várias meninas dançando ao som de uma música em torno, digamos, de um chafariz.
Essas silhuetas eram inspiradas em gravuras que mamãe colecionara de revistas brasileiras ou de figurinos franceses. Depois de as recortar e colar, ela ainda as pintava com purpurina, dando relevos dourados e outros adornos. Por fim, decorava o abajur e dava de presente à filha. Aquilo lhe tomara tempo e empenho, às vezes até altas horas da noite, mas era de admirar a perfeição e o cuidado com que mamãe se entregava à tarefa . E, a meu ver, o melhor dessa perfeição estava no fato de que, com o passar do tempo, as figuras perdiam aderência no abajur, se descolavam, caíam, e o objeto tornava-se feio. Dona Lucilia então se desfazia de tudo: “Acabou-se, não tem mais beleza, e a perfeição agora consiste em pensar noutra coisa. Isso fica para o passado. Pensemos no futuro”.
Sempre o melhor possível
Quer dizer, desde o mais delicado e mais carinhoso, até o mais firme e mais decidido, mamãe procurava fazer tudo do melhor modo que lhe fosse possível . Outro exemplo é a maneira como ela se dispunha a animar a vida de família. Vivíamos em casa de minha avó, mãe dela e matriarca dos Ribeiro dos Santos, numa dependência especialmente reservada para nós. Contudo, em se tratando de uma casa muito grande, era natural que mamãe se dedicasse a ajudar vovó nos cuidados domésticos, supervisionando os criados, a manutenção da despensa, verificando as contas e coisas do gênero.
Além disso, com o auxílio da Fräulein, ela costurava e fazia certas peças de roupa para nós, não por se sentir obrigada, mas porque gostava e desejava, por afeto, que usássemos algo confeccionado por ela. E com razão: uma coisa é o filho usar uma gravata comprada na loja, outra é envergar aquela cortada com carinho por sua mãe. E tudo levado a cabo com tal capricho que pensávamos: “Não era possível fazer, nesse caso, nada melhor do que ela fez”.
Sejamos perfeitos como Deus é perfeito
Esse anelo de perfeição era tão característico de mamãe que eu, acostumado a pôr-lhe apelidos — sempre respeitosos e afetuosíssimos —, durante algum tempo a chamei de Lady Perfection, isto é, Senhora, Madame ou Dona Perfeição . E quando eu me referia a ela por essas alcunhas carinhosas, ela demonstrava grande contentamento . Diante do quê, meu pai, homem de muito bom gênio, olhava para ela e dizia, arremedando o sotaque português:
Não te derretas . . .
Queria observar, com esse gracejo, que ela por pouco não se desmanchava de satisfação com os meus agrados. Mamãe lhe respondia com uma fisionomia séria, eu dizia outras afabilidades para ela, e nesse trato ameno terminavam nossos encontros.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência em 10/9/1994

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Inocência e maturidade

Dona Lucilia sabia, como poucos, entreter uma criança. Formada segundo padrões dos antigos tempos, ela conhecia o meio de preservar a candura na alma dos pequenos, não porém mantendo-os na infantilidade, mas educando-os numa inocência amadurecedora.
A vida dos adultos apresentada com elevação de vistas
Como ela procedia?
Falava às crianças sobre a maneira de os adultos conduzirem sua existência, suas inclinações, as lutas, os dramas que enfrentavam, etc., apresentando tudo com uma tão alta elevação de horizontes, com tanto ideal e tanta seriedade, que incutia no espírito da criança os necessários elementos para que ela maturasse.
Eu mesmo, filho dela, sentia bem como esse modo de proceder era o que deveria ser adotado, e desfrutava um entretenimento único nos fatos e histórias descritos por mamãe, porque tudo — até os contos de fada que nos narrava — era orientado na direção do nosso amadurecimento. Acontecia-me de vez ou outra escapar dos brinquedos com minha irmã e meus primos e ir procurá-la pela casa, a fim de pedir que me desfiasse um de seus contos. Ela ficava muito comprazida com minha solicitação, e eu, super-comprazido com seu acolhimento.
Cumpre dizer que essa forma de nos educar me preparou para o choque inevitável que um menino, saído de seu ambiente familiar — sobretudo se católico e semeado de valores morais como era o meu —, teria com o mundo. Eu caminhava para esse confronto com os olhos postos naqueles ideais que mamãe soubera nutrir em minha alma, e para os quais eu deveria tender.
Uma inocência unida à seriedade
É preciso dizer, também, que a seriedade fazia parte dessa inocência, ao mesmo tempo manifestada e amparada por mamãe. Essa atitude decorria de uma escola de alma que ensinava como prolongar a inocência dentro da maturidade, fazendo-nos compreender como a inocência não é apenas um estado de espírito de uma criança, mas um programa de vida que, em última análise, leva o homem a cumprir o primeiro mandamento da Lei de Deus.
Fantasias de Carnaval que estimulavam a inocência
É interessante notar que os dias de Carnaval ofereciam a mamãe uma oportunidade especial de estimular em nós a inocência. Todas as crianças da família se fantasiavam, vestidas pelos pais. E eu me deixava trajar como Dª Lucilia quisesse, pois a vontade dela era indiscutível para mim. Agora, um detalhe: as fantasias que ela arranjava sempre tendiam ao sério, ao contrário de outras que exploravam o burlesco, impelindo a criança a tomar atitudes descompostas e apalhaçadas.
Lembro-me de certo ano em que ela, nas suas delicadas concepções, planejou para mim uma fantasia de marajá. Ignorando as características do personagem que eu iria adotar, logo quis saber do que se tratava, e mamãe então me descreveu as belezas da Índia, com seus lindos palácios, suas riquezas e mistérios.
Você, portanto, vai se fantasiar de marajá! — disse-me ela, num tom que era um convite longínquo para a criança encarnar e viver o papel de soberano hindu por alguns dias.
Recordo que minha fantasia comportava um turbante feito de várias sedas, ornado de uma bonita aigrette que acompanhava os meneios da cabeça e me dava a impressão de uma espécie de sismógrafo muito nobre da alma humana. Além disso, era presa ao turbante por uma grande pedra “preciosa”, e esse pormenor de uma “jóia” incrustada na testa, da qual se desprendia uma elegante pluma, parecia mais ou menos a profundidade do pensamento da qual se destacava uma construção alígera...
O resto da roupa era igualmente de seda, guarnecida de joias falsas, anéis, colares, etc. Os sapatos, com as pontas voltadas para cima e revestidos de cetim lilás, pareceramme particularmente graciosos, pois achei muito feliz a ideia de calçados que se erguiam da vulgaridade do chão, como se o seu usuário dissesse: “Eu toco no solo, mas o melhor de mim mesmo se faz alheio à poeira. Por isso viro a ponta para cima.” Assim como com as fantasias de outros Carnavais, essa do marajá era preparada no clima criado por Dª Lucilia, falando-me com seriedade acerca do personagem que eu iria representar, e imaginando uma vestimenta que, conforme os padrões e as posses dela, deveria ficar seriamente bonita. Quer dizer, com inocência e seriedade, ela tinha empenho em que eu me apresentasse bem.
(Plinio Correa de Oliveira - Adaptado e Extraído de conferência em 12/6/1982)

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Bondade, suavidade e indulgência

Pelo afeto com que Dona Lucilia tratava Dr. Plinio desde o berço, ele conheceu a bondade de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus.
Nossa Senhora do bom Conselho de Genazzano
Durante as reflexões que, por ocasião de minha doença1, fiz sobre Nossa Senhora de Genazzano, me chamou muito a atenção a inteira intimidade do Menino Jesus com Maria Santíssima. Ele até passa a mão por trás do pescoço d’Ela.
Respeito, admiração, veneração e ternura
E me lembrava da intimidade que eu tinha com a minha querida e saudosa mãe, uma intimidade tão cheia de respeito, de admiração, de veneração e de ternura, mas uma verdadeira intimidade. Ela sabia ser pequena, afável, meiga ainda quando eu era um menino que dependia completamente dela.
Por isso, desde os meus primeiros dias, eu a chamava de “mãezinha”; não sabendo falar bem, eu dizia “manguinha”, mas já era a ideia do que havia nela de miúdo, de pequeno, de proporcionado a mim, de exorável por mim, de compassivo para comigo. Era a ideia que brotava em mim de toda a mansidão e bondade dela. A bondade de Dona Lucilia foi para mim o modo pelo qual eu conheci a bondade de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus.
Do que minha mãe me legou, as duas coisas mais preciosas que eu conheço na ordem moral, não na ordem religiosa, foram exatamente, de um lado, a bondade e, de outro lado, a severidade sábia.
Mamãe era tão bondosa que eu nem saberia dizer! Mesmo na hora de perdoar as coisas em que eu andava mal, ela manifestava uma indulgência, uma suavidade, e nunca uma reclamação porque algo a tivesse atingido. Portanto, jamais entrava reivindicação de um direito dela.
Os pitos de Dona Lucilia
Por possuir a cultura de uma senhora de antigamente, mamãe nem saberia bem explicitar um princípio, mas tinha os princípios em seu espírito.
Assim, nunca o pito dela era motivado por uma irritação pessoal, mas por um princípio ofendido, inclusive o da autoridade materna, e sempre com tanta bondade, tanto perdão, tanta paciência no que dizia respeito a ela. O que, em menino, eu fizesse de pior, ou outras pessoas faziam de horrível para mamãe — e que eu presenciava —, enquanto coisa ofensiva para ela, Dona Lucilia engolia quietinha e não dizia uma palavra.
Como eu me lembro dos pitos dela! Que seriedade no olhar, que compenetração de que se tratava de fazer prevalecer um princípio! Que convicção de que, se não conformasse minha vida com aqueles princípios, para ela eu valeria muito menos! Mamãe via em mim mais o filho que devia amar os princípios, do que o filho que precisava querer bem a ela.
E quanta sabedoria no que ela dizia! Que voz grave! E ao mesmo tempo a bondade não estava ausente. A intransigência dela para comigo chegava a esse ponto; acho que já contei isso aqui, mas estou me expandindo um pouco.
De larvas que somos, Nossa Senhora nos transformará em crisálidas
Uma vez — foi o apogeu de minha vida colegial, mas nunca fui o primeiro de minha sala de aula — eu voltei da festa de distribuição de prêmios no Colégio São Luís, com quatro medalhas no peito; os meninos vinham na rua ostentando as medalhas, naqueles tempos ingênuos.
Lembro-me que eu vestia traje marinheiro; mamãe abriu a porta de casa e me agradou, foi uma alegria.
No ano seguinte regressei com três medalhas; ela abriu a porta, olhou e disse:
Só três?
Mas, intransigente. E acrescentou:
O que aconteceu para você decair?
Dizia isso misturado com tanto afeto, que posso afirmar ter sido uma preparação para eu compreender o que era a misericórdia de Nossa Senhora.
Muitos dos que estão aqui a conheceram — alguns até bem de perto — e poderão achar que há exagero no que eu digo, mas não que existe uma invenção.
Não quero dizer que as mães dos presentes neste auditório não lhes tenham ensinado isso; também não desejo afirmar que eu tenha aprendido inteiramente o que ela me ensinou. Falo isso para exemplificar um pouco o que estou pensando.
E não sinto que nossa devoção à Santíssima Virgem seja inteiramente assim. Neste sentido, nós somos ainda como larvas que se vão arrastando pelo chão até o momento em que Maria Santíssima nos transforme em crisálidas.  
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferências de 6/5/1968 e 18/6/1968
1) Diabetes, cuja crise durou de dezembro 1967 a maio de 1968.