sábado, 28 de junho de 2014

Um comentário perfeito

O senso psicológico de Dª Lucilia crescera com os anos, tornando-se singularmente penetrante ao aproximar-se do limiar da eternidade. Ela aplicava esse admirável senso com a mesma calma com que praticava todas as ações, tão logo se lhe apresentavam pessoas, figuras ou objetos. Olhava-os atentamente, nada indicando em sua fisionomia que estivesse fazendo grande esforço, e depois de uma certa reflexão, emitia seu juízo, invariavelmente sábio, ponderado e justo.
Numa ocasião, ao lhe serem mostradas fotografias de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, Dr. Plinio aproveitou para perguntar que impressão esta lhe causava. Depois de fitar detidamente os belos traços da Virgem de Fátima, respondeu:
— Muito aflita, muito grave, muito séria... mas muito maternal...
Os que ali estavam ficaram pasmos por notarem o acerto do comentário de DªLucilia. O próprio Dr. Plinio não resistiu e afirmou, num volume de voz que ela não pudesse ouvir:
— É o comentário perfeito! A cena foi muito tocante. Sua análise, sem nada de doutoral ou de científico, parecia descer de muito alto, como ocorre com quem tem o espírito posto continuamente em certa paragem iluminada por Deus. Percebia-se que ela, de algum modo, estava em constante oração.
Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias


domingo, 22 de junho de 2014

Apesar de indisposta, um trato impregnado de bondade

Até onde lhe chegaram as forças, Dª Lucilia exerceu na perfeição as funções sociais de dona-de-casa. Pudemos observar isso de modo especial quando ela fazia suas orações vespertinas. Aquela sua preocupação, quando notava ter sido o telefone atendido por vozes não familiares, em saber de sua empregada quem estaria esperando seu filho, repetia-se incansavelmente.
— Mirene! Quem está aí? — perguntava, já inteiramente disposta a receber o inesperado visitante.
Um belo fato relacionado com esse seu exímio modo de ser, foi presenciado por certo jovem, que até hoje dá testemunho a esse respeito, e é prova da elevada virtude dessa insigne dama paulista:
“Dona Lucilia me fez entrar na sala de jantar, assim que terminou a piedosa recitação do Rosário, e depois de dar-me as explicações costumeiras do porquê da demora de Dr. Plinio em me atender, fez-me sentar para tomar o chá da tarde em sua companhia.”
Quase três horas de conversa se passaram como se fossem minutos. Vinte e sete anos depois, esse jovem ainda se lembrava com emoção da extrema gentileza e do afeto envolvente de Dª Lucilia para com ele na ocasião: “O tempo inteiro ela procurou me entreter, discorrendo sobre os temas que mais me agradavam, sempre num clima de serenidade e benquerença. Recordo-me ter saído tão alegre e feliz daquela conversa que me parecia ter estado mais com um anjo do que propriamente com uma criatura humana. Recebi uma tal comunicação de bem-estar, que cheguei a pensar ser Dª Lucilia uma senhora que nunca sofrera o menor incômodo na vida, pois em nenhum momento deixou transparecer uma só fímbria de enfado ou de cansaço, disposta a fazer bem à minha alma, até os limites permitidos pelo relógio”.
E continuava sua narração, descrevendo os jogos de fisionomia de Dª Lucilia, os pequenos e elegantes gestos, a voz, o olhar, as mãos.
Naquele mesmo dia, após essa conversa, Dr. Plinio o chamou a seu escritório a fim de providenciar uma ligação telefônica para o médico de Dª Lucilia. Eram 21h 30min de um sábado.
O jovem ficou abismado ao ouvir Dr. Plinio dizer ao médico que Dª Lucilia passara o dia todo muito indisposta, e com tal mal-estar que isto certamente a impediria de conciliar o sono. Após relatar ao clínico todos os sintomas, em pormenor, Dr. Plinio pediu a seu auxiliar que anotasse o nome da injeção receitada. Tendo o referido jovem um certo conhecimento do remédio em questão, deu-se conta de qual deveria ser o real estado físico de Dª Lucilia, que com tanta normalidade o entretivera por tão longo tempo.
“Em Dª Lucilia — recorda ele — a bondade era uma segunda natureza. Tornava-se ainda mais patente para mim, por este fato, que ela passara a vida fazendo bem aos outros.”
Não havendo quem fosse comprar a injeção, o mesmo jovem se ofereceu para fazê-lo. Depois, devido à ausência do enfermeiro de plantão, foi ele próprio convidado por Dr. Plinio a aplicá-la em Dª Lucilia, uma vez que tinha prática nisso. Ocorreu então outro episódio que marcou a história desse feliz jovem. Ao ser introduzido no quarto de Dª Lucilia, tomou-se de encanto e de emoção ao vê-la tão dignamente recostada no leito.
— Dona Lucilia, estou aqui para lhe aplicar uma injeção receitada por seu médico — disse ao cumprimentá-la.
Segundo narra essa testemunha, “era extraordinária a instintiva preocupação de Dª Lucilia com os outros, ainda que estivesse se sentindo indisposta, como naquela circunstância. Além do momentâneo distúrbio pelo qual passava, ela estava a bem poucos meses da morte e, não obstante, sua atenção se voltava para os demais.
“Naquele ambiente de compostura e recato, à luz de um abat-jour, sua primeira atitude foi olhar-me atentamente e dizer:
“— Ora, mas justamente nesta noite de sábado, eu estou dando esta amolação ao senhor! Perdão por estar atrapalhando seu programa.
“Sem demonstrar o menor desagrado ao lhe ser aplicada a injeção, que provocou certa dor, Dª Lucilia disse logo a seguir:
“— Entristeceu-me muito ter causado esse transtorno ao programa do senhor.
“— Em nada, Dª Lucilia. Pelo contrário, eu é que me entristeço por vê-la sofrer com essa injeção.
“— Ora essa. Então eu lhe agradeço muito — concluiu Dª Lucilia, com sua insuperável doçura de trato...”

Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias

domingo, 15 de junho de 2014

Parecia que os biscoitos provinham do Paraíso...

Continuação do post anterior
Antes mesmo de a empregada pôr a mesa, Dª Lucilia convidava o interlocutor a se acomodar:
— Por favor, sente-se onde for mais de seu agrado.
Em geral, depois de explicar por que seu filho demoraria em atender, ela prosseguia a conversa relatando a origem dos excelentes biscoitos que desejava oferecer ao visitante.
— O senhor sabe? Todas as quintas-feiras meu sobrinho vai a Campinas. E, certa vez, retornando de lá, teve a gentileza de me trazer uns biscoitos. Ao agradecer, eu disse que os tinha achado muito saborosos e que ficara contente com o gesto dele. Depois disso, ele sempre me traz uma quantidade suficiente para a semana inteira. O senhor vai gostar muito deles porque são realmente deliciosos.
A maneira como contava este pequeno episódio da vida doméstica envolvia o interlocutor numa atmosfera de maravilhoso, por onde se tinha a impressão de que a farinha do biscoito viera do Paraíso e fora moída pelos Anjos... Era de notar o desapego com que ela oferecia os biscoitos: sem egoísmos nem receio de que pudessem vir a faltar-lhe.
Conduzia a conversa com uma singela e encantadora gentileza. Do cimo de seus 91 anos, não procurava falar de si mesma, de suas dificuldades passadas ou presentes. Havia um certo momento em que ela fazia uma sugestiva pausa, muito nobre, muito distinta, dando oportunidade à pessoa que diante dela se encontrava de levantar algum tema, pois estava sempre disposta a conversar a respeito do que o outro quisesse. Era uma excelente ocasião para se apreciar o modo harmonioso com que ela abordava os assuntos. Fazia-o de maneira a atender, acima de tudo, aos legítimos anseios do visitante.
Naquelas ditosas e inesquecíveis conversas com Dª Lucilia, era freqüente o visitante perguntar-lhe algo a respeito de seus filhos, pelo extremo gosto de ouvi-la discorrer sobre acontecimentos da vida familiar. Tema, aliás, não lhe fosse proposto, ela jamais tomaria a iniciativa de sequer insinuar.
Saudosos meses aqueles, durante os quais foi possível conhecer um bom número de fatos da longa existência de Dª Lucilia, narrados diretamente por ela. O que mais atraía o interlocutor eram os detalhes da infância dos filhos dela, pois permitiam aquilatar o grande esmero que ela pusera em os educar e formar.

Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João Clá Dias

domingo, 8 de junho de 2014

Senso de responsabilidade

Continuação do post anterior
Logo ao iniciar-se a convalescença de Dr. Plinio, um de seus jovens discípulos teve a felicidade de ser escolhido para cuidar do plantão estabelecido no “1º Andar”. Um dia, acabara ele de atender a uma chamada telefônica, quando ouviu, vindo da sala de jantar, o som de uma sineta.
Pouco depois lhe chegavam os ecos de um pequeno diálogo entre Dª Lucilia e a empregada:
— Pois não, a senhora me chamou?
— Quem telefonou?
— Não sei, Dª Lucilia. Foi um senhor que atendeu.
— Quem é esse senhor?
— Não sei. Parece que ele veio visitar o Dr. Plinio.
— Vá preparando um chá para esse senhor e para mim, pois vou convidá-lo a estar em minha companhia até o Dr. Plinio despertar.
Tendo-se retirado a empregada, Dª Lucilia continuou suas orações. Era compreensível que, sendo dona da casa e dotada de profundo senso de responsabilidade, se sentisse na obrigação de fazer sala aos que visitavam seu filho.
Algum tempo depois, voltou a soar a sineta e a empregada, ao assomar à porta, ouviu de Dª Lucilia:
— Você quer dizer a esse senhor que faça o favor de entrar?
Logo que ele se apresentou, Dª Lucilia o cumprimentou de maneira acolhedora, e assim introduziu a conversa:
— O senhor certamente está esperando o Plinio, não é? Eu queria dizer ao senhor o seguinte: ele tem uns amigos que o estimam muito e, às vezes, convidam-no para passarem juntos alguns dias numa fazenda, perto de Amparo. E o senhor sabe? Estando ali, o Plinio andava por um terreno irregular e muito pedregoso, quando torceu o pé. Ele foi socorrido pelos amigos, mas os médicos que depois o examinaram recomendaram-lhe muito descanso...
Após essa explicação, Dª Lucilia, com sua arte de colocar o visitante inteiramente à vontade, prosseguiu:
— Por esse motivo, o Plinio vai demorar ainda um pouco para atendê-lo, de maneira que o senhor vai ter de esperar mais do que imaginava... Mas o senhor, enquanto o aguarda, vai me dar o prazer de sua companhia. O senhor aceitaria tomar chá?
— Por favor, a senhora não se deve preocupar!
— Talvez o senhor não goste de chá e prefira café com leite, ou alguma outra coisa...
Não foi possível ao jovem recusar. Dona Lucilia tocou então a sineta e ordenou à empregada que trouxesse chá e biscoitos.

Esta cena — evocativa da antiga douceur de vivre — doravante irá repetir-se todos os dias. Dona Lucilia empregará, de cada vez, aquele seu invariável e delicado modo de acolher.

domingo, 1 de junho de 2014

Trato ameno e todo feito de bondade

Continuação do post anterior
Quem teve a felicidade de frequentar aquele apartamento, convivendo com Dª Lucilia nos últimos meses de sua existência terrena, bem pôde avaliar o alto grau de consideração, gentileza e estima inerentes a seu nobre trato, mesmo em suas mais simples expressões. De índole respeitosa e afetiva, era ela mestra na difícil arte de se dirigir aos outros com afável dignidade, de modo a deixá-los sempre à vontade.
Por um muito apreciável dom de causerie, que ela herdara e requintara, ao qual se acrescia um suave savoir-faire1, se tornava muito agradável àqueles que a ouviam. Entretanto, por trás destas excelentes qualidades estava uma virtude mais alta: a disposição de ouvir, com incansável paciência, tudo o que os outros lhe quisessem expor, procurando sempre os lados bons dos fatos narrados e, mais especialmente, os de seus interlocutores.
Por um sobrenatural senso de compaixão, causava-lhe profundo sofrimento ver alguém entristecido ou magoado, ainda que se tratasse de um desconhecido. E era admirável o esmero com que logo procurava aplicar o lenitivo da palavra justa, da fórmula adequada, do bom conselho para a difícil situação, do afago para a dor, da esmola para a necessidade. Para Dª Lucilia, a felicidade do próximo era a dela... Sua alma se movia pelo desejo de causar contentamento a cada um, e daí seu grande pesar quando não podia fazê-lo. Era o afeto de um coração total e essencialmente católico. Sua alegria de alma consistia em querer bem aos outros por amor de Deus, e ser por eles querida. Porém, quando sua benquerença não era correspondida, jamais cedia ao menor sentimento de rancor, pois não visava qualquer benefício pessoal ou vantagem própria nesse relacionamento.

Destas belas características de trato, são testemunhas várias pessoas que estiveram com Dª Lucilia naquelas tardes de seus últimos cinco meses de vida. Foram elas objeto de uma afabilidade que vinha invariavelmente acompanhada de simpatia benévola e obsequiosa. A todos encantava sua propensão contínua de agradar a seu interlocutor e fazer-lhe bem de todos os modos. 
Novos hábitos rompem a antiga rotina da casa de Dª Lucilia
Habituada de há muito a um isolamento diário e prolongado, em que nada vinha romper sua rotina, Dª Lucilia passou, de repente, a ouvir em sua casa sons, vozes, passos que não lhe eram familiares. Seu telefone, antes mais bem silencioso, começou a soar repetidas vezes ao longo do dia. Igualmente a campainha da porta de entrada daí em diante se fez ouvir com maior freqüência...
As circunstâncias da longa convalescença de Dr. Plinio tornaram indispensável estabelecer um plantão que, com certa diplomacia, cuidasse dos eventuais problemas que fossem surgindo. Era um verdadeiro sistema de relações públicas, o que Dª Lucilia em sua avançada idade jamais poderia imaginar. Por isso, sentiu-se na obrigação de se interessar diretamente pelo que se passava.
— Quem tocou a campainha? — perguntava à empregada.
— É um amigo de Dr. Plinio.
— Faça-o entrar. Aquele invariável “faça-o entrar” se evolava de seus lábios tão impregnado de serenidade e gravidade, doçura e dignidade, que o visitante se sentia irresistivelmente atraído.
Em outras ocasiões, ao ser avisada por Mirene, que então a servia, de que mais um senhor acabava de chegar a fim de visitar seu filho, Dª Lucilia dizia:
— Você lhe explicou que Dr. Plinio está repousando?
— Não, porque outra pessoa o atendeu à porta, e ele entrou diretamente no escritório. Parece que Dr. Plinio já o estava esperando.
— Mas você não sabe o nome dele?
— Não, mas já o vi outras vezes.
— Seria bom você ir preparando um lanche para lhe servir.
— Acho que a visita é rápida — dizia a empregada, visivelmente desejosa de escapar das obrigações impostas pelas antigas maneiras vividas por Dª Lucilia.
As épocas haviam mudado, e com elas as normas da boa acolhida. Porém, não seria a suposição de uma simples servente que, de maneira fácil, convenceria Dª Lucilia, demovendo-a de seus tradicionais e entranhados hábitos.