sábado, 25 de agosto de 2012

Senhora afável e mãe solícita

Dª Lucilia sabia aliar de forma admirável, no relacionamento com qualquer pessoa, o trato afável a uma alta noção de sua própria dignidade. Não com intenção de domínio, mas por se respeitar a si própria e esperar o reconhecimento dessa respeitabilidade da parte dos outros. Se isso faltasse, ela seria capaz de encerrar uma amizade. Ela mesma tratava as pessoas com muita boa vontade, atribuindo-lhes tudo o que merecessem.
O convívio com a governanta dos filhos
Não era outra sua conduta com Fräulein Mathilde, a preceptora alemã de seus filhos. Conversavam com muita cortesia, cada uma em sua posição: Dª Lucilia, a senhora da casa, verdadeira dama e aristocrata; Fräulein Mathilde, com toda a sua instrução de excelente governanta, viajada, conhecedora de grande variedade de ambientes.
Seria normal que houvesse dificuldades temperamentais entre Dª Lucilia, brasileira muito afrancesada, e a governanta, mas a benevolência e afabilidade de uma e a discrição e respeito da outra tornavam o convívio entre ambas muito cordial. Dª Lucilia, alma sempre muito justa, nunca deixou de elogiar Fräulein Mathilde como uma governanta exímia.
Essa cordialidade e essa delicadeza de trato tornaram-se ainda mais salientes por ocasião da Primeira Grande Guerra, na qual o Brasil entraria do lado da “Tríplice Entente” (constituída pela França, Grã-Bretanha e Rússia) contra a Alemanha e seus aliados. Este fato poderia ter criado difíceis condições à permanência da governanta bávara na residência dos Ribeiro dos Santos, interrompendo assim o processo educativo das crianças. Felizmente o bom senso, a amenidade brasileira e, sobretudo, a proteção de Dª Lucilia não permitiram que tal acontecesse.
Em agosto de 1914 iniciou-se o conflito armado. Nele se defrontavam em luta de morte as dinastias mais veneráveis, acabando por sucumbir quase todas nas convulsões e tragédias que elas mesmas inabilmente haviam provocado. Plinio, muito precoce, abria então os olhos para o mundo, e seguia atentamente, pelas conversas dos adultos, ou mais tarde através da leitura furtiva de alguns jornais, esse colossal e derradeiro entrechoque de monarquias e potentados.
Fräulein Mathilde com Plinio e Rosée
Fräulein Mathilde desejava naturalmente a vitória dos Impérios Centrais, mas, muito discreta, nunca procurava entrar nas conversas da família sobre o assunto. Nesse período, quando acontecia estarem todos reunidos — como, habitualmente, nos jantares de quinta-feira — criticavam muito o Kaiser, alvo preferido das cóleras familiares, mas também o Kronprinz (Príncipe Herdeiro alemão), o Marechal Hindenburg, o General Ludendorff e outros. Dª Lucilia tinha conseguido, contudo, com muita habilidade, que nunca falassem contra a Alemanha quando estivesse à mesa Fräulein Mathilde. Fizera notar aos demais como ela estava se revelando excelente formadora. Além disso, era a única pessoa, das que moravam em casa, nascida entre as potências adversárias, e portanto não falar mal destas era questão de caridade.
Assim, foi a governanta tratada com toda a cordura. Seria explicável que mandassem servir-lhe as refeições noutra sala de jantar, dizendo-lhe: “Temos uma opinião diferente da sua, compreendemos não ser o caso de falar sobre a Alemanha na sua presença...”. Não aconteceu. Ela entendia a situação e, por isso, tomava a sobremesa depressa e saía. Percebia-se que tinha o intuito de deixar aos outros a liberdade de se exprimirem como desejassem.
Quando o Kaiser caiu, Dª Lucilia tentou consolá-la. Não foi tarefa fácil. Fräulein Mathilde nunca tentou impor suas opiniões políticas a ninguém, mas conservava em sua cabeceira uma fotografia de Guilherme II, estampada sobre louça, e, preso nesta por um grampo, um vasinho para flores. Nunca faltou uma flor para o Kaiser, mesmo depois de sua renúncia...
Educando os filhos para a vida social
Embora Dª Lucilia deixasse Rosée e Plinio aos cuidados da Fräulein Mathilde, acompanhava de perto a educação deles. Conversava muito com a governanta e, não obstante sua precária saúde e todo seu desvelo pela mãe, já idosa, tinha intenso contato com os filhos. Se um deles a procurasse para qualquer fim, fosse para lhe pedir um conselho ou para que contasse alguma história, sempre encontrava tempo.
De modo todo especial, empenhava-se ela em preparar os pequenos para a vida na sociedade.
Era costume naquele tempo as senhoras reservarem as tardes de certos dias da semana para visitas. Obedeciam estas sempre a um pequeno cerimonial, religiosamente respeitado até que a informalidade popularesca, trazida pelo cinema de Hollywood, devastasse largamente as boas maneiras.
Tradicional dama paulista, Dª Lucilia sabia temperar, na perfeição, a indispensável rigidez das regras de cortesia com a suavidade de uma conversa agradável e um trato impregnado de afeto. Nem sempre era fácil tarefa, pois as relações sociais impunham por vezes receber pessoas com as quais se podia simpatizar ora mais, ora menos, sem externar qualquer desagrado ou impaciência.
Nessa escola eram educadas as crianças pela Fräulein Mathilde, de acordo com os padrões da cortesia européia, sob o benévolo olhar de Dª Lucilia.
*
A campainha toca. O copeiro vai até a entrada e verifica tratar-se de duas senhoras que chegam para uma visita à casa dos Ribeiro dos Santos. Abre-lhes a porta, recebe os cartões, coloca-os numa salva de prata e vai entregá-los a Dª Lucilia.
— Peça-lhes que aguardem um instante na sala de visitas menor, pois lá irei logo.
As amigas da família são conduzidas ao local indicado que, por ser mais íntimo, é próprio a receber pessoas muito próximas. Sentam-se e trocam umas palavras enquanto esperam. Após alguns minutos Dª Lucilia entra, cumprimenta-as com a cortesia e a amabilidade toda sua, e conduz a conversa de modo a comprazer às recém-chegadas. A certa altura, toca uma sineta e manda chamar a governanta. Quando esta chega, lhe diz:
— Fräulein Mathilde, por favor, traga Rosée e Plinio para cumprimentarem estas minhas amigas.
Era costume, antigamente, as crianças entrarem no salão para saudar as visitas, tendo antes trocado a roupa do dia-a-dia por uma de mais categoria. Assim, a governanta as procura e diz:
— Chegaram duas senhoras e vocês precisam vestir uma roupa especial.
Notícias como esta eram, não raras vezes, recebidas pelos pequenos com certo desagrado:
— Mas vamos ter de abandonar o brinquedo agora?!
Para elas, poucas obrigações eram tão aborrecidas quanto cumprimentar visitas, pois em todos os gestos e atitudes deviam respeitar certas regras com ar de perfeita naturalidade, e recapituladas por Fräulein Mathilde antes de entrarem na sala:
— Primeiro cumprimentem Dª Fulana, que é mais velha, e perguntem como ela tem passado; depois, a senhora mais moça.
Porém, chegada a hora de entrar, todas aquelas disposições, desagradáveis para qualquer criança, ficavam para trás e elas se viam alçadas à condição de adultos em miniatura, onde eram sustentadas pela presença reconfortante de Dª Lucilia. De dentro de suas diminutas vestimentas de gala, sentiam-se mais dignificadas e, aos poucos, tomavam gosto pelos aspectos finos e requintados da vida. Eram penetradas, no mais profundo do ser, pelos imponderáveis aristocráticos que as moldavam inteiramente.
Muito meticulosa nos trajes
Talvez nos seja difícil avaliar, hoje, a importância dada pelas pessoas daquele época ao modo de vestir.
Rosée e Plinio, filhos de Dª Lucilia
Sendo hierarquizada a sociedade, era normal  e até mesmo  obrigatório se apresentarem todos  condignamente, segundo sua categoria  social.
Sempre exímia em tudo, Dª Lucilia  a  esse  dever  se  amoldava  com amor,  tanto  no que dizia  respeito  a si como aos filhos.  Tinha  clara  noção de quanto esse procedimento contribuiria para criar, em torno de si, um ambiente  convidativo  à elevação de espírito e à rejeição da vulgaridade.
Ademais,  o age quod agis (“faze bem o que fazes”)  — a regra de todas as obras de Dª Lucilia — estava presente,   sem   aflição   mas   com suave e decidido  empenho,  em seus pensamentos, palavras  e atos. É sob este prisma que se entende seu cuidado com o bem-trajar  a fim de respeitar os reflexos  de Deus presentes na  dignidade humana,   pois  aquilo que  São  Paulo  afirma  do apóstolo, se aplica a todas as pessoas: “somos dados em espetáculo ao mundo, aos Anjos e aos homens” (I Cor. 4, 9).
“Eu assisti muitas vezes ao fim da toilette dela”, contava Dr. Plinio, al- guns anos após o falecimento de sua querida mãe. “Lembro-me de vê-la já vestida, sentada diante da penteadeira. Em certo momento, levantava- se e se arranjava um pouco. Colocava-se diante de um espelho maior e olhava detidamente, com muito pormenor, mas sem faceirice. Conquanto sua atenção estivesse próxima, mantinha as cogitações em altos patamares. Eu olhava para ela e pensava: Que perfeição!”
Naquele tempo em que os melhores trajes de senhora jamais se vendiam prontos, o bem-vestir constituía, a seu modo, uma arte que exigia não pouco apuro. Dª Lucilia, imaginativa e de apurado bom gosto, escolhia os tecidos e desenhava seus próprios vestidos, bem como os de Rosée, inspirando-se em modelos franceses. Depois chamava uma costureira para fazer as provas, o que não deixava de ser um pequeno acontecimento na rotina doméstica.
Já as roupas masculinas, como sempre, eram confeccionadas por alfaiates. Para muitos meninos, e entre eles Plinio, constituía um ligeiro suplício provar roupas novas. Pois, sendo então bastante meticulosos aqueles profissionais, o feitio irrequieto dos jovens com isso mal se acomodavam.
Na alimentação, mil delicadezas maternas
O especial zelo de Dª Lucilia se manifestava também na alimentação dos filhos. Achava ela, fiel às antigas e sábias concepções, ser a boa nutrição a base de uma vigorosa saúde.  Por isso, desdobrava-se em solicitudes e atenções para Rosée e Plinio terem à mesa substanciosas e atraentes iguarias.
Com todo o carinho, procurava saber quais os pratos mais apreciados por eles, empenhando-se em que as cozinheiras preparassem um menu inteiramente adaptado aos gostos deles. Dessa forma estimulava o apetite de ambos para que se alimentassem bem.
Salão de chá da Casa Mappin
Com frequência, levava as crianças a confeitarias e salões de chá, como o do Mappin ou o da Casa Alemã, onde o requinte se aliava à boa comida, e dos quais elas eram calorosas frequentadoras. Algumas vezes acompanhava-as também a Fräulein. Em seu desvelo materno, recorria até às velhas receitas caseiras trazidas de Pirassununga.
Na São Paulo de então, em que se misturavam ainda, pitorescamente, o bucolismo da vida campestre com o progresso crescente da cidade, era frequente ouvir-se, de manhãzinha, o bimbalhar dos sininhos de um rebanho de cabras, cujo leite, forte e saboroso, era vendido de porta em porta. Dª Lucilia mandava uma criada comprá-lo, e ela mesma o servia depois aos filhos, ainda na ca- ma, em belos copos de cristal, misturado com cognac francês e canela. Receita tão simples quanto antiga, que seu afeto não deixava de transformar em poderoso tonificante.
Em outras ocasiões, enquanto as crianças, sob o vigilante olhar da Fräulein Mathilde, entregavam-se à árdua tarefa dos estudos, Dª Lucilia lhes preparava deliciosos lanches para recompensá-los pelo esforço...
Visita a um grande estadista do Império
Assim como no tocante às boas maneiras, ao bem-vestir e à apropriada nutrição, Dª Lucilia esmerava-se igualmente em outros aspectos da formação de seus filhos. Pertencendo ela a preclaras estirpes — como também Dr. João Paulo, seu esposo —, sempre que se apresentasse uma oportunidade adequada, chamava a atenção deles para o dever de seguirem os exemplos de seus maiores, alguns dos quais se haviam destacado por relevantes serviços prestados ao País. Fazia-o da forma amena, tão de seu costume, contando-lhes inúmeras histórias de família, que constituíam o encanto das crianças e tornavam curtos os longos serões de então.
Conselheiro João Alfredo Correa de Oliveira
Um dos mais célebres entre esses expoentes era o Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira – tio de seu esposo – cujas qualidades de grande estadista da Monarquia o elevaram aos mais altos cargos do Estado.
Sendo o Conselheiro de idade avançada, e tendo-se apresentado a Dª Lucilia ocasião de ir com seus filhos ao Rio de Janeiro, onde ele residia, quis que não perdessem a oportunidade de estar com ele pessoalmente. Tal encontro — julgava ela — perduraria na lembrança das crianças pela vida afora, constituindo um estímulo para seguirem a trilha ilustre do tio-avô que haviam conhecido na infância.
A visita transcorreu com grande cordialidade, e causou profunda impressão na mente dos pequenos. Pouco depois, Plinio, por ocasião do 82º aniversário de seu tio-avô, enviou-lhe uma saudação por escrito. Em resposta, com a gentileza dos antigos tempos, o estadista escreveu num cartão estas palavras:
Rio, 15 de março de 1918
Querido Plinio,
Recebi e guardo como precioso brinde de anos as bem traçadas linhas de tua caligrafia e efusiva redação, exprimindo-me doce afeto que me tocou o coração de octogenário.
Muito bem! Faço votos para que dê muitos frutos a flor de esperanças que te manifestas. Fé e trabalho! Tens na família materna um grande modelo a imitar: o Dr. Gabriel Rodrigues dos Santos. O seu sangue é prometedor, e Deus abençoará o teu esforço para que a promessa vingue em feitos ilustres. Tio avô muito amigo
João Alfredo
Não foram vãos os anseios que, no entardecer da vida do ilustre Conselheiro, aquele menino suscitara...Encontros assim, revestidos das formalidades exigidas pela vida social de então — restos preciosos dos esplendores de outrora — eram muito freqüentes. Faziam parte da existência de todos os dias entre as pessoas de boa família, que o parentesco, os casamentos e os negócios acabavam por ligar entre si. E Dª Lucilia bem os sabia aproveitar, para enriquecer com eles a já esmerada formação de seus filhos.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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