quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Cuidados e desvelos maternais

Quiçá a fase crucial da vida de uma pessoa seja a adolescência. É a época em que lutam na alma tendências boas e más que, reprimidas ou cultivadas, exercerão influência até o fim da vida. É a hora em que a inocência corre perigo e, infelizmente, quase sempre naufraga. No 5º aniversário do falecimento do varão católico que foi Dr. Plinio — homem de profunda fé, de fortaleza inquebrantável e de pureza virginal — é bem o momento de lembrar o decisivo apoio e a vigilância de sua querida mãe naquela difícil fase da vida.
Como vimos em anteriores posts, Dª Lucilia se esmerava por dar a seus filhos, em casa, a melhor educação possível. Contudo, em 1919, tendo Plinio atingido a idade adequada para tal, viu-se ela na contingência de, não sem grande apreensão, ter de matriculá-lo numa escola.
Naturalmente deveria ser a melhor de São Paulo na ocasião, o Colégio São Luís, dos padres jesuítas. Era sob a orientação dos discípulos de Santo Inácio que o menino devia continuar seus estudos, mas isto não bastava para tranqüilizar seu maternal coração. Possuía ela inteira noção dos perigos que, já naquele tempo, podia acarretar o convívio entre estudantes.
Seu filho resistiria ou não, ao entrar em choque com um mundo em diversos aspectos oposto à preservação moral inerente à atmosfera do lar? Só o futuro o diria.
Um dia o próprio Plinio abordou o assunto com sua mãe. Seus primos, que já frequentavam aquele colégio, haviam-no convidado insistentemente a ir estudar também com eles. Um primo mais chegado, a fim de atraí-lo com mais facilidade, dissera que no pátio do recreio havia muitas cerejeiras, sendo um dos passatempos dos alunos comerem dessas saborosas frutas no intervalo das aulas.
o Colégio São Luís, dos jesuítas, então dirigido pelo
Padre Du Dréneuf (no destaque)
À tardezinha, quando Dr. João Paulo voltou do trabalho, Dª Lucilia tratou com ele do assunto. Ficou acertado que ele iria ao Colégio São Luís no dia seguinte falar com o reitor, Pe. du Dréneuf, para matricular o filho. Tudo se fez sem a menor dificuldade. O sacerdote, recebendo-o amavelmente em sua sala, expôs o sistema e o horário do estabelecimento, informou que material Plinio necessitaria levar, e em pouco tempo estava o assunto resolvido. Despediram-se com cortesia e voltou cada um aos seus afazeres. O jesuíta, satisfeito por receber um aluno a mais; Dr. João Paulo, aliviado por ter um problema a menos para solucionar.
No primeiro dia de colégio, após uma ou duas aulas, chegou a hora do recreio. Ao sair para o amplo pátio, Plinio procurou seus primos com o olhar, em meio àquela multidão de meninos correndo de um lado para o outro e gritando, pois eles lhe haviam prometido apresentá-lo aos demais colegas. E onde estariam as cobiçadas cerejeiras? Por fim um deles apareceu, ofegante, agitado:
— Plinio! — gritou.
— E as cerejeiras, onde estão? — perguntou o novo aluno, desejoso de, já naquele primeiro intervalo, deliciarse com seu manjar preferido.
— Vamos jogar futebol! — respondeu o primo.
Esse esporte, que para a época ainda fazia parte das inovações da modernidade, atraía a atenção e a participação dos alunos. Entretanto, que diferença dos serenos entretenimentos de casa!...
Sob o apreensivo olhar materno
Para Plinio começava a dura batalha da vida, com suas tragédias, desilusões e fracassos, pela qual todo filho de Adão irremediavelmente tem de passar. A primeira decepção foi a de não encontrar as sonhadas cerejeiras. Depois, ante seus olhos, dois mundos se desenvolviam lado a lado, porém em constante oposição: o dos padres que, voltados para o sagrado, por seu porte grave e seus trajes austeros, criavam em torno de si um ambiente que simbolizava a tradição e lembrava as verdades eternas; e o dos alunos, empolgados, naquele pós-guerra, pelas “modernidades” soezes de Hollywood, e atraídos pelos costumes simples e fáceis daí decorrentes.
Dª Lucilia discretamente observava as mínimas reações do filho, para ver se ele estava resistindo às más influências, ou se, de modo imperceptível, ia-se deixando levar por elas. Pelo modo de Plinio falar, gesticular, tratar os outros e, sobretudo, por aquele “sexto sentido” que só o desvelo materno dá, ela procurava discernir nele os eventuais sintomas de adaptação aos novos padrões.
Ao fim da tarde, ao se aproximar a hora de Plinio retornar da escola, Dª Lucilia ia ao terraço da casa e o aguardava. Queria vê-lo ao longe chegando, a fim de observar os matizes quiçá deixados no espírito e no modo de ser de seu filho, quando trazia em si os vestígios acumulados, de ambientes tão diversos quanto o colégio, a rua e a casa de família.
Em seguida entrava e, por uma janela, o via abrir e fechar com calma o pesado portão do jardim, ganhar ajuizadamente a escada que conduzia à moradia e tocar a campainha. Esperava-o numa sala, abraçava-o, beijava e dava-lhe a bênção. Tranquilizava-se, notando que seu filho continuava o mesmo, como no primeiro dia de aula.
Irredutibilidade e doçura


O jovem Plinio (o primeiro no fundo à esquerda) ao lado
de alguns de seus colegas no São Luís
Plinio deu só contentamento a Dª Lucilia durante o curso secundário. De sua parte, continuava ela a dispensar-lhe todos os extremos de carinho de que era capaz. Provara-o mil vezes em circunstâncias diversas, e seu filho tinha experiência disso a cada momento. Eis um pequeno exemplo:
Normalmente Plinio ia e voltava do colégio de bonde. Porém, quando chovia, Dª Lucilia mandava-lhe tomar um táxi, pois tinha receio de que, molhando-se, adoecesse. Plinio, que nunca deixava de seguir a recomendação materna, à saída do colégio já ia convidando alguns amigos para retornarem com ele no veículo.
Evidentemente, se por preguiça ele quisesse ficar mais tempo na cama na hora de levantar, Dª Lucilia não toleraria, pois no cumprimento do dever não permitia moleza. Mas a irredutibilidade dela tinha sempre como contrapeso a doçura, que se manifestava por sua atitude compassiva em favor de quem havia-se esforçado para se desincumbir de uma obrigação.
Deliciosos sanduíches
Outra manifestação dessa doçura estava no modo de Dª Lucilia, todos os dias, preparar e com todo o cuidado empacotar sanduíches para seu filho. O conteúdo ia variando agradavelmente a cada dia, constituindo afetuoso incentivo para ele enfrentar a aridez dos estudos ou o ardor das polêmicas. Ora vinham recheados de saborosas fatias de língua, ora de lombo de porco ou filé, queijos ou alface, sem nunca faltar a manteiga. Tais petiscos faziam a cobiça dos outros meninos...
Um dia, Plinio pediu a sua mãe que dali em diante preparasse sempre um pacote de sanduíches a mais, pois ficava mal para ele estar tomando lanche e não poder oferecer nada a um colega com quem estivesse conversando.
Dª Lucilia alegrou-se com a atitude de seu filho e, diante de tão bons sentimentos, prontamente o atendeu. Mal sabia ela o destino real do inocente sanduíche. Plinio utilizava-o sagazmente para atrair a amizade de certos companheiros mais corpulentos, que o protegessem contra as investidas de certos alunos de mau caráter, visto que sua compleição, ainda pouco robusta, não lhe permitiria aguentar um embate físico contra seus primeiros opositores ideológicos.
Sem o saber, Dª Lucilia prestou assim um valioso auxílio às pugnas iniciais de seu filho.
O Menino Jesus entre os doutores no templo
Apesar de em sua delicadeza não compreender certos métodos ou argumentos mais enérgicos utilizados por Plinio, Dª Lucilia de modo algum estava alheia à batalha que diariamente ele travava para se manter fiel aos princípios da Igreja Católica, Apostólica e Romana, ensinados por sua mãe ao longo dos anos.
Por certos comentários dele a respeito dos próprios colegas, por seu relacionamento com eles, bem como por outros pequenos detalhes, notava Dª Lucilia que Plinio necessitava sobretudo de auxílio do alto. Talvez por isso, após a Missa dominical na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, ela se detinha longamente a rezar diante de um belo conjunto de imagens de um altar lateral. Representam elas o encontro de Nossa Senhora com o Menino Jesus, em discussão no Templo com os Doutores da Lei.
Nunca seu filho lhe perguntou o motivo daquelas preces, nem ela alguma vez o revelou. Mas certamente rezava para que o Divino Infante, vencedor da soberba e incredulidade dos orgulhosos escribas, concedesse também àquele menino, ali a seus pés, a vitória nas polêmicas mantidas com seus colegas de colégio.
“Por que você há de ser tão ruinzinho assim?”
Embora Dª Lucilia tivesse perfeita noção de como o mundo ia piorando cada vez mais, e das dificuldades que em consequência seus filhos enfrentariam, nunca lhes permitia qualquer falta de objetividade no apreciar as pessoas.
Em certa ocasião, estando ela a conversar com Plinio, fez este um comentário depreciativo a respeito de um conhecido, carregando demais as tintas em certos defeitos da pessoa em questão. Dª Lucilia, sempre pronta a tomar a defesa dos outros, logo atalhou:
— Por que você há de ser tão ruinzinho assim, meu filho? Você não vê que não se deve ser desse modo? Tenha pena, afinal!...
Seu tom de voz ameno, era de quem queria dizer: “Desse pobre miserável, diga apenas o que é justo. Você não vê como sou benévola para com ele? Afinal, ele é filho de fulana, pessoa que tem lados muito bons, e a quem eu quero bem por isso”.
A esse propósito, Dr. Plinio mais tarde comentaria: “Era tal a bondade com a qual mamãe corrigia seus filhos, que eu me sentia inteiramente tomado por sua benevolência. Esta contribuía mais para me afastar do perigo de reincidir na falta, do que o próprio temor de uma repetição da censura...”
Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.

domingo, 11 de novembro de 2012

Cintilações de uma ilimitada bondade

Enquanto Rosée e Plinio eram muito pequenos, Dª Lucilia deles nunca se separou, nem mesmo por ocasião de viagens, raras então. Com o correr do tempo, as circunstâncias impuseram separações mais longas ou menos, que tiveram como resultado o início de uma expressiva correspondência, da qual, felizmente, Dª Lucilia conservou inúmeros postais e cartas.
Traçadas com letra segura e elegante, quase desenhada, redigidas em despretensioso estilo, as missivas de Dª Lucilia exprimem um oceano de afeto por seus filhos, bem como as saudades que as ausências, mesmo quando não tão longas, faziam brotar em seu maternal coração.
Os primeiros escritos são dois cartões postais de 1919, enviados do Rio de Janeiro, onde Dª Lucilia esteve, possivelmente em março, por ocasião dos funerais do célebre Conselheiro João Alfredo, tio de Dr. João Paulo:
Minha filhinha querida!
Recebi teu telegrama, portador de boas notícias tuas e de teu irmãozinho, o que muito me alegrou! Estou muito contente de ver que vocês estão tão bonzinhos e ajuizados... que Deus os abençoe e os faça muito felizes!
Penso a todo momento com muitas saudades em vocês, mas espero seguir depois de amanhã sem falta! para abraçar os queridinhos de meu coração.
Abraça-te com imenso afecto, tua mamãe extremosa,
Lucilia
Meu filhinho querido!
Fiquei muito satisfeita ao receber teu telegrama! Deus permita que continuem a passar bem e desejo encontrá-los bem bonzinhos e alegres. Fui hoje mesmo procurar uns brinquedinhos para vocês... Tenho achado uma falta enorme em vocês, parece-me ouvir a cada instante suas vozes! Até quinta pela manhã, se Deus quiser.
Abraça-te com imenso afecto, tua mamãe extremosa,
Lucilia
Tal transbordamento de carinho não podia deixar insensíveis Rosée e Plinio que, como era natural, sentiam muito o estar longe de tão dedicada mãe. É o que nos mostra este bilhete, deixado por Plinio antes de uma rápida viagem:
Quase adorada mãezinha
Já antes de sair senti tantas saudades que lhe deixo aqui 500.000 beijos. Esteja sossegada. Logo que chegar eu lhe telefonarei. Eu levei meu capote. Eu volto amanhã durante o dia.
100.000.000.000.000.000 de beijos e abraços de
Pigeon
No meio de todos os cuidados para com seus filhos, Dª Lucilia entretanto não se olvidava de um velho amigo, que há muito não via, e que estivera exposto às agruras da Primeira Grande Guerra: seu cirurgião, Dr. Bier.
Preocupação com a sorte de Dr. Bier
Dizia alguém, com acerto, ser a gratidão a mais frágil das virtudes. Não porém em Dª Lucilia, que guardava profundo reconhecimento em relação a quem lhe proporcionasse algum benefício. Jamais se esquecia do bem recebido e procurava com generosidade retribuí-lo. O mero interesse pessoal nunca penetrou em sua nobre e grandiosa alma durante toda a sua longa existência. Até o mal que lhe fizessem, ela pagava com bondade ainda maior.
Por isso mostrou-se sempre muito grata para com o médico que lhe salvara a vida, o famoso Dr. Bier, mantendo com ele amável correspondência. Apesar de suas ocupações como cirurgião de renome universal e médico pessoal do Kaiser, ele nunca deixava de responder às cartas de Dª Lucilia. Porém, sobreveio a guerra e as comunicações se tornaram difíceis, sobretudo depois do rompimento de relações entre o Brasil e a Alemanha. Dª Lucilia, não tendo mais notícias dele, externava em algumas conversas preocupação pela sorte de seu benfeitor. Embora a prestigiosa função de Dr. Bier junto ao Kaiser Guilherme II tornasse pouco provável sua participação pessoal nos combates, as vicissitudes de um conflito armado sempre trazem consigo surpresas, o mais das vezes trágicas.
Tão logo terminada a primeira conflagração mundial, Dª Lucilia voltou a lhe escrever, pedindo notícias dele e da família, e perguntando se precisavam de algo. Talvez por julgar um pouco excessivas tantas mostras de delicadeza, alguém amavelmente comentou:
— Lucilia, vejo que você faz isso por bondade, mas Dr. Bier nem se lembra mais da cirurgia que lhe fez...
Ela, motivada muito mais pelo amor de Deus do que por um natural e legítimo sentimento de gratidão, respondeu com toda a serenidade:
— Ele deve recordar-se de mim, porque ficamos bons amigos. Mas ainda que não se lembre, não importa, eu me lembro dele. E por isso lhe escrevo.
Transcorrido algum tempo, Dª Lucilia recebeu, com grande contentamento, amabilíssima carta do Dr. Bier, em francês, na qual ele agradecia a atenção e contava haver ficado completamente surdo, pois um estampido de canhão lhe rompera os tímpanos. E acrescentava que, se ela quisesse ser gentil, lhe mandasse um pacotinho de café, produto raro na Alemanha do pós-guerra.
Em sua ilimitada bondade, Dª Lucilia lhe enviou, não um pacotinho, mas uma saca inteira...
Dr. Bier, comovido, escreveu mais uma vez agradecendo. Sua morte, em 1949, causou tristeza a Dª Lucilia, que devotamente rezou em sufrágio de sua alma.
Se a difícil situação de um antigo médico dera a Dª Lucilia ocasião de poder manifestar sua imensa benevolência, quanto mais uma persistente moléstia de seu queridíssimo filho.
Doença interminável
Grande foi sua solicitude quando Plinio se viu atacado por uma dessas doenças comuns na infância, aliás não de todo isenta de riscos, a caxumba. Essa enfermidade foi especialmente penosa para ele, não tanto pela gravidade do mal, mas pelo demorado da convalescença, verdadeiro tormento para uma criança.
Plinio não sabia que a caxumba podia passar de uma parte para outra do organismo. Quando se julgava próximo da cura — pois os sintomas iam progressivamente diminuindo — e começava já a fazer planos de brincar no jardim, para seu desconsolo tudo recomeçava, com o reaparecer dos mesmos incômodos. Era então a hora dos suavizantes bálsamos da resignação que só Dª Lucilia sabia aplicar:
— Filhão, tenha paciência, isto passa, como já passou deste lado da garganta.
Quando estava quase são da garganta, Plinio sentiu uma forte indisposição. Seu quarto era ao lado do de Dª Lucilia. Chamou-a:
— Mamãe, faz favor.
Ela veio, afável e sorridente, e ele explicou o que estava sentindo.
— Filhão — disse-lhe com voz meiga — a caxumba passou para o aparelho digestivo.
Ele de novo teve dificuldade em manter a paciência:
— Mas isto passa para onde mais? Para os olhos, para a língua?
— Não — respondeu ela — fique calmo. Agora é mesmo a última vez. Esteja consolado, vou arranjar um brinquedo para você. Tenha confiança!...
Esse “tenha confiança”, dito por ela, de fato comunicava ao filho uma doce serenidade de espírito que o tranquilizava. E para retribuir tão imensa solicitude, Plinio não poupava suas manifestações de ternura...
Marcas de um agrado
Certa feita, no decurso de um almoço em casa de Dª Gabriela, um participante notou que Dª Lucilia tinha no braço esquerdo uma pequena mancha roxa, fruto evidente de contusão, mal disfarçada por uma pulseira de marfim com incrustação de bronze. Ao lhe perguntarem a causa do inusitado sinal, Dª Lucilia com doçura respondeu:
— Foi um agrado do Plinio.
Todos deram uma gargalhada, e ela também riu. Alguém lhe indagou então por que permitia da parte do filho tão truculenta prova de carinho. Ela respondeu:
— Recusar agrado de filho meu, nunca me acontecerá na vida. Desde que não seja o mal, Plinio pode fazer o que quiser.
Essa contínua benquerença de Dª Lucilia, nunca desmentida, levou-a, certa vez, a dispensar seu filho de um tipo de atividade não condizente com as inclinações dele.

Aulas fracassadas
Quando Plinio entrou na adolescência, Dª Lucilia lhe deu mais liberdade de ação para que ele sentisse sobre si o peso da responsabilidade, mas não deixou de se preocupar com a saúde dele. Por isso lhe recomendou fazer exercício físico e aprender a nadar.
Naquela época a natação não tinha os inconvenientes morais de hoje, tudo se fazendo com recato nos trajes e a devida compostura.
Foi assim que, em um dos estabelecimentos balneários especializados e de alto padrão de São Paulo, Plinio passou a receber aulas numa piscina, alugada por Dª Lucilia só para ele. As professoras de ginástica e natação eram suecas. Antes de entrar na água, procedia-se aos exercícios de aquecimento. Plinio, pouco afeito a esforços desse gênero, ia repetindo, sem grande atenção, os movimentos que a enérgica mestra fazia. Conformava-se com aquelas pequenas “torturas” apenas para agradar a sua mãe.
Depois passava para a piscina. Apesar de todo o empenho e insistência da instrutora, não havia forma de Plinio aprender sequer a boiar. Todas as tentativas acabavam em naufrágio, sem maiores consequências além de uns indesejados goles de água. Por fim a professora perdeu a paciência e lhe disse que a única solução seria jogá-lo numa piscina funda. Ele teria de sair de qualquer jeito do outro lado, aprendendo de uma vez por todas a nadar.
Quando ele voltou para casa, Dª Lucilia lhe perguntou como tinha sido a aula. Plinio explicou o ocorrido, certo de que sua mãe insistiria para que ele continuasse. E ele não seria capaz de lhe recusar um pedido. Porém, as imposições não se coadunavam com o modo de ser ameno de Dª Lucilia. Vendo que seu filho não tinha pendor para a natação, não quis obrigá-lo a retornar às aulas. Afinal, o que acabaria realmente mostrando-se eficaz para dar vigor à frágil saúde de Plinio seria sua maternal solicitude que, à força de carinho, haveria de transformar aquele franzino adolescente num robusto e saudável moço.
Lições de piano, de afeto e bondade
Dos bons costumes daqueles tempos, fazia parte ter em casa um piano. Dª Lucilia tinha gosto em tocá-lo e via com esperança a possibilidade de transmitir a sua filha essa arte.
Assim, contratou durante certo tempo um professor para dar aulas particulares de música a Rosée. Era o Prof. Wancolle, uma das principais figuras do corpo docente do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. No decurso das aulas, a que Dª Lucilia assistia com frequência e grande comprazimento, formou-se entre professor e aluna uma sincera amizade, da qual Rosée guardou, até o fim de sua vida, emocionada recordação.
Mais tarde quis Dª Lucilia que sua filha aprimorasse seus dotes musicais, matriculando-a no próprio conservatório. Rosée continuou a manifestar excepcional talento para a música, e se tornou, já no primeiro ano, uma das melhores alunas do egrégio estabelecimento.
Foram estes os únicos cursos que Rosée frequentou, além da escola de afeto e bondade, na qual Dª Lucilia era a grande e inimitável mestra naquele abençoado lar...
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Senhorio constituído de bondade e afeto

Como nos foi dado apreciar no último post, Dª Lucilia, inteiramente segura de si, não acompanhava as aflições, o espírito competitivo e os sustos não raros entre as senhoras e moças de seu tempo, influenciadas pela onda hollywoodiana. Veremos hoje como ela — com fino senso psicológico e solicitude materna — preservou desse mal seus filhos.
O que restava de pomposo no teor de vida de então ainda exigia o comparecimento a bailes em elegantes e distintos trajes, inspirados em geral nos modelos franceses. Revistas de Paris, assinadas pelas senhoras da alta sociedade paulista, traziam fotografias das mais recentes e finas toilettes femininas. Qual devia ser a cor da seda do vestido para se harmonizar com certo penteado; como devia ser a combinação do chapéu com os sapatos e a bolsa; que jóias estavam mais adequadas a determinado traje, tudo era meticulosamente analisado e discutido pelas leitoras, tendo em vista as reuniões sociais. Com frequência as senhoras mandavam executar seus projetos numa grande casa especializada, La Saison, muito bem decorada ao gosto francês. A proprietária, Mme. Françoise, brasileiramente chamada de Dona Francisquinha, ou suas auxiliares, costumavam ir às casas das clientes para levar amostras de tecidos, tirar as medidas e fazer as provas.
Dª Lucilia, sem fugir à regra, igualmente se esmerava em compor e desenhar seus vestidos, comprar o tecido e exigir a perfeita confecção de seus trajes. Participava também das animadas conversas sobre tais temas. No entanto, nunca se deixava tomar pela agitação por elas suscitada.
Quando chegava o dia de alguma festa, uma expectativa ardente tomava a maior parte das senhoras. Dª Lucilia estava preparada com tanto apuro quanto as outras. Certa de seu bom gosto, mas sem a menor pretensão, denotava aquela tranquilidade e serenidade que nunca a abandonavam.
Afirmando-se desse modo, mantinha-se fiel à antiga placidez paulista, em meio a um mundo que ia aderindo cada vez mais à agitação da vida moderna.
Fidelidade, mesmo ao preço do isolamento
A admirável coerência de Dª Lucilia custou-lhe, no entanto, um terrível tributo, que ela suportou com a firme resignação própria a uma alma católica: o isolamento.
À medida que a nova mentalidade se foi difundindo por toda a parte, os que permaneciam fiéis às tradições e ao modo de ser do passado iam sendo postos de lado, caindo sobre eles a dura pena do ostracismo. Suas conversas, outrora apreciadas como atraentes, já não mais interessavam. Suas atitudes cerimoniosas não condiziam com os padrões ditos modernos. Só o engraçado, o excitante, o espontâneo tinham direito de cidadania.
Foi quando esses ventos de mudança sopravam mais fortes que Dª Lucilia viu seus filhos irem atingindo a adolescência, fase tão delicada na vida de uma pessoa, na qual tudo se pode ganhar ou perder. Para Rosée, já com doze anos, havia ainda a vantagem de ser educada no ambiente doméstico. Quanto a Plinio, pelo contrário, aproximava-se inevitavelmente o dia em que teria de frequentar algum colégio. Tendo recebido elevada educação, era necessário que enfrentasse agora a luta contra o respeito humano. Auxílio do Céu nunca lhe faltaria, nem as fervorosas orações de sua mãe.
No entanto, quantas apreensões sofreu o coração de Dª Lucilia!
Preferia vê-lo morto a vê-lo extraviado
Os temores de Dª Lucilia se manifestavam sobretudo no tocante aos rumos que, fazendo bom ou mau uso do livre arbítrio, seus filhos tomariam na vida. O papel dela cada vez mais se limitava, à medida que eles cresciam, a estimular os lados bons da personalidade de cada um, assim como suscitar neles ódio ao mal. Por isso, algumas vezes repetia a Plinio:
— Meu filho, os tempos são muito ruins e você ainda é muito moço. Ninguém pode ter ideia do que é capaz uma pessoa quando se extravia. É bom que você saiba que eu preferiria vê-lo morto a vê-lo extraviado.
Palavras carregadas de gravidade, que demonstram como os extremos de bondade e afeto pelos filhos, em Dª Lucilia, eram inteiramente movidos pelo amor de Deus, a ponto de ela preferir o sacrifício da vida terrena deles a vê-los perder a eterna.
Um senhorio de afeto
Ouçamos uma palavra de quem tanto se beneficiou da preciosa solicitude materna de Dª Lucilia. A propósito do exercício da autoridade dela, diz Dr. Plinio:
“Havia um aspecto em mamãe que eu apreciava muito: o tempo inteiro, e até o fundo da alma, ela era senhora! Em relação aos filhos, guardava uma superioridade materna que me fazia sentir o quanto eu andaria mal, caso transgredisse a autoridade dela, e como semelhante atitude, de minha parte, lhe causaria tristeza, por ser ao mesmo tempo uma brutalidade e um malefício.
“Senhora, ela o era, pois fazia prevalecer a boa ordem em todos os domínios da vida.
“Sua autoridade era amena. Às vezes mamãe castigava um pouco. Mas mesmo em seu castigo, ou em sua repreensão, a suavidade era tão saliente que confortava a pessoa.
“Com minha irmã Rosée o procedimento era análogo, embora mais delicado, por se tratar de menina. A reprimenda, entretanto, não excluía a benevolência, e mamãe estava sempre aberta a ouvir a justificação que seus filhos lhe quisessem dar.
“Assim, a bondade constituía a essência do senhorio dela. Ou seja, era uma superioridade exercida por amor à ordem hierárquica das coisas, mas desinteressada e afetuosa em relação àquele sobre quem se aplicava.”
Essa retidão de alma, que é a verdadeira bondade, cada vez menos era compreendida num mundo propenso a acabar com a incômoda distinção entre bem e mal.
Porém, Dª Lucilia, fiel ao espírito da Igreja, continuava a formar seus filhos nos mesmos princípios perenes, resistindo aos vagalhões de mudança que agitavam a sociedade.
Cons. João Alfredo Corrêa de Oliveira
O papel dos antepassados
Já pudemos comprovar que um dos traços mais característicos da educação dada por Dª Lucilia consistia em transmitir lições morais através de contos ou histórias1. Método cheio de sabedoria, utilizado pelo próprio Homem-Deus em suas pregações, constituindo as parábolas algumas das páginas mais belas e ricas dos Evangelhos, por seus divinos ensinamentos envoltos em poesia sem igual.
Dª Lucilia não era grande leitora de livros de história. Tinha noções gerais, como habitualmente as senhoras do tempo. Entretanto, possuía privilegiada memória, além de um dom extraordinário para transmitir seus sentimentos a respeito dos fatos, dando a entender, através de pormenores matizados, qual o fundo de seu pensamento. Usando vocabulário de dona-de-casa, com muita clareza, harmonia e correção, e sem se ater a precisões de caráter filosófico ou teológico, considerava os acontecimentos com aquele espírito católico que recebera pela tradição e enriquecera por sua piedade.
De outro lado, possuía uma dimensão histórica do pensamento, concernente ao pequeno mundo de sua família. Formara assim uma teoria da vida, baseada na história de seus próprios ancestrais, que ela deveras admirava. Pela recordação do passado, ilustrava o presente, enunciando com subtileza o que este último tinha de rejeitável e o que o primeiro tinha de louvável.
Costumava contar inúmeros fatos da vida de seu pai, a quem considerava o arquétipo do homem perfeito, bem como da vida de parentes ou de pessoas da sociedade de São Paulo que ela conhecera mais de perto.
Ao longo das narrativas, acentuava certos pontos que serviam de lição para os filhos e depois acrescentava:
— Vocês prestem atenção em como se deve ser. Uma pessoa deve agir assim, olhem o que sucedeu com tio tal, ou com a prima tal.
Ela insistia em especial sobre determinados procedimentos, como por exemplo, o de se empenhar em ser uma pessoa muito respeitável.
Dª Lucilia fazia uma alta ideia do papel que tinham, na vida de uma pessoa, os antepassados e o nome da família. Achava que este último devia ser usado como um estandarte, tal como um soldado porta sua bandeira em combate. É uma honra carregá-la e seria uma desonra deixá-la cair, por preguiça ou por medo, nas mãos do adversário. Assim, para quem descende de ancestrais dignos de nota, constituiria um desdouro não estar na mesma altura moral dos mais destacados dentre eles.
Falando quase só do bem, incutia aversão ao mal
Em suas narrativas, Dª Lucilia tinha muito em vista ensinar o desapego. Se fosse necessário sacrificar a posição social ou a fortuna, a fim de inteiramente cumprir o dever, ela o faria, e salientava ser esta a única atitude cabível nessa circunstância. A vida não é feita para o prazer, mas para carregar aos ombros, de bom grado, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, princípio amado e posto em prática por ela em sua existência diária, não só por sua resignação, como também por sua postura decidida face às adversidades. Ao contar algum fato acontecido com outrem, participava da alegria ou das dores das pessoas envolvidas, virtude esta própria a alimentar seu gosto em descrever pequenos episódios da vida real.
Estimulava sempre os filhos a almejarem a honra e adquirirem respeitabilidade através de suas virtudes pessoais, sem se tornarem ambiciosos nem ávidos de dinheiro.
Ela falava quase exclusivamente do bem, da verdade e do belo; dir-se-ia que não via a realidade senão através desses prismas. Entretanto, quando lhe cumpria censurar algo de mau, era difícil encontrar alguém que a excedesse no desempenho dessa obrigação. Por seu senso de justiça, a par do louvor aos méritos alheios, também a reprovação ao mal nunca lhe faltava nos lábios.
A fim de incutir em seus filhos horror ao vício, descrevia o ocorrido com pessoas conhecidas de outrora, ressaltando as tristes consequências das paixões desenfreadas, de modo a fazer transparecer o quanto havia nestas de censurável.
Um marido roubado
Um desses fatos da São Paulo antiga passou-se com um de seus parentes, de bela aparência mas bem pouco inteligente. Conseguiu ele, no entanto, ser nomeado para o cargo de juiz de direito numa comarca vizinha à da Capital, provavelmente por efeito de relações sociais. Porém, não tendo capacidade para julgar qualquer causa cuja complexidade fosse tão-só um pouco maior que a normal, levava, no lugar, a vida apagada dos nulos. O pior nele, porém, não era a falta de dotes intelectuais, mas a preguiça. Não fazia esforço algum para melhorar sua própria situação.
Havia na localidade uma viúva muito rica que, pela mera razão dos dotes físicos do jovem, queria casar-se com ele. Mas este, como não gostasse dela, não queria aceitar a proposta de modo nenhum. Percebendo a senhora quanto ele era mole e sem personalidade, mandou uns capangas invadirem seu quarto à noite e raptá-lo, como quem roubava antigamente uma moça. E ele não opôs resistência...
Quando chegou à casa dela, encontrou-a furiosa, resolvida a casar-se com ele a todo custo. Como para resistir era preciso esforço... então se casou!
O modo sério de Dª Lucilia contar a história, bem como sua rejeição a tanta pusilanimidade, dispensavam o emprego de adjetivos para tornar reprováveis, aos olhos de seus filhos, a preguiça e a moleza desse homem.
Repudiar quase instintivamente esses vícios era a reação mais salutar que ela despertava em seus jovens ouvintes, predispondo-os desse modo às enérgicas e sábias atitudes que deveriam tomar perante as inúmeras vicissitudes desta vida.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)