segunda-feira, 28 de abril de 2014

Dir-se-ia feita para ter muitos de filhos

O feitio do amor materno de Dª Lucilia dava a impressão de que sua alma esperava ter mil filhos, e isto constituía a grande incógnita de sua vida.
A Providência lhe infundira no coração uma enorme capacidade de afeto, bondade e proteção, que parecia fadada a morrer sem ter podido exercer-se inteiramente. O plano de Deus em relação a ela lhe parecia inexplicável, e foi uma das tristezas de sua vida: aquele amor maternal, que pudera dedicar, é verdade, a dois filhos, mas que em grande parte ficara guardado no escrínio de sua alma, sem condições de ser aplicado.
Várias vezes analisei mamãe — comentaria mais tarde Dr. Plinio — e, não podendo imaginar o que depois sucedeu, olhava para ela e pensava: “Há algo de axiológico na vida dela que parece não estar bem acertado. Ela possui uma enorme ternura; foi afetuosíssima como filha, afetuosíssima como irmã, afetuosíssima como esposa, afetuosíssima como mãe, como avó, e mesmo como bisavó. Ela levou seu afeto até onde lhe foi possível.
“Mas, eu tenho a impressão de que alguma coisa nela dá a nota tônica de todos esses afetos: é o fato de ela ser, sobretudo, mãe! Ela possui um amor transbordante não só para com os dois filhos que teve, como também para com filhos que ela não teve. Dir-se-ia feita para ter milhares de filhos, e seu coração palpita do desejo de conhecê-los. Entretanto, esses filhos não vieram, nem poderiam vir nesse número exorbitante. O que quis a Providência com isso?”

Via-se que mamãe esperava uma certa coisa da vida. Não na ordem do prazer, nem do realce, nem de algo semelhante. Ela esperava uma certa reciprocidade de mentalidade, uma certa afinidade de pensamento, de temperamento, de modo de ser. Ela era ávida de abarcar um largo afeto, uma imensa consonância com um número enorme de pessoas. E chegou ao último extremo de sua longa ancianidade nessa serena expectativa, calma, um tanto tristonha, mas de uma tristeza luminosa, nobre, sem agitações ou angústias, e com um fundo de certeza de que isso um dia viria...
Transcrito, com adaptações da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Prolongada estabilidade de alma

Do trato ameno e acolhedor para com os outros, ao zeloso cuidado com sua própria saúde, Dona Lucilia procurou sempre manter o mesmo estado de espírito, nascido da prática da virtude, da convicção de seus princípios católicos e de um firme equilíbrio emocional, conforme no-la descreve Dr. Plinio.
Em mamãe, a par da sua invariável afabilidade e acolhimento para com os que dela quisessem se aproximar, seria preciso considerar também o aspecto de senhora de categoria que, sem se situar num patamar inacessível, sabia entretanto impor respeito.
Equílibrio em todas as coisas
Por exemplo, diante dela, não vinha a vontade de lhe dirigir uma brincadeira ou dito irreverente, menos ainda de desacatá-la. Se alguém se aventurasse a isso, ela, com suavidade, colocaria a pessoa no seu devido lugar, fazendo-a compreender como tivera uma atitude despropositada. A pessoa reconheceria e pediria desculpas, sem nenhum ressentimento da parte de mamãe. Ela nunca revidaria de modo rude: “Mas, afinal, eu proibi que agisse assim comigo!”. Não. Com mansidão e bondade, deixaria o outro constrangido pelo que fez de errado, mas sem afligi-lo nem magoá-lo com uma repreensão excessiva.
Era o modo de ser dela, equilibrado em tudo, fosse no relacionamento com as pessoas, fosse no cuidado consigo mesma. Aliás, de saúde frágil, mamãe sempre se cuidou judiciosamente, até o fim da vida. Sem nada de desgrenhado, dilacerante nem de tristeza do estado de enfermidade, mas com o equilíbrio do doente que se trata e se resigna.
A vida inteira num estado de espírito
Esses diversos aspectos se mostravam nela, cada um a seu modo, ocupando na sua alma o relevo que deviam ocupar e formando, portanto, uma harmonia emocional que importava numa harmonia relacional. Ou seja, mamãe convivia harmonicamente com as pessoas, porque seu estado emocional estava ordenado.
A questão é: como pode esse estado emocional perdurar tanto num espírito, se não for em virtude de princípios que são a justificação lógica desse estado emocional? Pois a emoção, de si, é algo volátil.
Convite a ter seus mesmos princípios
Então, como pode uma senhora, como mamãe, adquirir a estabilidade?
É só por meio de princípios, talvez vividos subconscientemente e entrevistos conscientemente, de maneira tal que se diria ter o princípio nascido com o estado emocional. Este nutriu-se com aquele, e se desenvolveu mais do que o princípio puramente teórico.
Creio que mamãe, se nos ouvisse agora, ficaria pasma de saber que de uma simples dona de casa se pode fazer uma extensa digressão como essa. E se soubesse que me refiro a ela mesma, certamente tocaria na minha mão com seus dedos suaves, como costumava fazer, dizendo-me: “Meu filho, meu filho, não tanto...”
Seja como for, ela tinha esses princípios, e tinha como missão própria de mãe convidar os filhos a tê-los também. A mim, na condição de filho, cabia receber esse legado, hauri-lo, amá-lo o quanto possível, e partir para duas coisas: a explicitação desses princípios em doutrina, e a sua aplicação prática na minha vida.
Quer dizer, como mãe e dona de casa, ela não fez outra coisa senão educar. Explicitar e agir era meu dever e meu papel, não o de Dona Lucilia. Para ela, apenas a existência dentro da vida de família. Como, aliás, ela entendia ser o resto da existência urbana de São Paulo ou de qualquer cidade: é um conglomerado de famílias onde todos vivem, sobretudo, no âmbito doméstico, e somente por acaso passam algum tempo nas ruas. Esta era a concepção — vejo bem que idealizada, catolicamente idealizada, e não muito objetiva — das coisas.
“Ela criou um ambiente”
Eu até ousaria dizer que mamãe, à maneira da Igreja Católica que explicita suas doutrinas e estabelece seus dogmas em face das heresias, chegava a explicitar seus princípios quando contestados de alguma forma. Do contrário, ela não agia senão como uma senhora do lar, educando e criando um ambiente na família dela. Porque isto é fato: o ambiente ela criou, e a influência, a presença e o perfume de sua pessoa ainda perduram na casa que hoje é minha. Quem a visita, poderá perceber que mamãe ali está presente, a todo momento.
A mim, pois, coube receber a predileção e a solicitude maternas com as quais me formou, e essa herança da explicitação e da ação. Por isso, em grande parte das doutrinas e pensamentos que desenvolvo, em muito das ações que empreendo, poder-se-á notar algo dessa inestimável influência que recebi de mamãe.

Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência em 21/4/1977

terça-feira, 15 de abril de 2014

21 de abril de 1968

Cama de Dona Lucilia
Tocado pela recordação do falecimento de Dona Lucilia (clique aqui para conhecer como foi sua morte), assim manifestou-se Dr. Plinio:
Esta cena — do encontro com minha mãe,  que Deus acabava de chamar a Si — foi a que  mais  me  emocionou  na  vida.  Imediatamente  fui avisado para ir ao quarto dela, contíguo ao  meu, mas quando cheguei, ela já não estava lá.  Não a alcancei! E senti a imensidade que nos  separava.
Deus e Nossa Senhora nos uniam, e isto bastava. No entanto... quando entrei no quarto e  vi o corpo dela já sem vida, senti que aquelas  mãos, que tanto me haviam abençoado e acariciado, não me acariciariam mais, aqueles lábios, que tantas coisas me haviam ensinado, não  me ensinariam mais, aqueles lábios, enfim, que  tanto haviam orado por mim, não se moveriam  mais...
Senti então, naquele momento, passar-se algo  comigo que me sacudia de modo profundo e por  inteiro, como seu eu fosse uma corda que arrebentasse, e algo, que era quase eu mesmo, separar-se categórica e drasticamente de mim. Na  véspera,  eu  havia  passado  o  dia  inteiro  junto de mamãe, no quarto, não saindo, a bem  dizer, para nada. Eu sabia que ela estava prestes a morrer, e a razão de eu permanecer ali era  a consciência plena disso. Mas — fato singular  — o drama da morte só se pôs, para mim, no instante em que ela expirou e senti a ausência do  seu carinho... e então chorei copiosamente...
 Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 22/4/1993

terça-feira, 8 de abril de 2014

Ecos de Roma...

Como vimos anteriormente, Dr. Plinio se ausentara uma vez mais do convívio com Dª Lucilia, a fim de viajar para Roma, onde acompanharia as semanas iniciais do Concílio Vaticano II.
Arcos-botantes de benquerença
A Cidade Eterna se encontrava regurgitante de pessoas chegadas dos mais longínquos recantos do mundo. Era uma oportunidade única para alargar o âmbito de relações do jovem grupo dirigido por Dr. Plinio. Somando-se a isso os trabalhos diretamente concernentes aos debates do Concílio, não deveria sobrar muito tempo livre a ele para escrever cartas, pelo que sua correspondência nesse período é reduzida.
Em sua primeira missiva, comenta a visita feita ao Capitólio romano, importante edifício, situado numa belíssima praça. O conjunto é, por sua perfeita harmonia e proporção, dos mais belos do mundo.
Naturalmente, ao contemplar o magnífico cenário da Roma dos Papas, não poderia deixar de pensar em Dª Lucilia, cuja alma admirativa se encantaria com tudo aquilo.
Se ela ali estivesse, percorreria devagarzinho aqueles espaços, apoiada no braço do “filhão”, e comentando, enlevada, este ou aquele aspecto — o belo azul do céu romano, os castelos de nuvens no horizonte a ressaltar a grandeza de milenares monumentos, o Tibre que vai serpeando vagarosamente por entre históricos edifícios e gloriosas ruínas — até que o declinar do sol lhe anunciasse o fim de tão agradável prosinha...
Roma, 22-10-1962
Luzinha querida do meu coração
Estou esperando ansiosamente uma carta sua. Em todo o caso, já soube por carta de um rapaz do grupo, que a Sra. recebeu bem a notícia de minha viagem: graças a Deus!
Aqui me tenho lembrado muito de minha Lú, e de sua conversinha que tantas saudades me faz, bem como de seus agrados, e de tudo o mais, de que sinto tantas saudades!
Especialmente, lembro-me da Sra. quando vejo certas coisas bonitas, de que a Sra. gostaria muito. Ontem, por exemplo, vi o Capitólio romano, que aliás já visitara em 1959. É estupendo. E logo pensei: como seria bom que a minha Lú do coração pudesse ver isto.
Escreva-me logo, minha Querida, falando-me de tudo a seu respeito, e especialmente de sua saúde.
Tenho trabalhado muito, comido muito, passeado um pouco em lugares lindos.
Mando-lhe junto as cartas a Rosée e Maria Alice. Assim a Sra. ficará com um noticiário completo.
Sou obrigado a interromper, pois são 16 hs. e às 17 terei uma reunião muito importante.
Minha querida, minha boneca, minha marquezinha: cuidado com sua saúde, e reze pelo filhão que a quer muitíssimo, lhe envia milhões de beijos, e lhe pede respeitosamente a bênção.
Plinio
Na carta seguinte, Dr. Plinio manifesta como sempre uma qualidade sem a qual um autêntico convívio não se estabelece: a abnegação.
Dir-se-ia que, nesse inefável relacionamento com Dª Lucilia, a renúncia de cada um a si próprio reverte generosamente em benefício do outro; tal como os arcos-botantes de uma catedral que por si sós não se sustentariam, mas, apoiando colossais paredes, formam com elas um todo esplendoroso.
Manguinha de meu coração
Minha caneta azul está quebrada. Por isto, lhe escrevo em vermelho.
Gostei imenso de suas duas cartas. Tenho-as sobre meu criado mudo, para as ter sempre sob os olhos. E estou com umas saudades loucas de minha Mãezinha querida, de seus agrados, de sua presença, de sua prosinha, enfim dela, de tudo quanto é dela, e de tudo que a rodeia.
Poucas coisas me poderiam alegrar tanto, quanto saber que a Sra. vai bem. Cuide-se: nada de melhor a Sra. poderia fazer por mim. Melhor do que isto, só uma coisa: rezar por mim...
Não sei ainda bem o dia de minha volta, mas espero que não tarde.
Escreva-me logo, meu amor do coração.
Perdoe esta carta-relâmpago: estou ocupadíssimo.
Com mil e mil beijos, todo o carinho do filho que a quer imensissimamente, e lhe pede com respeito as bênçãos e orações.
P.
Cartas laboriosamente confeccionadas
Dona Rosée continuava a dar notícias a seu irmão, por breves que fossem, do estado de Dª Lucilia. Em 1º de novembro narrava ela de modo expressivo o quanto custava a sua mãe escrever aquelas comovedoras cartas:
Você a esta altura já deve ter recebido pelos menos duas cartas das três que [mamãe] escreveu. Vou mandar agora outra que ela estava confeccionando laboriosamente ontem! (Acabo de passar em sua casa para pegar a carta e não está pronta. Segue amanhã.)
No local que mais fazia recordar a Dª Lucilia a presença de seu querido filho, o escritório do apartamento, ela estabelecia muitas vezes com ele seu contato epistolar. Já com a vista enfraquecida, ocupava tardes inteiras, pacientemente debruçada sobre as folhas de papel, nas quais a pena ia traçando com lentidão e esmero cada letra, para formar palavras carregadas de afeto e doçura, que ainda hoje encantam quem as lê.
Em resposta às duas cartas de Dr. Plinio acima transcritas, envia Dª Lucilia, com data de 1º de novembro, mais algumas linhas nas quais se percebe como estava preocupada com os grandes acontecimentos mundiais. Claro, sempre em primeiro lugar, por estar em causa a Igreja, sua atenção se voltava para o Concílio.

Continua no próximo post

quarta-feira, 2 de abril de 2014

“Se soubesses como fica triste a vida quando viajas para tão longe...”

No dia 21 de outubro, Dª Rosée enviava a Dr. Plinio nova carta, com mais alguns detalhes sobre o dia-a-dia de Dona Lucilia:
Ontem foi dia de festa porque Mamãe e eu recebemos suas cartas. Nem posso te dizer a alegria que sentimos. (...)
Mamãe está ótima. A Olga e a Carlota fazem “puzzle” com ela à noite, e tem tido muitas visitas. Já mandei vir duas vezes a preciosa Sinhá. O Brickman achou-a muito bem. Em casa estão só a Olga e a Carlota. Como esta última tem mania de limpeza e é muito ativa, a coisa vai bem.
A “preciosa Sinhá” era prima de Dª Lucilia. Ambas mantiveram estreitas relações a vida inteira, só interrompidas pela morte. Era das poucas pessoas que restavam dos antigos tempos, pelo que reinava entre ambas grande afinidade.
Levada por seu amor à Santa Igreja e pelo desejo de acompanhar em espírito seu filhão, Dª Lucilia conservava as vistas voltadas para Roma, procurando discernir o que se passava no Concílio.
São Paulo, 23-10-1962
Filho tão querido de meu coração!
Já recebeste a [carta] de Rosée? Ela e Maria Alice têm vindo todos os dias. Rosée veio ontem, e hoje o tempo está péssimo... tão frio, chuvoso, que enregela principalmente aos velhos reumáticos nos “pulsos” como eu!
Se soubesses como fica triste a vida quando viajas para tão longe!!! É verdade que têm vindo os meus parentes me visitar, menos Yayá, Dora, Gizela que estão no Rio.
Pensa bem no que te digo.... cuidado, muito cuidado com o teu apetite... se ficas doente, como vais fazer? Perdes o fim do “célebre Concílio”, bonitos passeios, etc!
Saudosíssima, peço a Deus e a Nossa Senhora para que te protejam e abençoem, e envio-te mil beijos e abraços de tua... manguinha...
Lucilia
É edificante observar nas cartas de Dª Lucilia como ela fala muito pouco de seus problemas pessoais. Quando o faz, é para satisfazer os insistentes pedidos de seu filho.
Por outro lado, tendo ficado muito só, em nenhum momento se queixa desse fato, pois sabe que a viagem de Dr. Plinio é feita para atender aos interesses da Igreja. Razão largamente suficiente para justificar tamanho sacrifício, que ela estaria disposta a repetir quantas vezes fosse necessário. Depois do bem da Causa Católica, sua primordial preocupação é o bem de seu filho, como se pode ver mais uma vez na carta seguinte em que, por distração, ela escreve “Congresso” em vez de “Concílio”...
São Paulo, 26-10-1962
Filho querido de meu coração!
Espero que já tenhas recebido duas cartas minhas; hoje mais esta. Recebi também uma tua, de Roma. Imagino o quanto deves estar apreciando esta bela morada dos Papas, e ainda mais, tudo isso em companhia de teus bons e caros amigos; só me faz pena de ver os que não puderam ir! Sempre que pode, manda-me notícias tuas... — os jornais não dão notícias que satisfaçam!
Esteve aqui o Castilho para fazer-me uma visita.
Francisco Eduardo me pediu um terço, para rezar nele todos os dias. Diz o Castilho que é muito fácil encontrar aí, terços muito bons e fortes.
Não me habituo a escrever com as canetas que temos aqui.
Quando acabará o Congresso? Quando pensas poder voltar? Sou eu quem te diz... deixa tanto trabalho, passeie bastante, coma bastante, mas sem exagero, vejam a catedral de Milão, que é uma beleza, e os inúmeros quadros de Florença, revejam Paris, e voltem logo, pois estou com umas saudades loucas do meu “caro”, caríssimo Filhão, de todo o meu coração!
Com muitos beijos, abraços e toda a sua bênção, de tua... “manguinha”...
Lucilia
Tal é o esquecimento de si própria que Dª Lucilia apenas se lembra de pedir um terço para o bisneto, Francisco Eduardo. Embora não o diga, talvez tenha sido ela que ensinou o menino a rezar o Rosário, explicando-lhe na sua maneira tão atraente os vários mistérios da vida de Nosso Senhor e de sua Mãe Virginal. Certa de que um objeto de piedade vindo da Cidade Eterna o incentivaria mais à devoção, pede-o a Dr. Plinio.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João Clá Dias)