sábado, 22 de setembro de 2012

Celebrando a Paixão e o Domingo de Páscoa

Entre os vários, edificantes e encantadores aspectos da personalidade de Dª Lucilia, enquanto mãe e formadora, encontramos seu modo de celebrar os dias da Paixão, assim como o de preparar e conduzir as comemorações do Domingo de Páscoa. Tudo visando ao maior bem das almas (e também dos corpos...) de seus filhos e demais crianças da família, como conta Mons João Clá Dias,EP.
A conformidade de Dª Lucilia com o espírito da Igreja a tornara exímia cumpridora das praxes religiosas. Naqueles anos de 1915-16, ainda impregnados pelo benéfico aroma do pontificado de São Pio X, a liturgia enriquecia com todo o seu sacral esplendor as solenidades católicas comemorativas dos principais mistérios da Fé. Os fiéis associavam-se a tais celebrações, quer pelo exercício das práticas e devoções recomendadas pela Igreja, quer pela assistência aos ofícios divinos. Dª Lucilia, sempre que lhe permitia sua frágil saúde, a estes piedosamente comparecia.
Porém, não se limitava a isso. Em casa, procurava criar o ambiente próprio às diversas festas do calendário litúrgico. Tal era o caso, sobretudo, do Natal, da Sexta-Feira Santa e da Páscoa.
“Vejam como Ele está chorando por vocês”
Durante a Semana Santa, não só nas igrejas mas também nos lares — como era tradição em todas as famílias católicas — cobriam-se com tecidos roxos as imagens e os crucifixos, suspendiam-se as brincadeiras das crianças, os mais velhos se abstinham de jogar, a maioria das pessoas vestia traje de luto, e todos falavam a meia voz em sinal de dor pela Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Dª Lucilia congregava as crianças em torno de si e explicava, em tom de muita gravidade, todos os Passos da Paixão, fazendo-lhes ver as funestas consequências do pecado. A fim de mover seus pequenos ouvintes à compaixão para com Nosso Senhor, mostrava-lhes piedosas gravuras e, em palavras acessíveis à compreensão infantil, dizia:
— Vejam como Ele está chorando por vocês. Está também chorando pelos outros, porque sofreu por todos...
Crucifixo que pertenceu à Senhora Dona Lucilia
Na Sexta-Feira Santa reunia os parentes que moravam em casa e, às três da tarde, organizava uma vigília de orações diante de um crucifixo herdado de seu saudoso pai.
Com antecedência e esmero, preparava a singela cerimônia. Mandava comprar a vela para pôr num bonito castiçal que ganhara de presente de casamento. A fim de fixá-la bem, ela mesma revestia o orifício com papel de seda, cujas bordas recortava em forma de flor.
Dª Lucilia dava início ao ato com uma ladainha ao Sagrado Coração de Jesus; seguia- se uma ladainha de Nossa Senhora. Depois pedia pela alma desse, daquele — não havia parente falecido por cuja alma se esquecesse de orar. Entremeava as orações vocais com intervalos nos quais rezava em silêncio, e todos permaneciam em atitude de recolhimento. Ninguém ousava sair do salão.
Tudo terminado, Dª Lucilia deixava a vela acesa diante do crucifixo exposto, até quase se extinguir. No dia seguinte, após alguma breve oração, tomava a santa imagem de nosso Redentor e a envolvia num papel de seda, guardando-a numa gaveta até o próximo ano.
Após as graves tristezas da Semana Santa vinham, a partir do meio-dia do Sábado de Aleluia, as triunfais alegrias da Ressurreição, que ela se empenhava também em transmitir às crianças. Via-se, em várias esquinas da cidade, a tradicional malhação do Judas, pela qual os meninos vingavam a traição mil vezes infame cometida contra Nosso Senhor Jesus Cristo. Já no sábado, Dª Lucilia organizava o passeio do dia seguinte, onde não faltavam as iguarias e guloseimas, tão do agrado dos pequenos, e cuja preparação ela sempre orientava.
Crucifixo diante do qual Dª Lucilia reunia-se com a família, na Sexta-Feira Santa
Domingo de Páscoa no Parque Antárctica
Parque Antárctica
Desde o nascer do sol, o dia se anunciava como um inocente e feliz domingo de Ressurreição dos idos de 1915 ou 1916. Na véspera, como era habitual todos os anos, Dª Lucilia enchia uma cesta de vime com ovos de Páscoa, bebidas e sanduíches, dado ser costume na família levar nesse dia as crianças para um piquenique.
Em determinado momento, abria-se a porta do palacete Ribeiro dos Santos e, sob o vigilante olhar das governantes, saía uma chusma de meninos que, apinhados em vários táxis, seguiam em alegre algazarra pelas ruas então tranqüilas dos Campos Elíseos. Junto, amparando com sua diligente e calma presença, ia Dª Lucilia. Em geral escolhia o Parque Antárctica para a festa ao ar livre.
Chegadas ao local, dava liberdade às crianças para irem brincar pelas diversas alamedas ajardinadas, cobertas pela sombra de imponentes árvores. Enquanto os pimpolhos se dispersavam, as governantes, sob a orientação de Dª Lucilia, escondiam em meio à vegetação apetitosos sanduíches de sardinhas portuguesas, lombo de porco, presunto e queijo, entremeados de fatias de ovos duros, além de ovos de Páscoa de chocolate ou de açúcar candy, envoltos em papéis prateados. Estes últimos ofereciam a agradável surpresa de conterem bombons. Quando tudo estava pronto, as crianças acorriam alegres à voz de Dª Lucilia, chamando-as para virem descobrir aquelas delícias.
Achegavam-se lépidas. Plinio, nada entusiasta de corridas, ficava para trás, pensando consigo mesmo: “Mamãe dará um jeito”. Enquanto os outros, com avidez, iam à busca dos tesouros culinários ocultos, e as manifestações de alegria denunciavam terem sido encontrados os primeiros petiscos, ele se voltava para Dª Lucilia (que comprazida observava toda aquela vivacidade infantil) e perguntava:
 — Como é meu bem? Onde estão as coisas?
Carinhosamente ela respondia:
— Filhão, você precisa procurar!
Pouco depois ele insistia:
— Mas, meu bem, não vejo onde estão...
Então, olhando na direção onde havia algo escondido, ela sorria dizendo:
— Filhão, veja se você encontra lá.
Confiante em que o conselho materno sempre indicava o caminho certo, ele seguia o rumo apontado pelo olhar de Dª Lucilia. Ela permanecia sentada a observá-lo. Vendo que demorava a encontrar as desejadas iguarias, levantava-se e ia para junto dele que, sempre muito enfático, novamente lhe dizia:
— Meu bem! não estou achando esses ovos! Diga-me por favor onde estão, porque não os encontro...
Ela, por sua vez, o estimulava:
— Procure, procure! Olhe um pouco ali.
Por fim, Plinio descobria algumas guloseimas, que, por sinal, eram seus manjares prediletos, escondidos especialmente para ele... Logo abraçava e beijava Dª Lucilia como expressão de filial reconhecimento. A seguir, ela lhe ordenava com afeto:
— Vá brincar, meu filho.
* * *
Por sua placidez e serenidade em meio àquela inocente alegria, Dª Lucilia ensinava às crianças a buscar a verdadeira felicidade apenas nas formas de prazer que conservam e desenvolvem o bem-estar sólido, tranquilo, ameno, sorridente. Não valia a pena sacrificá-la por nada que trouxesse perturbação, ainda quando isto pudesse oferecer alguma pseudo-alegria. Ela era incompatível com modos de ser febricitados e agitados. Concorria para isso o equilíbrio de seu temperamento, sempre reto na fruição e verdadeiro símbolo da ordem.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Tesouro de qualidades "lucilianas"

Dª Lucilia, com sua incansável solicitude materna, preparou seus filhos para corresponderem com generosidade à ação santificante da Igreja de Deus. Ela lhes ensinou a compreender e amar a fundamental importância da suavidade e da doçura no convívio humano. Quando duas ou mais pessoas têm afinidade entre si, sentem-se mutuamente atraídas por um movimento cheio de benevolência, o qual é a substância da amizade. Esta não será real e autêntica se estiverem ausentes o amor de Deus, a ternura, a afabilidade, a paciência e a compaixão.
É preciso ter conhecido Dª Lucilia para avaliar o quanto seu coração estava distante de qualquer ressentimento ou desejo de vingança. Nunca tisnou sua bela alma o mais leve movimento de alegria pelo mal ocorrido a alguém. Sua amizade, uma vez concedida, jamais era rompida, e a compaixão para com os sofredores tinha toda a amplitude aconselhada pelo Divino Salvador nos Evangelhos.
Assim, foi a suavidade uma das primeiras virtudes que Dª Lucilia, de forma modelar, procurou transmitir a quem dela se aproximava.
Outro exemplo perfeito, a se destacar no belo jardim de suas qualidades, era o da intransigência face ao mal, que se manifestava sob as mais variadas formas segundo as circunstâncias. Assim, ao corrigir os filhos por alguma falta, empenhava-se em lhes mostrar a gravidade do ato praticado, salientando o quanto aquilo ofendia a Deus, de modo a incutir-lhes um profundo horror ao pecado.
De outro lado, por sua fidelidade aos princípios católicos, rejeitava o espírito de tolerância que se ia introduzindo na mentalidade de seus contemporâneos. Razão pela qual, estando Dª Lucilia presente numa conversa, nunca deixava passar sem reparos alguma crítica à Santa Igreja ou à Religião. Este não transigir face ao mal foi outro tesouro por ela legado a seus tão queridos filhos.
Além disso, Dª Lucilia tinha o grande mérito de saber admirar os predicados do próximo, sugerindo a Rosée e a Plinio, pelo inconfundível e atraente exemplo que dava, procederem desse modo. Com freqüência, o dinamismo de seu contentamento se voltava todo para a exaltação dos talentos alheios. Em contrapartida, não se comparava com ninguém, nunca se referia a algum elogio que tivesse recebido, nem procurava chamar a atenção, mesmo que indiretamente, para alguma qualidade própria ou de seus filhos.
Equilíbrio na dor e na alegria
A reversibilidade no espírito de Dª Lucilia era uma de suas notáveis qualidades. Em meio ao inocente júbilo do Natal havia sempre nela um fundo de tristeza, pois via despontar ao longe o drama da Paixão. Em sentido oposto, ao considerar a Morte de Nosso Senhor, algo em sua alma já denotava as alegrias triunfais da Ressurreição.
Assim o verdadeiro católico deve considerar as alegrias e as vicissitudes da vida enquanto está neste vale de lágrimas. Só na eternidade encontraremos, no convívio com a Santíssima Trindade e Maria Santíssima, a felicidade inteira e completa. “Serei Eu a vossa recompensa demasiadamente grande” (Gen. 15, 1), nos promete o próprio Deus na Sagrada Escritura.
Dª Lucilia, em vista de seu precário estado de saúde, considerava como normal a possibilidade de morrer prematuramente, o que deveras a preocupava, não tanto por si mesma, mas pelo futuro dos filhos.
Certa feita, Rosée e Plinio se preparavam contentes para ir a uma das esplêndidas festas de Natal para crianças, tão comuns outrora. Ao se despedirem de Dª Lucilia — naqueles dias bastante mal de saúde — ela afetuosamente lhes disse:
— Lembrem-se: quando vocês voltarem podem não mais encontrar viva sua mãe. Entretanto, como em muitas ocasiões eu posso morrer, vocês não devem deixar de ir a festas. Por isso, vão agora também...
Qualquer educador ao estilo moderno consideraria isso uma crueldade. Contudo, as palavras dela traziam consigo resignação, serenidade e muita paz.
Seus filhos, naturalmente, ficaram muito pesarosos ante tal hipótese. Se para qualquer criança é uma tragédia perder a própria mãe, o que seria para eles perder tal mãe?
Preocupava a Plinio, sobremaneira, separar-se de Dª Lucilia. Em certa ocasião ele deparara, numa coletânea de contos infantis, com a narração da morte de um menino que era levado por seu Anjo da Guarda para o Céu. Segundo tal história ( lida por ele apenas em parte, por considerá-la demasiadamente triste), o anjo tomava a alma da criança, iam até o jardim, colhiam uma rosa e começavam a subir lentamente em direção ao Paraíso. O menino, ao passarem sobre a casa dele, via os familiares chorando sua morte. Depois, estando mais alto, contemplava o bairro onde havia morado e a igreja onde ia à Missa aos domingos com seus pais. Subindo ainda mais, tudo embaixo ia ficando pequenininho, até se perder de vista ao atravessarem as nuvens para entrar no Céu. Nesse instante a rosa branca, colhida no jardim, símbolo da inocência da criança, abria-se, e suas alvas pétalas caíam sobre a terra.
Por ocasião de uma doença, Plinio se lembraria desse conto, chegando a pensar como seria interessante morrer. Assim acabariam, de uma vez por todas, os sofrimentos da vida, doenças, estudos, e ele iria viver naquele paraíso de delícias descrito por Dª Lucilia como um lugar de perfeita felicidade, onde as pessoas podiam gozar para sempre da gloriosíssima presença de Deus, do convívio inefável de Nossa Senhora, bem como da luminosa companhia dos Anjos e dos Santos. Mas... algo o impelia em sentido inverso: Dª Lucilia iria com ele? Sem isso não conseguia imaginar um céu em que fosse verdadeiramente feliz.
“Plinio bleibt bei Mutter”
Um pequeno detalhe, contado anos mais tarde pela Fräulein Mathilde, poderá dar-nos ideia do encanto que Dª Lucilia despertava nas crianças, e muito especialmente em Plinio.
Como é natural, uma governanta precisa ter as crianças continuamente sob as vistas, evitando que saiam sozinhas à rua ou entrem indevidamente em certas dependências da casa. Muitos anos depois de ter deixado a residência dos Ribeiro dos Santos, Fräulein Mathilde comentaria que Plinio nunca lhe dera trabalho. Às vezes o perdia de vista e se perguntava: “Onde está Plinio?” Mas logo concluía: Ach! er bleibt bei Mutter (“Ah! ele está com sua mãe”). Pois, sempre que ele sumia do meio dos companheiros, era para estar com Dª Lucilia.
Quando ele brincava com as outras crianças, após algum tempo escapava para subir ao quarto de Dª Lucilia, a fim de conversar um pouco com sua mãe. Fazia-o na surdina, para não o denunciarem: “Olha! o Plinio já está indo lá!” — e assim o impedirem de sair. Mas não demorava e Fräulein Mathilde batia à porta do quarto de Dª Lucilia, dizendo:
— Plinio! Plinio! Todos os meninos estão embaixo. É hora de brincar. Vá também!
Dª Lucilia via que a governanta tinha certa razão e, para não lhe tirar a autoridade, dizia:
— Filhão, agora vá.
Ao ouvir aquele aveludado timbre de voz, ao qual era impossível resistir, todos os obstáculos desapareciam e lá se ia ele.
Mesmo quando mais crescido, frequentando já o Colégio São Luís, era comum interromper os deveres escolares de casa para procurar a companhia de sua mãe. Porém, não tardava muito para que a Fräulein o viesse chamar de novo ao dever. Dª Lucilia fazia-o então voltar aos estudos, que ele retomava consolado por fazer a vontade dela.
Quando Dª Lucilia já era nonagenária, e Dr. Plinio ia lhe fazer um pouco de companhia, ela se lembrava muitas vezes do dito em alemão da Fräulein Mathilde e dizia com saudade:
— Filhão, você veio bleiben bei Mutter?
E ele redarguia: — Pois é claro! Vim bleiben bei Mutter mesmo — e a cumulava de carinhos.
Houve, entretanto, uma ocasião em que Plinio blieb nicht bei Mutter (“não estava com sua mãe”), o que foi motivo de grande preocupação para Dª Lucilia.
O pequeno Plinio, dormindo num... parapeito
Por volta de janeiro de 1968, contava Dª Lucilia a alguém que ainda hoje mantém viva recordação de suas palavras:
“Um dia a governanta das crianças veio me procurar e perguntou pelo Plinio. Ele era ainda muito menino e ela o perdera de vista. Supunha que estivesse comigo. Não o vendo, disse-me aflita:
“— Estava certa de que ele se achava junto à senhora, como sempre acontece quando escapa dos brinquedos!
“— Vamos então procurá-lo — respondi. A senhora o procura na parte superior da casa, eu verifico se ele está embaixo.
“Como não o encontrássemos, invertemos os andares e a Fräulein passou a procurá- lo no térreo enquanto eu verificava se ele estaria no andar superior. Só então, ao passar por uma sala que dava para um terraço alto, vi o Plinio, deitadinho sobre o parapeito, dormindo tranqüilamente. De imediato dei-me conta do perigo que ele corria, pois qualquer movimento brusco poderia fazê-lo cair.
“Chamei duas criadas mais fortes, dizendo-lhes que dobrassem em dois um cobertor e o segurassem firmemente no jardim da casa, embaixo, junto à mureta onde ele dormia, a fim de apará-lo numa eventual queda. Ao verificar haverem elas chegado ao local, dirigi-me com a governanta à varanda, prestando atenção para não provocar nenhum ruído que bruscamente o acordasse. Aproximando-nos da mureta, subi numa cadeira, passei cuidadosamente os braços em torno do corpo dele, e chamei-o pelo nome:
“— Plinio, meu filho!...
“Ele acordou, e virando-se para mim, respondeu:
“— O que é mamãe?
“Imediatamente o tomei nos braços e, ajudada pela governanta, o desci do parapeito. Estando com ele no colo, já na sala de jantar, eu lhe disse:
“— Meu filho, você tem tanto lugar aqui para descansar, tem sua cama, o sofá de sua mãe, você tem essas poltronas, por que você quis dormir num lugar tão perigoso?
“Ainda alheio ao risco que correra e um pouco surpreso com minha preocupação, respondeu com muita candura:
“— Ah, mamãe, eu subi ali para contemplar o panorama e, quando estava lá, tive sono e adormeci...
“— Filhinho, você vai me prometer nunca mais repetir isso.
“Ao que ele prontamente e de bom grado aquiesceu.” Sempre atendendo às perguntas de seu interlocutor, à simples questão se seu filho lhe dera alguma séria preocupação durante a vida, Dª Lucilia, aos 92 anos, dando colorido às palavras por meio de indescritíveis e pequenos gestos, comprazia-se em repetir esta narração...
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

domingo, 9 de setembro de 2012

BENQUERENÇA COROADA PELA FÉ CATÓLICA

Em nosso post nos foi dado considerar como Dª Lucilia, em relação às diversas necessidades de seus filhos — máxime quando se achavam enfermos — desdobrava-se em zeloso carinho e notável abnegação. Tais qualidades se mostravam heróicas durante as doenças e indisposições que ela mesma sofria. O episódio a seguir servirá de exemplo.
Querer bem, até o fim!
Certa ocasião, tendo ido a um dentista cujo consultório ficava num desses prédios antigos, sem elevador, Dª Lucilia, ao descer a escada, pisou em falso e escorregou. Para evitar a queda, agarrou-se ao corrimão, num movimento forçado, deslocando um dos braços à altura do ombro.
A dor agudíssima, provocada pelo acidente, quase a fez perder os sentidos. Os circunstantes socorreram-na imediatamente, levando-a a um médico. Entretanto, passada a ação do clorofórmio com que a tinham adormecido, voltaram as dores pro duzidas pela distensão de ligamentos, acrescidas do forte incômodo próprio ao efeito do anestésico. Tornou-se por isso necessário transportá-la de ambulância para casa, onde já tudo estava preparado para recebê-la.
Tratava-se agora de avisar convenientemente as crianças, para não se impressionarem muito. Bem podemos calcular a aflição que delas se apoderou, ao saberem haver Dª Lucilia sofrido um sério acidente. Talvez alguma delas, ignorando o alcance do acontecimento, até pensasse que sua mãe iria morrer. Impressão certamente reforçada ao vêla chegar numa padiola, gemendo e pálida como um cadáver. As crianças aproximaram-se da porta do quarto, cheias de espanto, para ver como ela estava passando. No entanto, os mais velhos da família impediram-nas de entrar, a fim de não atrapalharem, involuntariamente, a acomodação de Dª Lucilia na cama, o que não se fez sem muito sofrimento para ela.
Quando se encontrava perfeitamente instalada, chamaram os filhos, recomendando- lhes não fazer barulho nem tocar no braço acidentado.
No aposento da mãe, apenas iluminado por uma fraca luz, os pequenos ficaram vivamente impressionados ao verem Dª Lucilia prostrada na cama, gemendo baixinho, com o braço todo enfaixado. Era algo de terrível para eles, pois nunca tinham visto alguém naquela situação. Ela, imersa em dor, não os vira entrar e continuava de olhos cerrados. Plinio, com a alma cortada de angústia, dela se aproximou, pé ante pé, e sem dizer palavra deu-lhe um beijo. Dª Lucilia não abriu sequer os olhos, mas percebeu de quem se tratava e perguntou quase num sussurro:
— Meu filho, é você?
Ao que ele respondeu, mais sossegado, ouvindo a voz de sua querida mãe:
— Mãezinha, sou eu.
Dª Lucilia, então, do fundo de seu lancinante padecimento, lembrou-se de que Plinio precisava de certos cuidados e, num extremo de abnegação vinda do mais íntimo da alma, lhe perguntou:
— Meu filho, você está tomando o remédio para seu defluxo, direitinho?
É natural que seus filhos, percebendo na mãe tanto esquecimento de si, tenham-se afeiçoado a ela ainda mais. Ao sair do quarto, ficara-lhes para sempre gravada no espírito a lição desse belo gesto. Querer bem até o fim é isto!

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

domingo, 2 de setembro de 2012

Perfeita harmonia de carinho e vigilância

Em nosso último artigo pudemos conhecer algo do extremo desvelo de Dª Lucilia na educação de seus filhos. Seja no tocante à alimentação ou aos trajes, seja no referente às boas maneiras ou ao apreço pelos valores familiares, procurava ela nada negligenciar para que seus pequenos tivessem a melhor formação possível.
Ao lado de tamanha solicitude, Dª Lucilia compreendia também ser obrigação de uma verdadeira mãe de com uma doçura de alma que lecatólica vigiar, aconselhar e corrigir vava seus filhos a aceitar com amor pessoalmente os filhos.
“Tenho saudades dos pitos de mamãe”
Sempre que a governanta, a Fräulein Mathilde, ou outra pessoa dava conta de alguma travessura praticada pelas crianças, Dª Lucilia mandava o copeiro ou uma criada chamar o infrator. Este, localizado sem demora pelo empregado, recebia o aviso.
A consciência pesada pela falta cometida já lhe fazia entrever o motivo da convocatória, assaltando-o logo um certo estremecimento de aflição por não encontrar nenhuma atenuante para o ato praticado.
Dª Lucilia, intransigente no exigir o cumprimento do dever, sabia entretanto temperar essa nobre virtude com uma doçura de alma que levava seus filhos a aceitar com amor as obrigações que ela lhes impunha.
Como sofria muito do fígado e necessitava de bastante repouso, passava boa parte do tempo em seu quarto, numa chaise longue, com as venezianas encostadas, o que dava ao ambiente um recolhimento muito afim com a alma dela.
Era ali que a criança a encontrava. Introduzida nessa corte de justiça ao mesmo tempo grave e amena, sentia-se conquistada pela benquerença de Dª Lucilia, dissipando-se-lhe todas as anteriores turbações, ao contemplar a fisionomia pensativa de sua mãe. Dª Lucilia a chamava a si, deixando transparecer na voz um misto de tristeza, gravidade e afeto.
Quando o filho, por exemplo, se aproximava receoso do merecido castigo, era logo tomado pelo encanto do trato materno. Frequentemente ela lhe passava o braço ao redor da cintura, fitava-o bem no fundo dos olhos, incentivando de modo irresistível o pequeno e querido réu a confessar sua culpa, e perguntava:
— Você fez tal coisa?
 — Fiz, sim, senhora — respondia ele, um pouco contrafeito.
— Eu não lhe disse que não deveria fazer? — continuava ela, serenamente, num tom de suave censura.
— Disse, sim, senhora.
A cada pergunta o menino ia ficando mais tímido, acabrunhado pelo desgosto de haver contrariado tão bondosa mãe.
— Então como é que você fez isto? — insistia ela mais um pouco.
— Eu tinha vontade... — tentava ele explicar, convicto de que não atenuaria sua culpa.
Dª Lucilia desfiava em seguida as agravantes do delito, deixando porém entrever uma solução jeitosa para o caso:
— Mas você não tinha o direito de fazer isto. Não era melhor ter procurado sua mãe e dizer: “Mamãe, eu desobedeci, perdão”? Eu lhe daria uma bênção e, depois de um beijo, estaria tudo resolvido.
Quando ela percebia terem suas palavras vencido todas as resistências, induzindo o filho a um proporcionado arrependimento, concluía:
— Está bem, agora você me promete não fazer mais isto?
Ao que ele respondia “sim”, já inteiramente persuadido.
Chegara a hora da misericórdia. Dª Lucilia mudava então de atitude e perguntava:
— Está bem, então você pede perdão a mamãe?
Formulado o pedido, ela passava da repreensão severa — nunca irritada — para um transbordamento de afeto. Entrava uma tal harmonia e entendimento recíproco que Plinio sempre saía inundado de admiração e de contentamento, de tal maneira que, passados muitos anos da morte dela, afirmaria:
“Ainda tenho saudades dos pitos de mamãe!”
De tal modo transparecia no proceder de Dª Lucilia o amor materno que, mesmo em circunstâncias nas quais fulgurava a inflexibilidade, era impossível aos filhos não saírem encantados com ela, quase tendo vontade de lhe pedir outro castigo...
Nas doenças, tempero de dor e de alegria
No harmônico conjunto de suas virtudes, Dª Lucilia passava de um extremo a outro, sem a menor dificuldade. Bastava que algum de seus filhos adoecesse para brilhar de modo especial sua benignidade, que se convertia em cuidados e inimagináveis desvelos.
Nas enfermidades, a preocupação de Dª Lucilia era serena mas vigilante. Dava preferência à homeopatia, cuja suave ação bem se adequava a seu modo de ser. Quando necessário, tanto para socorrer-se em seus achaques, quanto para solucionar os pequenos incômodos de seus filhos, consultava um excelente médico homeopata, no qual tinha muita confiança, o Dr. Murtinho Nobre, que atendia também Dª Gabriela e outros familiares. Era raro irem a seu consultório, chamando-o normalmente a casa.
Habitualmente, ao receber os remédios receitados por Dr. Murtinho às crianças, Dª Lucilia escrevia os nomes em pequenas folhas de papel; depois, noutra, anotava as horas em que o doentezinho devia tomá-los. Queria ter a certeza de não se esquecer de nenhuma dose. Nas horas devidas, entrava sorrindo no quarto, trazendo na mão os vidrinhos. Rosée ou Plinio — conforme o caso — já se sentiam reconfortados só por vê-la chegar tão afável, comunicativa, carregada de promessas de que o remédio curaria, e extremamente carinhosa no modo de ministrá-lo.
Nessas horas era tão bondosa com as crianças, que muitas vezes os familiares gracejavam:
— Lucilia trata tão bem seus filhos quando estão doentes, que eles não ficam com vontade de sarar...
Ela sabia aliar também, a esse tocante procedimento, um outro auxílio: a exigência no cumprimento dos preceitos médicos.
Em determinados momentos do dia entrava com o termômetro, a fim de medir a temperatura do juveníssimo doente. Por mais que este afirmasse já estar bom, para poder sair da cama, Dª Lucilia lhe colocava a pequena haste de vidro sob o braço e, depois de escassos minutos contados no relógio — que pareciam uma eternidade ao pequeno enfermo — recolhia o instrumento e se aproximava da janela a fim de vêlo melhor. Chegava o instante de o menino ouvir dos lábios maternos o veredicto, que não raramente era de condenação: a terrível colunazinha de mercúrio subira até 38º ou mais. Impacientava-se ele, por vezes, e Dª Lucilia, com todo o afeto, tentava acalmá-lo, explicando as razões pelas quais teria de ficar mais tempo na cama. Quando ela saía do quarto, o ânimo da criança estava de novo serenado.
Dª Lucilia notava que sobretudo Plinio se enfadava muito com essa rotina. “Se ela não medisse tantas vezes a febre, esta não subiria assim...”, pensava o menino. Para evitar-lhe esse pequeno sofrimento, sua mãe se restringia, em algumas ocasiões, a pôr sua refrescante mão na testa dele. Ao menos não teria a desagradável sensação de que o termômetro prolongava a doença. E se nem por isso baixava a febre, algo que nele antes fervia se apaziguava. Esse efeito se acentuava quando, num tom de voz próprio a inspirar confiança, sua mãe lhe recomendava um tanto mais de paciência, pois o pouquinho de temperatura febril acabaria por descer.
Ao desaparecerem os sintomas da doença, Dª Lucilia também não exagerava a alegria, limitando-se a dizer:
— Bom, meu filho, então você pode se levantar.
Ajudava a criança a sair alegremente da cama, mas sem manifestar demasiado contentamento, pelo receio de que os excessos pudessem levá-la a imprudências. Constituía esse mais um procedimento no qual o equilíbrio entre dor e alegria era dosado com sabedoria e incutido na alma dos filhos de forma didática.
*
À chegada do inverno, a fim de prevenir as enfermidades trazidas pela estação, multiplicava Dª Lucilia os cuidados maternos; ora enriquecia ainda mais a alimentação de seus filhos, ora vigiava para que estivessem bem agasalhados, ou evitar que saíssem de casa sob a garoa.
Sempre envoltas em benquerença, essas providências se tornavam de fácil cumprimento, mesmo quando incômodas para as crianças. Tal era o caso do repulsivo óleo de fígado de bacalhau, muito famoso naquele tempo, tanto por sua eficácia tonificante quanto por seu desagradável sabor. Para tornar menos penoso o uso do fortificante, Dª Lucilia o fazia acompanhar sempre de um gole de vinho francês ou português. E se durante certo tempo Rosée e Plinio o bebessem com docilidade, a recompensa nunca faltaria. Dª Lucilia os levava a uma grande casa de brinquedos onde podiam escolher o que quisessem.
Pequenos ferimentos, comuns na infância, recebiam da parte dela os necessários ungüentos, acompanhados de suaves bálsamos para a alma. Guardava previdentemente numa caixinha o material para essas circunstâncias. Sempre que algum filho acorria aflito em busca de auxílio e remédio para as diminutas consequências de algum tombo, ela, utilizando com delicadeza e habilidade tesourinha, gaze e pomada, fazia logo o curativo. O simples modo de prepará-lo já era motivo de encanto e alívio. Todavia, dessa singela operação, o que certamente mais reconfortava a criança era, no fim, um carinhoso beijo, acompanhado das palavras:
— Filhinho, agora vá brincar...
Plinio à beira da morte
Certa manhã, Plinio, tendo despertado antes mesmo de a Fräulein entrar em seu quarto, sentiu faltarem-lhe as forças. Deixou-se então cair para trás sobre os travesseiros e chamou Dª Lucilia. Notando algo de anormal, acorreu ela imediatamente. Abraçou seu filho com carinho, beijou-o e indagou com ternura o que se passava. O rosto do menino, afogueado, denunciava febre alta. Plinio também se queixava de estar sentindo dor na garganta.
Após o ter acomodado bem na cama, Dª Lucilia telefonou ao Dr. Murtinho. Este não tardou em comparecer ao palacete Ribeiro dos Santos. Depois de examinar a criança, fez um diagnóstico bem mais grave que das vezes anteriores: crupe. E após receitar a medicação conveniente se retirou.
Não havia chegado ainda a era dos antibióticos. A terrível moléstia podia levar o paciente à morte por sufocação, em virtude de uma membrana que se formava na garganta. Para evitar isto, não raras vezes se fazia necessária uma intervenção cirúrgica, perspectiva que preocupava enormemente Dª Lucilia. Antes de ela aplicar o tratamento indicado por Dr. Murtinho, alguns familiares, adeptos da medicina alopática, recomendaram-lhe mandar logo operar o menino.
Plinio, entrementes, começou a piorar e Dª Lucilia resolveu telefonar ao Dr. Murtinho. Este a tranqüilizou, dizendo-lhe que fizesse seu filho tomar o remédio receitado. Advertiu que por volta das três horas da tarde daquele dia, se tudo corresse normalmente, o menino expeliria a membrana formada em sua garganta. Ela deveria deixar um pano sobre a cama dele, a fim de a recolher e enterrar no quintal, ato contínuo, pois era matéria altamente contagiosa.
Dª Lucilia começou a tomar as providências recomendadas. Mandou Madalena, uma das criadas, abrir um pequeno buraco no fundo do jardim e deixou um pano preparado. Uma vez tudo pronto, sentou-se à cabeceira da cama de seu filho e começou a rezar, pois Plinio, abatido pelos incômodos da doença, mal tinha ânimo para abrir os olhos. Embora ele não conseguisse conversar com sua bondosa mãe, a presença dela lhe era um suave refrigério para os ardores da febre e para o terrível mal-estar. À medida que o tempo passava, Plinio sentia as forças o abandonarem, o que lhe aumentava a aflição. Contudo Dª Lucilia o ia consolando com palavras de inefável doçura, e assim se aproximava a hora indicada pelo médico.
Tendo aberto cuidadosamente o pano sobre os lençóis, esperou pelo momento previsto, com sua habitual serenidade. Cerca das três horas, tudo se realizou como Dr. Murtinho dissera. Após certificar-se ter sido convenientemente enterrado o pano com a fatídica membrana, Dª Lucilia telefonou para o médico a fim de lhe dar a boa notícia e pedir novas instruções. Este a interrompeu, antes mesmo de ela dizer algo sobre o ocorrido:
— Dª Lucilia, pelo tom de voz da senhora, vejo que o Plinio já está bem. Nem precisa dizer-me o que aconteceu. Agora ele só precisa descansar bastante para se recuperar do abalo sofrido.
Dª Lucilia agradeceu muito a Dr. Murtinho, desligou o telefone e voltou para junto de seu filho, que reclamava insistentemente sua presença. Ao entrar no quarto, ela estava radiante, luminosa de contentamento por sabê-lo fora de perigo. Abraçou-o e beijou, explicando-lhe haver tudo já passado. A grande alegria que inundava o olhar de Dª Lucilia foi para ele o melhor argumento. Sossegado ao ver que sua mãe não mais estava preocupada, deixou-se embalar pelas doces palavras dela, dormindo tranqüilo o resto da tarde.
Nos dias seguintes, Dª Lucilia passou boa parte do tempo junto de seu filho. Procurava entretê-lo, servindo-se, como de costume, de sua inigualável arte de contar histórias. E envolto assim no carinho dela, correram rapidamente os dias de convalescença.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)