terça-feira, 6 de novembro de 2012

Senhorio constituído de bondade e afeto

Como nos foi dado apreciar no último post, Dª Lucilia, inteiramente segura de si, não acompanhava as aflições, o espírito competitivo e os sustos não raros entre as senhoras e moças de seu tempo, influenciadas pela onda hollywoodiana. Veremos hoje como ela — com fino senso psicológico e solicitude materna — preservou desse mal seus filhos.
O que restava de pomposo no teor de vida de então ainda exigia o comparecimento a bailes em elegantes e distintos trajes, inspirados em geral nos modelos franceses. Revistas de Paris, assinadas pelas senhoras da alta sociedade paulista, traziam fotografias das mais recentes e finas toilettes femininas. Qual devia ser a cor da seda do vestido para se harmonizar com certo penteado; como devia ser a combinação do chapéu com os sapatos e a bolsa; que jóias estavam mais adequadas a determinado traje, tudo era meticulosamente analisado e discutido pelas leitoras, tendo em vista as reuniões sociais. Com frequência as senhoras mandavam executar seus projetos numa grande casa especializada, La Saison, muito bem decorada ao gosto francês. A proprietária, Mme. Françoise, brasileiramente chamada de Dona Francisquinha, ou suas auxiliares, costumavam ir às casas das clientes para levar amostras de tecidos, tirar as medidas e fazer as provas.
Dª Lucilia, sem fugir à regra, igualmente se esmerava em compor e desenhar seus vestidos, comprar o tecido e exigir a perfeita confecção de seus trajes. Participava também das animadas conversas sobre tais temas. No entanto, nunca se deixava tomar pela agitação por elas suscitada.
Quando chegava o dia de alguma festa, uma expectativa ardente tomava a maior parte das senhoras. Dª Lucilia estava preparada com tanto apuro quanto as outras. Certa de seu bom gosto, mas sem a menor pretensão, denotava aquela tranquilidade e serenidade que nunca a abandonavam.
Afirmando-se desse modo, mantinha-se fiel à antiga placidez paulista, em meio a um mundo que ia aderindo cada vez mais à agitação da vida moderna.
Fidelidade, mesmo ao preço do isolamento
A admirável coerência de Dª Lucilia custou-lhe, no entanto, um terrível tributo, que ela suportou com a firme resignação própria a uma alma católica: o isolamento.
À medida que a nova mentalidade se foi difundindo por toda a parte, os que permaneciam fiéis às tradições e ao modo de ser do passado iam sendo postos de lado, caindo sobre eles a dura pena do ostracismo. Suas conversas, outrora apreciadas como atraentes, já não mais interessavam. Suas atitudes cerimoniosas não condiziam com os padrões ditos modernos. Só o engraçado, o excitante, o espontâneo tinham direito de cidadania.
Foi quando esses ventos de mudança sopravam mais fortes que Dª Lucilia viu seus filhos irem atingindo a adolescência, fase tão delicada na vida de uma pessoa, na qual tudo se pode ganhar ou perder. Para Rosée, já com doze anos, havia ainda a vantagem de ser educada no ambiente doméstico. Quanto a Plinio, pelo contrário, aproximava-se inevitavelmente o dia em que teria de frequentar algum colégio. Tendo recebido elevada educação, era necessário que enfrentasse agora a luta contra o respeito humano. Auxílio do Céu nunca lhe faltaria, nem as fervorosas orações de sua mãe.
No entanto, quantas apreensões sofreu o coração de Dª Lucilia!
Preferia vê-lo morto a vê-lo extraviado
Os temores de Dª Lucilia se manifestavam sobretudo no tocante aos rumos que, fazendo bom ou mau uso do livre arbítrio, seus filhos tomariam na vida. O papel dela cada vez mais se limitava, à medida que eles cresciam, a estimular os lados bons da personalidade de cada um, assim como suscitar neles ódio ao mal. Por isso, algumas vezes repetia a Plinio:
— Meu filho, os tempos são muito ruins e você ainda é muito moço. Ninguém pode ter ideia do que é capaz uma pessoa quando se extravia. É bom que você saiba que eu preferiria vê-lo morto a vê-lo extraviado.
Palavras carregadas de gravidade, que demonstram como os extremos de bondade e afeto pelos filhos, em Dª Lucilia, eram inteiramente movidos pelo amor de Deus, a ponto de ela preferir o sacrifício da vida terrena deles a vê-los perder a eterna.
Um senhorio de afeto
Ouçamos uma palavra de quem tanto se beneficiou da preciosa solicitude materna de Dª Lucilia. A propósito do exercício da autoridade dela, diz Dr. Plinio:
“Havia um aspecto em mamãe que eu apreciava muito: o tempo inteiro, e até o fundo da alma, ela era senhora! Em relação aos filhos, guardava uma superioridade materna que me fazia sentir o quanto eu andaria mal, caso transgredisse a autoridade dela, e como semelhante atitude, de minha parte, lhe causaria tristeza, por ser ao mesmo tempo uma brutalidade e um malefício.
“Senhora, ela o era, pois fazia prevalecer a boa ordem em todos os domínios da vida.
“Sua autoridade era amena. Às vezes mamãe castigava um pouco. Mas mesmo em seu castigo, ou em sua repreensão, a suavidade era tão saliente que confortava a pessoa.
“Com minha irmã Rosée o procedimento era análogo, embora mais delicado, por se tratar de menina. A reprimenda, entretanto, não excluía a benevolência, e mamãe estava sempre aberta a ouvir a justificação que seus filhos lhe quisessem dar.
“Assim, a bondade constituía a essência do senhorio dela. Ou seja, era uma superioridade exercida por amor à ordem hierárquica das coisas, mas desinteressada e afetuosa em relação àquele sobre quem se aplicava.”
Essa retidão de alma, que é a verdadeira bondade, cada vez menos era compreendida num mundo propenso a acabar com a incômoda distinção entre bem e mal.
Porém, Dª Lucilia, fiel ao espírito da Igreja, continuava a formar seus filhos nos mesmos princípios perenes, resistindo aos vagalhões de mudança que agitavam a sociedade.
Cons. João Alfredo Corrêa de Oliveira
O papel dos antepassados
Já pudemos comprovar que um dos traços mais característicos da educação dada por Dª Lucilia consistia em transmitir lições morais através de contos ou histórias1. Método cheio de sabedoria, utilizado pelo próprio Homem-Deus em suas pregações, constituindo as parábolas algumas das páginas mais belas e ricas dos Evangelhos, por seus divinos ensinamentos envoltos em poesia sem igual.
Dª Lucilia não era grande leitora de livros de história. Tinha noções gerais, como habitualmente as senhoras do tempo. Entretanto, possuía privilegiada memória, além de um dom extraordinário para transmitir seus sentimentos a respeito dos fatos, dando a entender, através de pormenores matizados, qual o fundo de seu pensamento. Usando vocabulário de dona-de-casa, com muita clareza, harmonia e correção, e sem se ater a precisões de caráter filosófico ou teológico, considerava os acontecimentos com aquele espírito católico que recebera pela tradição e enriquecera por sua piedade.
De outro lado, possuía uma dimensão histórica do pensamento, concernente ao pequeno mundo de sua família. Formara assim uma teoria da vida, baseada na história de seus próprios ancestrais, que ela deveras admirava. Pela recordação do passado, ilustrava o presente, enunciando com subtileza o que este último tinha de rejeitável e o que o primeiro tinha de louvável.
Costumava contar inúmeros fatos da vida de seu pai, a quem considerava o arquétipo do homem perfeito, bem como da vida de parentes ou de pessoas da sociedade de São Paulo que ela conhecera mais de perto.
Ao longo das narrativas, acentuava certos pontos que serviam de lição para os filhos e depois acrescentava:
— Vocês prestem atenção em como se deve ser. Uma pessoa deve agir assim, olhem o que sucedeu com tio tal, ou com a prima tal.
Ela insistia em especial sobre determinados procedimentos, como por exemplo, o de se empenhar em ser uma pessoa muito respeitável.
Dª Lucilia fazia uma alta ideia do papel que tinham, na vida de uma pessoa, os antepassados e o nome da família. Achava que este último devia ser usado como um estandarte, tal como um soldado porta sua bandeira em combate. É uma honra carregá-la e seria uma desonra deixá-la cair, por preguiça ou por medo, nas mãos do adversário. Assim, para quem descende de ancestrais dignos de nota, constituiria um desdouro não estar na mesma altura moral dos mais destacados dentre eles.
Falando quase só do bem, incutia aversão ao mal
Em suas narrativas, Dª Lucilia tinha muito em vista ensinar o desapego. Se fosse necessário sacrificar a posição social ou a fortuna, a fim de inteiramente cumprir o dever, ela o faria, e salientava ser esta a única atitude cabível nessa circunstância. A vida não é feita para o prazer, mas para carregar aos ombros, de bom grado, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, princípio amado e posto em prática por ela em sua existência diária, não só por sua resignação, como também por sua postura decidida face às adversidades. Ao contar algum fato acontecido com outrem, participava da alegria ou das dores das pessoas envolvidas, virtude esta própria a alimentar seu gosto em descrever pequenos episódios da vida real.
Estimulava sempre os filhos a almejarem a honra e adquirirem respeitabilidade através de suas virtudes pessoais, sem se tornarem ambiciosos nem ávidos de dinheiro.
Ela falava quase exclusivamente do bem, da verdade e do belo; dir-se-ia que não via a realidade senão através desses prismas. Entretanto, quando lhe cumpria censurar algo de mau, era difícil encontrar alguém que a excedesse no desempenho dessa obrigação. Por seu senso de justiça, a par do louvor aos méritos alheios, também a reprovação ao mal nunca lhe faltava nos lábios.
A fim de incutir em seus filhos horror ao vício, descrevia o ocorrido com pessoas conhecidas de outrora, ressaltando as tristes consequências das paixões desenfreadas, de modo a fazer transparecer o quanto havia nestas de censurável.
Um marido roubado
Um desses fatos da São Paulo antiga passou-se com um de seus parentes, de bela aparência mas bem pouco inteligente. Conseguiu ele, no entanto, ser nomeado para o cargo de juiz de direito numa comarca vizinha à da Capital, provavelmente por efeito de relações sociais. Porém, não tendo capacidade para julgar qualquer causa cuja complexidade fosse tão-só um pouco maior que a normal, levava, no lugar, a vida apagada dos nulos. O pior nele, porém, não era a falta de dotes intelectuais, mas a preguiça. Não fazia esforço algum para melhorar sua própria situação.
Havia na localidade uma viúva muito rica que, pela mera razão dos dotes físicos do jovem, queria casar-se com ele. Mas este, como não gostasse dela, não queria aceitar a proposta de modo nenhum. Percebendo a senhora quanto ele era mole e sem personalidade, mandou uns capangas invadirem seu quarto à noite e raptá-lo, como quem roubava antigamente uma moça. E ele não opôs resistência...
Quando chegou à casa dela, encontrou-a furiosa, resolvida a casar-se com ele a todo custo. Como para resistir era preciso esforço... então se casou!
O modo sério de Dª Lucilia contar a história, bem como sua rejeição a tanta pusilanimidade, dispensavam o emprego de adjetivos para tornar reprováveis, aos olhos de seus filhos, a preguiça e a moleza desse homem.
Repudiar quase instintivamente esses vícios era a reação mais salutar que ela despertava em seus jovens ouvintes, predispondo-os desse modo às enérgicas e sábias atitudes que deveriam tomar perante as inúmeras vicissitudes desta vida.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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