quarta-feira, 27 de março de 2013

Inocência e maturidade


Dona Lucilia  sabia,  como  poucos, entreter uma criança.  Formada  segundo  padrões dos antigos tempos, ela conhecia o meio de preservar a candura na alma dos pequenos, não porém  mantendo-os  na  infantilidade,  mas  educando-os  numa  inocência  amadurecedora.

A vida dos adultos apresentada com elevação de vistas

Como ela procedia?

Falava  às  crianças  sobre  a  maneira de os adultos conduzirem sua  existência, suas inclinações, as lutas,  os  dramas  que  enfrentavam,  etc.,  apresentando  tudo  com  uma  tão  alta  elevação  de  horizontes,  com tanto ideal e tanta seriedade,  que incutia no espírito da criança  os necessários elementos para que  ela maturasse.

Eu mesmo, filho dela, sentia bem  como esse modo de proceder era o  que deveria ser adotado, e desfrutava um entretenimento único nos fatos e histórias descritos por mamãe,  porque tudo — até os contos de fada que nos narrava — era orientado  na direção do nosso amadurecimento. Acontecia-me de vez ou outra escapar dos brinquedos com minha irmã e meus primos e ir procurá-la pela casa, a fim de pedir que me desfiasse um de seus contos. Ela ficava muito comprazida com minha solicitação, e eu, super-comprazido com  seu acolhimento.

Cumpre dizer que essa forma de nos educar me preparou para o choque inevitável que um menino, saído de seu ambiente familiar — sobretudo se católico e semeado de valores morais como era o meu —, teria com o mundo. Eu caminhava para esse confronto com os olhos postos naqueles ideais que mamãe soubera nutrir em minha alma, e para os  quais eu deveria tender.

Uma inocência unida à seriedade

É preciso dizer, também, que a seriedade fazia parte dessa inocência, ao mesmo tempo manifestada e amparada  por  mamãe.  Considerando fotografias de Dª Lucilia ainda moça,  por  exemplo,  percebe-se  como  ela era séria em toda a medida e elevação possíveis e convenientes à sua  idade. Essa atitude decorria de uma escola de alma que ensinava como  prolongar a inocência dentro da maturidade, fazendo-nos compreender  como a inocência não é apenas um  estado  de  espírito  de  uma  criança,  mas um programa de vida que, em  última análise, leva o homem a cumprir o primeiro mandamento da Lei  de Deus.

Fantasias de Carnaval que estimulavam a inocência

É interessante notar que os dias de Carnaval ofereciam a mamãe uma oportunidade especial de estimular em nós a inocência. Todas as crianças da família se fantasiavam, vestidas pelos  pais. E eu me deixava trajar como Dª  Lucilia quisesse, pois a vontade dela  era indiscutível para mim. Agora, um detalhe: as fantasias que ela arranjava sempre tendiam ao sério, ao contrário  de outras que exploravam o burlesco,  impelindo a criança a tomar atitudes  descompostas e apalhaçadas.

Lembro-me de certo ano em que ela, nas suas delicadas concepções,  planejou para mim uma fantasia de  marajá.  Ignorando as características do personagem que eu iria adotar, logo quis saber do que se tratava, e mamãe então me descreveu as belezas da Índia, com seus lindos palácios, suas riquezas e mistérios.

— Você, portanto, vai se fantasiar de marajá! — disse-me ela, num tom  que era um convite longínquo para a  criança encarnar e viver o papel de  soberano hindu por alguns dias.

Recordo que minha fantasia comportava um turbante feito de várias sedas, ornado de uma bonita aigrette que acompanhava os meneios da cabeça  e  me  dava  a  impressão  de  uma  espécie  de  sismógrafo  muito  nobre da alma humana. Além disso, era presa ao turbante por uma grande pedra “preciosa”, e esse pormenor de uma “ joia” incrustada na testa, da qual se desprendia uma elegante pluma, parecia mais ou menos a profundidade do pensamento  da qual se destacava uma construção alígera...

O  resto  da  roupa  era  igualmente de seda, guarnecida de jóias falsas,  anéis,  colares,  etc.  Os  sapatos,  com as pontas voltadas para cima e  revestidos de cetim lilás, pareceram-me  particularmente  graciosos,  pois  achei muito feliz a ideia de calçados que  se  erguiam  da  vulgaridade  do  chão, como se o seu usuário dissesse: “Eu toco no solo, mas o melhor  de mim mesmo se faz alheio à poeira. Por isso viro a ponta para cima.”

Assim como com as fantasias de outros Carnavais, essa do marajá era preparada no clima criado por Dª Lucilia, falando-me com seriedade acerca do personagem que eu iria representar, e imaginando uma vestimenta que, conforme os padrões e as posses dela, deveria ficar seriamente bonita. Quer dizer, com inocência e seriedade, ela tinha empenho em que eu me apresentasse bem.   

Plinio Correa de Oliveira Extraído de conferência em 12/6/1982

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