sábado, 9 de novembro de 2013

Suavizante bondade

Entre os edificantes aspectos da pessoa de sua mãe, Dr. Plinio apreciava a elevada clave de espírito em que ela se situava e da qual provinham seu afeto e sua benevolência, tão atraentes quanto consoladores. Na verdade, Dona Lucilia procurava, habitualmente, considerar todas as coisas em função do parâmetro absoluto que é Deus.
Quando menino de 2 ou 3 anos acordava durante a noite e saía do meu berço — colocado ao lado da cama de Dona Lucilia — para ir me sentar sobre o peito de mamãe. Abria seus olhos com a mão e começava a analisá-la.
Líquidos de sabores semelhantes em taças distintas
Creio que, instintivamente, conforme os rudimentares anseios de uma criança nessa idade, eu percebia através do modo como ela então me tratava, a expressão de uma bondade superior, arquetípica, cuja manifestação me apareceria mais tarde, quando me fosse dado compreender a misericórdia do Sagrado Coração de Jesus para conosco.
Essa afinidade entre a bondade e a compaixão infinitas d’Ele com as de mamãe sempre me chamou a atenção. Aos olhos de menino, essa consonância poderia ser comparada a duas taças a mim oferecidas, com líquidos cujos sabores me pareceriam análogos. Eu tomaria de uma e me deliciaria com seu conteúdo; pouco depois, beberia da outra, e igualmente me sentiria agradado, sem chegar à conclusão de que era o mesmo líquido.
Claro está, devem-se guardar as proporções entre o finito e o infinito. Assim, ao conhecer o Sagrado Coração de Jesus, discerni n’Ele o perfeitíssimo a perder de vista, sem nenhuma ressalva ou restrição, o suprassumo do que se podia conceber em matéria de misericórdia e bondade. Entretanto, afim com a bondade de mamãe, embora incomparavelmente menor, como se Ele vivesse nela. De sorte que o maravilhamento causado em mim por Dona Lucilia, de modo mais circunscrito, era do mesmo gênero que o superior encanto produzido pelo Coração de Jesus na minha alma. Aquele era derivação deste. E quando, anos mais tarde, cheguei à conclusão de que eram coisas afins, não tomei essa definição como uma conquista nem como uma surpresa, e sim como uma constatação natural do que eu sempre sentira. Eram taças com líquidos parecidos.
Em qualquer parte do mundo ela me atrairia!”
Parece-me interessante notar que as descrições feitas por pessoas que conheceram mamãe, correspondem minuciosamente à essa impressão que ela me causava. E corroboram em mim a certeza de que, em qualquer parte do mundo onde nos encontrássemos, eu seria atraído por Dona Lucilia.
Diversas vezes, durante o nosso longo convívio, me pus este problema: qual seria o teor deste relacionamento, caso eu não fosse filho dela, mas sobrinho? E concluía que só não seria idêntico pela razão de não estarmos continuamente juntos, sob o mesmo teto. Quanto ao mais, não haveria diferença.
E se ela fosse uma pessoa que eu conhecesse noutro ambiente da sociedade paulista? A mesma resposta. Em qualquer lugar, eu teria sido conquistado pelo olhar dela, pelo seu modo de ser, e teríamos estabelecido uma amizade inabalável. E me agradaria pensar que tais sentimentos fossem recíprocos.
Daí o meu trato com mamãe se traduzir em manifestações as mais carinhosas possíveis. Chamá-la de “meu bem” a todo momento era o mínimo que eu lhe dizia, de tal maneira nossa união era completa, natural, constante. Mais que união, era uma identidade.
Reflexo da clemência de Nossa Senhora
Essa relação baseada no afeto e na bondade teve um importante papel na minha compreensão acerca da insondável misericórdia de Nossa Senhora para com os homens, especialmente para com os pecadores. Quando eu próprio me senti objeto dessa clemência da Mãe de Deus, foi como se Ela me dissesse: “Eu perdôo tudo, e por mais que você cambaleie e se apresente a mim nesse estado de penúria espiritual, terei pena e o perdoarei”. O sentir essa disposição maternal determinava em mim a idéia da proteção e do afago desinteressados de Nossa Senhora para comigo: a misericórdia d’Ela sobrepuja os últimos limites de minha miséria, cobre-os com sorriso, com ternura, com sobras de complacência, só porque eu sou o Plinio... Ora, em grau menor, eu sentia análogas disposições de mamãe em relação a mim. Portanto, sem eu saber, ela preparava meu espírito para compreender a extraordinária misericórdia de Nossa Senhora. Quiçá eu não a tivesse entendido como a entendi, não fosse esse contato prévio com o afeto de Dona Lucilia.
Ungido pelo perfume da bondade
A par dessa profunda analogia com a ternura de Maria Santíssima, eu apreciava em Dona Lucilia a elevada clave de espírito em que ela se situava e a partir da qual nos dispensava suas manifestações de afeto e benevolência. Na verdade, mamãe procurava habitualmente considerar as coisas em função de algo mais alto, em função do parâmetro absoluto que é Deus, assim como procurava atraí-las para essa elevação de alma.
De maneira que me sentia a mim mesmo sendo visto desde essa clave, e quando Dona Lucilia me agradava, era algo desse patamar que descia sobre mim, e como que me ungia. Por exemplo, quando ela me fazia o sinal da Cruz na testa, antes de ir dormir, eu percebia que alguma coisa daquela alta clave me recobria como um azeite, um bálsamo, e me fazia bem. Mas, no sentido próprio da palavra: era perfumado, suavizante, e penetrava em mim como o óleo penetra no papel.
Junto com essa elevação, a bondade invariável para comigo e para com os outros. Revestida de uma certa tristeza, igualmente comovedora, por constituir um ápice de conúbio com aquela clave elevada, na qual ela muitas vezes se sentia só: “Moro nesse patamar, que é o lugar do meu abandono. Convido-os para estarem comigo e desejo sua companhia. Porém, se não vierem, aqui permanecerei sozinha.”
Supérfluo dizer que essas qualidades de Dona Lucilia falavam imensamente à minha alma de filho...
Plinio Correa de Oliveira - Transcrito de conferência em 4/12/1985

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