quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Lembranças e riquezas de outrora


Já vimos em outros artigos como Dª Lucilia usava seu esplêndido dom de narradora para, por meio de histórias dos antepassados, educar seus filhos no desejo de imitar os bons valores familiares. Entre seus temas prediletos estavam certos episódios ocorridos no Brasil imperial, que lhe traziam saudosas recordações. Um exemplo.
 O avô de Dª Lucilia ensina a Imperatriz a dançar
Dª Teresa Cristina, sempre boa esposa e mãe exemplar, atraiu as afetuosas atenções de Dª Lucilia por causa de um infortúnio que a acompanhara desde os seus primeiros dias.
Com tocante bondade, contava Dª Lucilia que o Barão de Cairu fora enviado por D. Pedro II à Europa, a fim de lhe escolher uma esposa. O Imperador, como é natural, desejava que entre outros predicados da futura Imperatriz estivesse a beleza. O barão entrou em contato com representantes de várias cortes europeias, à procura de uma princesa ideal, e como não havia ainda chegado a era da fotografia, mandava ao Imperador medalhões em esmalte, reproduzindo as fisionomias das pretendentes, para que o soberano escolhesse a noiva.
Quando chegou às mãos do Imperador o retrato da Princesa Teresa Cristina, filha do Rei das Duas Sicílias, sua formosura o encantou desde logo, e ele decidiu casar-se com ela. O matrimônio realizou-se por procuração e o irmão da noiva, o Príncipe Leopoldo de Bourbon Parma, conde de Siracusa, representou o augusto consorte na cerimônia. Pouco depois a princesa embarcou para o Brasil.
Logo que o navio aportou no Rio de Janeiro, D. Pedro II, acompanhado da corte, foi a bordo receber, com toda a pompa, a esposa. Ao vê-la de longe caminhando em direção a ele, o monarca notou desde logo que ela mancava, e ao lograr discernir-lhe os traços do rosto, perdeu a fala. Em nada se parecia com a fisionomia do medalhão!
Pelo protocolo, uma vez chegada diante dele, ela devia fazer uma reverência, a ponto de quase se ajoelhar. E, por sua vez, ele deveria segurá-la e beijar-lhe a mão. D. Pedro II, de tão aturdido, deixou que Dª Teresa Cristina tocasse com o joelho no chão...
Naqueles bons tempos de honra e de compromisso sério, um matrimônio realizado, ainda que simplesmente por procuração, não mais era desfeito. Principalmente se os consortes fossem de Casas Reais. Assim, D. Pedro II se conformou com o irremediável drama que se estabelecera na vida de ambos. Por seu lado, quanto a Imperatriz desejaria que seu esposo jamais houvera tido aquela desilusão!
O sofrimento de Dª Teresa Cristina crescia de intensidade por ocasião das festas na Corte, pois, devido a seu defeito físico, julgava que lhe era impossível dançar, não podendo portanto ser a alma daquelas solenidades sociais.
Numa noite de baile no Palácio Imperial, Dr. Gabriel — avô de Dª Lucilia — então deputado por São Paulo, ao percorrer aquelas belas e luxuosas dependências, encontrou Dª Teresa Cristina sozinha, meio tristonha, sentada no sofá de uma pequena sala, enquanto no salão vizinho todos participavam alegremente da dança, ao som de melodiosa orquestra.
Ao vê-la ali isolada, dela teve pena. Aproximou-se, fez uma reverência, ela lhe deu a mão a beijar e o convidou a sentar-se numa cadeira ao lado. Com o incomparável dom da conversa que possuíam os Ribeiro dos Santos, em pouco tempo Dr. Gabriel proporcionou à Imperatriz a oportunidade de pensar noutros temas que não seus aborrecimentos. Em determinado momento, ele, que já observara como a soberana caminhava, surpreendeu-a com uma sugestão:
— Se Vossa Majestade me der licença, posso tentar ensinar-lhe um modo de dançar...
Dª Teresa Cristina, a princípio, não quis acreditar que fosse possível isso, mas Dr. Gabriel insistiu com muito respeito e lhe propôs fazer, naquela sala, uma experiência. A Imperatriz aceitou e ensaiou uns passos de dança. Ele ia explicando como apoiar com certo jeito o pé no chão, a fim de contornar a dificuldade, e ela rapidamente aprendeu como devia proceder. Ao perceber que já estava bem segura, Dª Teresa Cristina sugeriu a Dr. Gabriel entrarem no salão e dançarem na presença de toda a corte. Qual não foi a agradável surpresa dos presentes ao verem a Imperatriz, com toda a normalidade, constituir com Dr. Gabriel o par por excelência daquela noite de gala!
Dª Lucilia, que já era mocinha quando se passaram semelhantes acontecimentos, sabia ilustrar a história da família Imperial através de pequenos fatos, como o narrado a seguir.
A almofadinha de alfinetes da Imperatriz
Certo dia Dª Lucilia esteve na residência de uma senhora que possuía, como era costume nas boas casas de outrora, em certo salão da casa uma vitrine com bibelots. Depois de os ter elogiado, a visitante comentou:
— Perdoe-me a pergunta, mas por que razão se encontra em meio a objetos tão bonitos essa almofadazinha tão comum?
A dona da casa respondeu tratar-se de uma recordação recebida da viúva de um ex-Presidente da República, senhora que, estando para falecer, lha entregou revelando sua procedência.
Quando foi proclamada a República, após a ocupação do Palácio Imperial por tropas republicanas, as esposas dos chefes vitoriosos tiveram curiosidade de conhecê-lo por dentro. Foi-lhes fácil obter autorização do governo provisório para a visita.
Ao entrarem, o Palácio jazia completamente deserto. Percorreram um a um os vários salões, a Sala do Trono, os apartamentos. À medida que caminhavam, iam sentindo uma espécie de aperto na garganta, uma crescente emoção as envolvia. Por fim, chegaram ao quarto dos soberanos. Estava tudo como se há pouco tivessem saído. Via-se que o abandonaram às pressas, deixando em cima das cadeiras algumas roupas de que não mais necessitariam, além de vários objetos esparsos. Esse quadro causava a sensação de haverem eles recém passado por ali.
As senhoras se impressionaram profundamente. Uma delas viu, em cima da mesa de toilette da Imperatriz, singelo objeto: uma almofadinha de seda, preenchida com ervas, que servia para as senhoras fixarem alfinetes. Notando que aquilo não tinha nenhum valor econômico e querendo a todo custo levar uma recordação da Residência Imperial, aproveitou-se de um momento em que as amigas não estavam prestando atenção, pegou a pequenina almofada e a guardou em sua bolsa. Durante décadas não revelaria a ninguém esse gesto.
Quando sentiu a morte se aproximar, ao receber a visita de uma amiga, entregou-lhe aquele objeto, certa de que ela também lhe daria o devido apreço.
Riquezas da tranquilidade de outrora
Fatos como esse da vida passada constituíam com frequência tema de conversa para Dª Lucilia e os seus, numa feliz época em que a inexistência dos modernos meios de comunicação deixava que, vagarosamente, o tempo corresse permitindo melhor se degustar uma vida tranquila, confortável e serena.
As famílias, conservando ainda traços patriarcais, formavam pequenos mundos cheios de vitalidade que, de algum modo, bastavam-se a si próprios. Seus numerosos membros conviviam muito entre si, pois se viajava pouco, e a vida familiar girava em geral em torno da casa do respectivo “patriarca”. Este, por vezes, chegava a reunir à sua volta gerações sucessivas de descendentes; mútuo respeito, cordialidade e atenção eram as notas tônicas do relacionamento entre eles.
Nesse ambiente, coberto pela bênção de Deus, a serenidade fazia uma das alegrias da vida, a tal ponto que, ao se despedirem as pessoas, antes de se recolherem para dormir, não era raro ouvir-se:
— Deus lhe dê uma noite tranquila.
Não era diferente a existência no palacete Ribeiro dos Santos. Por volta das cinco e meia da tarde os homens retornavam do trabalho e ficavam no living da casa, ou então no terraço, lendo o jornal e conversando distendidamente sobre tudo e sobre nada, enquanto desfrutavam a fresca brisa do entardecer.
Dr. João Paulo, esposo de Dª Lucilia, junto com um cunhado ou algum irmão de sua sogra, saíam a passear a pé, após a refeição, enquanto as senhoras iam fazer tricot. Ao voltarem os homens, ficavam todos ainda longo tempo em conversa na sala, até que o relógio fazia soar lentamente dez badaladas, lembrando que o serão caminhava para seu fim.
Que monotonia! será alguém levado a pensar, e talvez com certa razão. Porém, era essa mesma calma que proporcionava ao espírito humano condições para a reflexão, para o operar do pensamento, do qual brotariam as grandes realizações. Um dos frutos dessa tranquilidade foi sendo destilado ao longo dos séculos, e resultou em precioso licor, que os homens civilizados degustavam agradados, e cujo segredo o infeliz habitante da babel contemporânea perdeu de todo: a arte de conversar.
Nesta habilidade também se distinguiu Dª Lucilia, que a herdou de seus maiores e a soube cultivar de um modo tal que, ainda na extrema ancianidade, sabia como ninguém cativar seus enlevados ouvintes...
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

Um comentário:

  1. Que histórias encantadoras! Tenho uma admiração especial pela Imperatriz Teresa Cristina. Assim como por toda a família real do segundo reinado. Muito legal!

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