domingo, 2 de setembro de 2012

Perfeita harmonia de carinho e vigilância

Em nosso último artigo pudemos conhecer algo do extremo desvelo de Dª Lucilia na educação de seus filhos. Seja no tocante à alimentação ou aos trajes, seja no referente às boas maneiras ou ao apreço pelos valores familiares, procurava ela nada negligenciar para que seus pequenos tivessem a melhor formação possível.
Ao lado de tamanha solicitude, Dª Lucilia compreendia também ser obrigação de uma verdadeira mãe de com uma doçura de alma que lecatólica vigiar, aconselhar e corrigir vava seus filhos a aceitar com amor pessoalmente os filhos.
“Tenho saudades dos pitos de mamãe”
Sempre que a governanta, a Fräulein Mathilde, ou outra pessoa dava conta de alguma travessura praticada pelas crianças, Dª Lucilia mandava o copeiro ou uma criada chamar o infrator. Este, localizado sem demora pelo empregado, recebia o aviso.
A consciência pesada pela falta cometida já lhe fazia entrever o motivo da convocatória, assaltando-o logo um certo estremecimento de aflição por não encontrar nenhuma atenuante para o ato praticado.
Dª Lucilia, intransigente no exigir o cumprimento do dever, sabia entretanto temperar essa nobre virtude com uma doçura de alma que levava seus filhos a aceitar com amor as obrigações que ela lhes impunha.
Como sofria muito do fígado e necessitava de bastante repouso, passava boa parte do tempo em seu quarto, numa chaise longue, com as venezianas encostadas, o que dava ao ambiente um recolhimento muito afim com a alma dela.
Era ali que a criança a encontrava. Introduzida nessa corte de justiça ao mesmo tempo grave e amena, sentia-se conquistada pela benquerença de Dª Lucilia, dissipando-se-lhe todas as anteriores turbações, ao contemplar a fisionomia pensativa de sua mãe. Dª Lucilia a chamava a si, deixando transparecer na voz um misto de tristeza, gravidade e afeto.
Quando o filho, por exemplo, se aproximava receoso do merecido castigo, era logo tomado pelo encanto do trato materno. Frequentemente ela lhe passava o braço ao redor da cintura, fitava-o bem no fundo dos olhos, incentivando de modo irresistível o pequeno e querido réu a confessar sua culpa, e perguntava:
— Você fez tal coisa?
 — Fiz, sim, senhora — respondia ele, um pouco contrafeito.
— Eu não lhe disse que não deveria fazer? — continuava ela, serenamente, num tom de suave censura.
— Disse, sim, senhora.
A cada pergunta o menino ia ficando mais tímido, acabrunhado pelo desgosto de haver contrariado tão bondosa mãe.
— Então como é que você fez isto? — insistia ela mais um pouco.
— Eu tinha vontade... — tentava ele explicar, convicto de que não atenuaria sua culpa.
Dª Lucilia desfiava em seguida as agravantes do delito, deixando porém entrever uma solução jeitosa para o caso:
— Mas você não tinha o direito de fazer isto. Não era melhor ter procurado sua mãe e dizer: “Mamãe, eu desobedeci, perdão”? Eu lhe daria uma bênção e, depois de um beijo, estaria tudo resolvido.
Quando ela percebia terem suas palavras vencido todas as resistências, induzindo o filho a um proporcionado arrependimento, concluía:
— Está bem, agora você me promete não fazer mais isto?
Ao que ele respondia “sim”, já inteiramente persuadido.
Chegara a hora da misericórdia. Dª Lucilia mudava então de atitude e perguntava:
— Está bem, então você pede perdão a mamãe?
Formulado o pedido, ela passava da repreensão severa — nunca irritada — para um transbordamento de afeto. Entrava uma tal harmonia e entendimento recíproco que Plinio sempre saía inundado de admiração e de contentamento, de tal maneira que, passados muitos anos da morte dela, afirmaria:
“Ainda tenho saudades dos pitos de mamãe!”
De tal modo transparecia no proceder de Dª Lucilia o amor materno que, mesmo em circunstâncias nas quais fulgurava a inflexibilidade, era impossível aos filhos não saírem encantados com ela, quase tendo vontade de lhe pedir outro castigo...
Nas doenças, tempero de dor e de alegria
No harmônico conjunto de suas virtudes, Dª Lucilia passava de um extremo a outro, sem a menor dificuldade. Bastava que algum de seus filhos adoecesse para brilhar de modo especial sua benignidade, que se convertia em cuidados e inimagináveis desvelos.
Nas enfermidades, a preocupação de Dª Lucilia era serena mas vigilante. Dava preferência à homeopatia, cuja suave ação bem se adequava a seu modo de ser. Quando necessário, tanto para socorrer-se em seus achaques, quanto para solucionar os pequenos incômodos de seus filhos, consultava um excelente médico homeopata, no qual tinha muita confiança, o Dr. Murtinho Nobre, que atendia também Dª Gabriela e outros familiares. Era raro irem a seu consultório, chamando-o normalmente a casa.
Habitualmente, ao receber os remédios receitados por Dr. Murtinho às crianças, Dª Lucilia escrevia os nomes em pequenas folhas de papel; depois, noutra, anotava as horas em que o doentezinho devia tomá-los. Queria ter a certeza de não se esquecer de nenhuma dose. Nas horas devidas, entrava sorrindo no quarto, trazendo na mão os vidrinhos. Rosée ou Plinio — conforme o caso — já se sentiam reconfortados só por vê-la chegar tão afável, comunicativa, carregada de promessas de que o remédio curaria, e extremamente carinhosa no modo de ministrá-lo.
Nessas horas era tão bondosa com as crianças, que muitas vezes os familiares gracejavam:
— Lucilia trata tão bem seus filhos quando estão doentes, que eles não ficam com vontade de sarar...
Ela sabia aliar também, a esse tocante procedimento, um outro auxílio: a exigência no cumprimento dos preceitos médicos.
Em determinados momentos do dia entrava com o termômetro, a fim de medir a temperatura do juveníssimo doente. Por mais que este afirmasse já estar bom, para poder sair da cama, Dª Lucilia lhe colocava a pequena haste de vidro sob o braço e, depois de escassos minutos contados no relógio — que pareciam uma eternidade ao pequeno enfermo — recolhia o instrumento e se aproximava da janela a fim de vêlo melhor. Chegava o instante de o menino ouvir dos lábios maternos o veredicto, que não raramente era de condenação: a terrível colunazinha de mercúrio subira até 38º ou mais. Impacientava-se ele, por vezes, e Dª Lucilia, com todo o afeto, tentava acalmá-lo, explicando as razões pelas quais teria de ficar mais tempo na cama. Quando ela saía do quarto, o ânimo da criança estava de novo serenado.
Dª Lucilia notava que sobretudo Plinio se enfadava muito com essa rotina. “Se ela não medisse tantas vezes a febre, esta não subiria assim...”, pensava o menino. Para evitar-lhe esse pequeno sofrimento, sua mãe se restringia, em algumas ocasiões, a pôr sua refrescante mão na testa dele. Ao menos não teria a desagradável sensação de que o termômetro prolongava a doença. E se nem por isso baixava a febre, algo que nele antes fervia se apaziguava. Esse efeito se acentuava quando, num tom de voz próprio a inspirar confiança, sua mãe lhe recomendava um tanto mais de paciência, pois o pouquinho de temperatura febril acabaria por descer.
Ao desaparecerem os sintomas da doença, Dª Lucilia também não exagerava a alegria, limitando-se a dizer:
— Bom, meu filho, então você pode se levantar.
Ajudava a criança a sair alegremente da cama, mas sem manifestar demasiado contentamento, pelo receio de que os excessos pudessem levá-la a imprudências. Constituía esse mais um procedimento no qual o equilíbrio entre dor e alegria era dosado com sabedoria e incutido na alma dos filhos de forma didática.
*
À chegada do inverno, a fim de prevenir as enfermidades trazidas pela estação, multiplicava Dª Lucilia os cuidados maternos; ora enriquecia ainda mais a alimentação de seus filhos, ora vigiava para que estivessem bem agasalhados, ou evitar que saíssem de casa sob a garoa.
Sempre envoltas em benquerença, essas providências se tornavam de fácil cumprimento, mesmo quando incômodas para as crianças. Tal era o caso do repulsivo óleo de fígado de bacalhau, muito famoso naquele tempo, tanto por sua eficácia tonificante quanto por seu desagradável sabor. Para tornar menos penoso o uso do fortificante, Dª Lucilia o fazia acompanhar sempre de um gole de vinho francês ou português. E se durante certo tempo Rosée e Plinio o bebessem com docilidade, a recompensa nunca faltaria. Dª Lucilia os levava a uma grande casa de brinquedos onde podiam escolher o que quisessem.
Pequenos ferimentos, comuns na infância, recebiam da parte dela os necessários ungüentos, acompanhados de suaves bálsamos para a alma. Guardava previdentemente numa caixinha o material para essas circunstâncias. Sempre que algum filho acorria aflito em busca de auxílio e remédio para as diminutas consequências de algum tombo, ela, utilizando com delicadeza e habilidade tesourinha, gaze e pomada, fazia logo o curativo. O simples modo de prepará-lo já era motivo de encanto e alívio. Todavia, dessa singela operação, o que certamente mais reconfortava a criança era, no fim, um carinhoso beijo, acompanhado das palavras:
— Filhinho, agora vá brincar...
Plinio à beira da morte
Certa manhã, Plinio, tendo despertado antes mesmo de a Fräulein entrar em seu quarto, sentiu faltarem-lhe as forças. Deixou-se então cair para trás sobre os travesseiros e chamou Dª Lucilia. Notando algo de anormal, acorreu ela imediatamente. Abraçou seu filho com carinho, beijou-o e indagou com ternura o que se passava. O rosto do menino, afogueado, denunciava febre alta. Plinio também se queixava de estar sentindo dor na garganta.
Após o ter acomodado bem na cama, Dª Lucilia telefonou ao Dr. Murtinho. Este não tardou em comparecer ao palacete Ribeiro dos Santos. Depois de examinar a criança, fez um diagnóstico bem mais grave que das vezes anteriores: crupe. E após receitar a medicação conveniente se retirou.
Não havia chegado ainda a era dos antibióticos. A terrível moléstia podia levar o paciente à morte por sufocação, em virtude de uma membrana que se formava na garganta. Para evitar isto, não raras vezes se fazia necessária uma intervenção cirúrgica, perspectiva que preocupava enormemente Dª Lucilia. Antes de ela aplicar o tratamento indicado por Dr. Murtinho, alguns familiares, adeptos da medicina alopática, recomendaram-lhe mandar logo operar o menino.
Plinio, entrementes, começou a piorar e Dª Lucilia resolveu telefonar ao Dr. Murtinho. Este a tranqüilizou, dizendo-lhe que fizesse seu filho tomar o remédio receitado. Advertiu que por volta das três horas da tarde daquele dia, se tudo corresse normalmente, o menino expeliria a membrana formada em sua garganta. Ela deveria deixar um pano sobre a cama dele, a fim de a recolher e enterrar no quintal, ato contínuo, pois era matéria altamente contagiosa.
Dª Lucilia começou a tomar as providências recomendadas. Mandou Madalena, uma das criadas, abrir um pequeno buraco no fundo do jardim e deixou um pano preparado. Uma vez tudo pronto, sentou-se à cabeceira da cama de seu filho e começou a rezar, pois Plinio, abatido pelos incômodos da doença, mal tinha ânimo para abrir os olhos. Embora ele não conseguisse conversar com sua bondosa mãe, a presença dela lhe era um suave refrigério para os ardores da febre e para o terrível mal-estar. À medida que o tempo passava, Plinio sentia as forças o abandonarem, o que lhe aumentava a aflição. Contudo Dª Lucilia o ia consolando com palavras de inefável doçura, e assim se aproximava a hora indicada pelo médico.
Tendo aberto cuidadosamente o pano sobre os lençóis, esperou pelo momento previsto, com sua habitual serenidade. Cerca das três horas, tudo se realizou como Dr. Murtinho dissera. Após certificar-se ter sido convenientemente enterrado o pano com a fatídica membrana, Dª Lucilia telefonou para o médico a fim de lhe dar a boa notícia e pedir novas instruções. Este a interrompeu, antes mesmo de ela dizer algo sobre o ocorrido:
— Dª Lucilia, pelo tom de voz da senhora, vejo que o Plinio já está bem. Nem precisa dizer-me o que aconteceu. Agora ele só precisa descansar bastante para se recuperar do abalo sofrido.
Dª Lucilia agradeceu muito a Dr. Murtinho, desligou o telefone e voltou para junto de seu filho, que reclamava insistentemente sua presença. Ao entrar no quarto, ela estava radiante, luminosa de contentamento por sabê-lo fora de perigo. Abraçou-o e beijou, explicando-lhe haver tudo já passado. A grande alegria que inundava o olhar de Dª Lucilia foi para ele o melhor argumento. Sossegado ao ver que sua mãe não mais estava preocupada, deixou-se embalar pelas doces palavras dela, dormindo tranqüilo o resto da tarde.
Nos dias seguintes, Dª Lucilia passou boa parte do tempo junto de seu filho. Procurava entretê-lo, servindo-se, como de costume, de sua inigualável arte de contar histórias. E envolto assim no carinho dela, correram rapidamente os dias de convalescença.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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