sábado, 27 de outubro de 2012

Fidelidade à concepção católica da vida

Entre as virtudes que ornavam a alma de Dª Lucilia, destacava-se uma que é tão esquecida quanto difícil de praticar: a fidelidade ao modo de viver inspirado nos ensinamentos da Igreja
Corria para seu fim o ano de 1918. Antes de ele se encerrar, terminaria a mais terrível e mortífera guerra que a humanidade até então conhecera, e cujas consequências provocariam transformações mais profundas do que as destruições causadas pelas bombas ou pelo ímpeto guerreiro dos combatentes.
Até o início da conflagração, ainda refulgiam nas nações ocidentais e cristãs os últimos fulgores da civilização medieval, cujo edifício, magnífico como uma catedral, vinha sendo derruído ao longo das centúrias por sucessivas revoluções: Renascimento, Protestantismo, Revolução Francesa. Ante o mundo atônito surgiria em breve o Comunismo, que haveria de se constituir no flagelo das décadas vindouras.
Porém, apesar dessas desastrosas mutações, aos povos nascidos sob o civilizador influxo da Santa Igreja algo restava em seus usos e costumes, como nas leis e nas instituições que os regiam, da herança espiritual e cultural recebida de seus maiores. Quentes ainda estavam algumas brasas da Fé ardente que outrora incendiara a Cristandade.
Ao terminar a guerra, quase que por exaustão das partes beligerantes, a Europa já não era a mesma. O Velho Continente perdera a primazia no mundo civilizado, deixando que os Estados Unidos lhe tomassem a dianteira. Mais ainda, aceitou sem restrição os princípios novos que regiam o estilo de vida americano (American way of life). Era o fim de uma era e o início de outra diametralmente oposta.
Numa época em que o rádio e a televisão ainda não haviam invadido os lares, a maior distração tanto dos indivíduos como das famílias era o cinema. Este, muito mais do que a imprensa, constitui-se no máximo instrumento mentor da opinião pública. Tinha sua sede principal em Hollywood, onde viviam autores, diretores, cenaristas e os atores dos enredos mais famosos. Em comparação com o cinema americano, o europeu parecia franzino, tímido e sem verve.
Para fazer sensação, Hollywood apresentava de modo exagerado tudo quanto era americano. E incutia, na Europa como na Ibero-América, o desejo de fazer passar por uma transformação ultra-americanizadora todos os aspectos de sua existência. “Americanizar-se”, na verdade, era menos adaptar-se a um autêntico American way of life do que assumir todos os exageros de uma ficção hollywoodiana distante da realidade.
Sem derramar uma gota de sangue, uma imensa revolução contra a qual bem poucos tiveram coragem de levantar eficaz barreira se operava quase imperceptivelmente nos espíritos.
A esses ventos não se mostrou infenso o Brasil, e muito menos a São Paulo aristocrática de então, que passo a passo seguia todos os acontecimentos mundiais.
Uma nova mentalidade, chamada moderna
Ao findar o conflito em 1918, inicia-se o período que os historiadores denominam entre deux-guerres (ou seja, entre a primeira e a segunda guerra mundial). Os harmônicos acordes da valsa são substituídos pelos estridentes sons do jazz; as sóbrias e graves carruagens puxadas a cavalo são suplantadas em definitivo pelo automóvel, que imprime novo ritmo à existência; e as senhoras, até então rainhas do lar, dão os primeiros passos rumo à igualdade dos sexos. Quase de uma só vez, as saias sobem dos tornozelos aos joelhos, libertando os passos dos longos e belos vestidos de outrora. Encetava-se assim resoluta caminhada cujo termo final era, todos o sentiam, o despudor.
Os cabelos naturais das senhoras, cuidadosamente penteados, como coroas a honrar sua dignidade, são cortados em aras à moda e ao pragmatismo. Era o estilo chamado à la garçonne*. O rouge e o bâton irrompem nos costumes, até então recatados e sobranceiros a esses artifícios de maquiagem. O riso, que antes ocupava discreto papel na vida, passou a ser considerado símbolo necessário de felicidade, ideia amplamente difundida pelo cinema de Hollywood, relegando a segundo plano, nas reuniões sociais, todos os que não sabiam contar piadas e não tinham o pseudo-carisma de provocar constante hilaridade.
Era inerente a esse novo modo de ser o desenfreado desejo de ganhar dinheiro, muito dinheiro. Deus, moral, reflexão, tradições, requinte, bom gosto, educação, eram mitos do passado e deviam ser abandonados, pois o importante era viver “bem” o momento presente.
Fidelidade aos bons costumes de outora
Essa nova mentalidade, chamada de moderna, cujos derradeiros e amargos frutos ainda provamos em nossos dias, Dª Lucilia a rejeitou, sempre à sua maneira cortês e afável, mas ao mesmo tempo séria e firme. Aceitá-la constituía, no seu modo de ver, o abandono de uma via que jamais cumpriria deixar. Para ela, a Religião não se limitava só à observância dos sagrados preceitos da Lei de Deus e à prática de piedosas devoções, desligadas da boa ordem temporal. Incluía, além disso, uma concepção da vida modelada segundo as revelações e os ditames do Sagrado Coração de Jesus, que deveriam abarcar todos os aspectos da atividade humana. Conforme essa concepção, ela procurava primorosamente moldar seu dia-a-dia, o governo da casa, a educação dos filhos e até sua vida social.
Um pequeno e comovedor episódio ilustrará com nitidez a resistência que ela vinha opondo ao espírito “moderno”.
Certa ocasião, durante um almoço do qual participavam amigos e parentes, tentavam todos convencer Dª Lucilia a cortar os cabelos à la garçonne e a se pintar, pois era a única pessoa daquela roda social que não aderira à nova moda. Talvez sua mansa mas inabalável persistência na fidelidade aos antigos costumes importasse em certa fricção moral com os mais chegados.
Enquanto pôde, durante a conversa, Dª Lucilia foi jeitosamente esquivando o problema, para não se mostrar desagradável aos visitantes, porém, estes continuaram sua incômoda insistência. Em certo momento, notando que as pressões passavam do limite tolerável, num assunto só a ela concernente, reagiu, como tantas vezes fazia, guardando expressivo silêncio.
Sentado ao lado dela, Plinio, então com aproximadamente doze anos, que possuía um natural loquaz e afirmativo, assistia calado a toda a conversa: não era permitido aos menores falarem à mesa. Encantado com sua mãe e notando nela a inteira adequação da apresentação externa com o nobre interior de alma, ao perceber o silêncio em que ela se pusera, resolveu intervir para sustentar a boa posição. Afastou sua cadeira e, ajoelhando-se aflito diante de Dª Lucilia, de modo carinhoso implorou:
— Mamãe, a senhora vai me prometer que nunca cortará o cabelo nem usará bâton?
Enternecida com a atitude de seu filho, voltou-se para os presentes e, como que gracejando, encerrou suave e amavelmente a discussão:
— Estão vendo? Plinio não quer que eu corte os cabelos. Então, não vou cortar...
Um silêncio geral pairou sobre a sala. E nunca mais familiares ou amigas tocaram nesse assunto, até o fim dos longos dias de Dª Lucilia.
Quando, pela última vez, seus filhos a viram jacente em seu caixão, lá estava ela com seus veneráveis cabelos prateados e seus lábios, para sempre cerrados, isentos de bâton. Morreu atendendo ao pedido que seu filho, quando ainda menino, com um drama na alma, genuflexo lhe fizera.
A pretexto dos bondes, as saias encurtaram
Com referência ao traje feminino, Dª Lucilia notou o primeiro sintoma de decadência moral não muito depois de se generalizar o uso do bonde elétrico, como principal meio de transporte urbano.
Ela assistira à inauguração da primeira linha em São Paulo, em 1900. Anos depois, contava a seus filhos haver sido tão grande a euforia da população, pelo fato de poder andar num veículo movido a eletricidade, que pessoas viajavam até em cima do teto do bonde.
Tal euforia serviu de ocasião para uma grave e profunda modificação na moda feminina. Dª Lucilia comentava que as senhoras, por usarem saias que iam até o tornozelo, tinham certa dificuldade para descer do bonde, pois um traje tão comprido fazia tropeçar nos degraus. Por estas e outras razões, os vestidos foram se encurtando, ao longo dos anos, até chegarem à altura dos joelhos. A cada encurtamento, Dª Lucilia via o perigo aumentar.
 — Deixe... Não tem nada! — respondia sempre uma despreocupada otimista.
Hoje, a polêmica mini-saia dos anos 60 e 70 já se tornou ultrapassada... “Deixe, não tem nada!” — continuam a repetir. De fato não há mais nada, pois todo o pudor foi destruído.
O “estouro da boiada”
Quem, entrando no Coliseu romano, não terá sido tomado por uma sensação de respeito e veneração, pensando na lealdade dos milhares de mártires que ali foram devorados pelas feras, por se recusarem a queimar incenso aos ídolos?
Não menor, e por certo mais subtil, tem de ser o heroísmo de alguém que queira manter a integridade dos princípios ensinados pela Santa Igreja, numa sociedade que caminha em rumo oposto à verdade e ao bem. É pelo pânico dos efeitos desta separação, em relação ao próprio ambiente, que milhões de pessoas cedem e espiritualmente perecem.
Perante a avassaladora onda forjada em Hollywood, a atitude de Dª Lucilia foi a de enfrentar com serenidade tudo quanto contundia suas convicções católicas.
De futuro contaria ela, de modo discreto, embora manifestando toda a sua censura, um escândalo ocorrido por aquela ocasião em São Paulo. O fato passou-se entre famílias abastadas e, portanto, muito em destaque na sociedade.
Deixando sua esposa, um homem foi morar com certa senhora que também abandonara o marido, passando a viver ambos em regime de concubinato duplamente adúltero. Para conferir ares de legitimidade a seu péssimo proceder, foram ao Uruguai e, de lá voltando, fizeram constar terem-se casado no civil. Amigas e conhecidas ouviram, da própria concubina, que aquela união era verdadeiramente um “casamento”, o que redundava em equiparar o concubinato ao matrimônio. Manifestando por sua fisionomia toda a censura que o fato lhe causava, Dª Lucilia, ao narrar este episódio, acrescentava haver ainda naquela época restos de moral, razão pela qual o acontecido provocou em todos uma atitude de repúdio.
Departamento da Loja Mappin
Certo dia, entretanto, uma parente de Dª Lucilia foi fazer compras na Casa Mappin — estabelecimento que, naquele tempo, só trabalhava com artigos muito finos, sendo por isso frequentado pela melhor sociedade — e presenciou uma cena insólita. Ouviu, de repente, uma algazarra, pouco demorando a deparar com duas mulheres que se atracavam a tapas e pontapés. Eram a esposa legítima e a concubina mencionadas acima.
Conhecida de ambas, a referida senhora preferiu retirar-se rapidamente do local, com receio de acabar por ver-se envolvida naquela briga indecente, o que não queria por nenhum preço. Almoçando esse dia em casa dos Ribeiro dos Santos, contou o fato, provocando vivos comentários à mesa. Dª Lucilia ouviu tudo em silêncio. No entanto, quando se começou a dizer que o concubinato era um absurdo, mas que as senhoras deveriam suportar com mais paciência a sem-vergonhice dos maridos, ela suspirou profundamente e disse:
— Suportar, suportar! Não esperem muito... Os homens pintaram tanto que deixaram as mulheres numa situação que não suportam mais. E, além dos costumes péssimos dos maridos, o cinema e a literatura imorais fazem com que elas vão ficando tão ruins quanto eles. Esse fato mostra que está começando o estouro da boiada...
Era uma judiciosa observação, uma previsão muito bem feita, porém as palavras de Dª Lucilia foram acolhidas com gargalhadas por alguns, não porque achassem ridículo o que dizia, mas porque lhes divertira a expressão “estouro da boiada”. Não entenderam o fundo do pensamento, que o correr das décadas não fez senão confirmar. Hoje o divórcio generalizou-se, e o concubinato também: “a boiada” debandou.
(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)
* Um neologismo feminino para garçon, “menino”.

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