domingo, 5 de outubro de 2014

Presença enternecedora

Acolhida à sombra da árvore que plantara
É interessante constatar como essa compaixão de mamãe para comigo, embora se manifestasse sempre que as circunstâncias a despertavam, ia adquirindo feições novas ao longo de minha vida. Quando eu era menino, ela inteira se debruçava sobre mim para me amparar. Mais tarde, no período de constituição do meu caráter, a solicitude dela se fez sentir em relação à luta que eu era obrigado a travar, como adolescente, para a minha própria formação. Quando homem maduro, eu notava nela uma espécie de legítima ufania, à semelhança de quem construiu um barco e se compraz ao vê-lo navegar: “Deixe-o singrar, alegra-me ver como ele enfrenta as ondas; sinto satisfação por ter feito isso, em ter tido um filho e o haver formado para que depois enfrentasse a vida de peito aberto!”. Essa era a alegria dela.
E quando se aproximavam seus últimos anos de vida, a missão protetora e formadora da compaixão dela, enquanto mãe, ia cessando. Ela sentia esse compreensível minguamento e, por sua vez, passou a como que “se encostar” na minha compaixão para com ela. Portanto, deu-se uma nobre e natural inversão da situação antiga, ela veio se acolher à sombra da árvore que ela mesma tinha plantado.
Presença sempre enternecedora
Seja como for, já com seus 91 anos, a presença dela continuava sempre enternecedora, cumulando-me de agrado. Durante toda a vida, a conversa de mamãe foi agradável, mas sua presença era ótima, pelo fato de sua pessoa irradiar algo muito mais valioso do que a palavra humana possa exprimir, e de comunicá-lo com doçura, suavidade, alegria, ao mesmo tempo com tanto recolhimento, tanta dignidade e seriedade, que eu jamais me saciava de estar perto dela.
Lembro-me de que, às vezes, estando eu trabalhando no meu escritório, ela entrava, sentava-se na cadeira de balanço que ali havia e permanecia quieta ao meu lado, desfiando seu rosário. Quiçá, movida pela generosidade materna, ela encontrasse algum entretenimento na minha presença, mas a recíproca era inteiramente verdadeira, e eu me comprazia de modo prodigioso em estar com Dona Lucilia: dizia-lhe algo afetuoso, fazia-lhe um carinho, e a deixava contente.

Assim transcorreu nosso convívio, até alguns meses antes de ela falecer.
Na véspera da morte, calma e serenidade
Em fins de 1967, comecei a notar os primeiros sintomas da doença que haveria de me prostrar durante semanas, culminando numa operação1. Quando retornei do hospital, mamãe ainda estava viva, mas havia envelhecido muito. Acredito que ela não tenha percebido que eu estive fora tanto tempo, ou ao menos não se manifestou a esse respeito.
A convalescença me obrigava a permanecer com a perna estendida durante todo o tempo, numa posição bastante incômoda e desagradável. Após esse período de penosa recuperação, quando eu apenas começava a poder andar com o auxílio de muletas, afirmaram-me que a saúde de mamãe se agravara de modo alarmante: ela caminhava para o fim.
Recordo-me que na véspera da morte dela, mamãe se achava muito pior do coração, e por isso passei o dia inteiro no quarto dela. A falta de ar a oprimia de tal maneira que a impedia de conversar, e ela sofria muito com o mal-estar e a agonia que a asfixia traz consigo. Entretanto, mantinha-se calma, tranquila, serena.

Continua 

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