segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mais uma lição a respeito do mal

Havia um caso, carregado de ensinamentos morais e sobre a tragédia da vida, que muito chocara Dona Lucilia e impressionava seus jovens interlocutores.
Um rapaz abastado, atraente e de boa conversa, que se vestia muito bem e era da melhor sociedade de São Paulo no tempo do Império, havia-se casado com uma moça rica e de boa famflia. Após nascerem os primeiros filhos, começou a se enredar em más companhias, com as quais seu dinheiro era gasto prodigamente. E foi sendo obrigado a vender um a um seus imóveis, a fim de se entregar aos prazeres espúrios e jogar na roleta.
Sabendo desses extravios, amigos avisaram a esposa, a qual, penalizada e entristecida, suportou o infortúnio com a suave passividade das senhoras fiéis de então.
Entretanto, a tal ponto aquele homem enveredara pelo mau caminho, que cinicamente contava em suas rodas uma cena ocorrida no aniversário de uma de suas concubinas. Ele havia comprado, para lhe oferecer, um desses conjuntos de toilette feminina usados na época, composto de caixas de pó de arroz, vidros de perfume e outros objetos, colocados numa caixa de bela apresentação. As peças eram todas de cristal, com tampas de prata. Mandou fazer a entrega na casa da tal mulher, certo de que o presente seria re cebido como um tesouro...
Ora, para surpresa dele, ao visitá-la, encontrou a caixa aberta, mas com todas as peças dentro, ainda embrulhadas no papel de seda. Ele então perguntou:
— 0 que é isto?! Você não gostou do presente que lhe mandei?
— Presente?! Isto é uma porcaria. Olhe o que eu fiz com uma das peças!...
No chão, reduzida a cacos, estava uma jarra de cristal...
— Eu não sou pessoa a quem se ofereça objetos de cristal!... Para mim, deve ser pelo menos de prata maciça! Eu exijo que você me traga amanhã um serviço de prata, ou então rompo com você,..
Dona Lucilia acrescentava a seguir que ele, apesar de não poder de modo algum arcar razoavelmente com tão avultada despesa — pois sofria privações em casa, em virtude de seus desmandos — acabou de forma vergonhosa por se dobrar à insolente, e encomendou o tal serviço de prata.
Saindo da casa dela, levou as peças de cristal à loja. Pediu que trocassem a caixa, de maneira a não ser notada a falta da jarra... e mandou enviar o conjunto a outro endereço: o da legítima esposa!...
Dona Lucilia frisava muito a cena da chegada ao lar do marido desleal. Alegre, cheia de gratidão, a esposa foi-lhe ao encontro:
— Mas você me dá um presente desses!... As nossas condições não comportam isso. Venha ver como nossa mesa de toilette ficou bonita, bem arranjada. Eu lhe agradeço, mas não faça esses gastos comigo!
Dona Lucilia, em tom grave, prosseguia a narração: esse marido devasso, apesar da extrema vergonha e remorso que lhe causou a carinhosa e agradecida reação de sua esposa, continuou de caindo por se recusar a abandonar o jogo, no qual era viciadíssimo. Em determinado momento, tais eram as dívidas que teve de vender a casa e os móveis.
Assim, não lhe ficou outra saída senão ir com toda a família para uma fazenda que lhe restava no interior. Ali, trabalhando arduamente, não jogando jamais, conseguiu afinal, ao cabo de uns dez anos, sanear suas finanças.
Certo dia ele combinou com a esposa:
— Graças a Deus, já reuni a quantia necessária para ir a São Paulo pagar as últimas dívidas. E, quem sabe se, economizando um pouco mais, possamos nos estabelecer novamente na capital.
Sua esposa, radiante, preparou tudo para a viagem, e ele à tardezinha partiu rumo à estação ferroviária. Qual não foi a surpresa dela quando, no dia seguinte, viu o marido aparecer a cavalo, extremamente abatido.
— Por que você não foi a São Paulo? — perguntou.
— Você está vendo... A noite organizaram uma roda de jogo. Hoje de manhã, eu já não tinha mais nada!
Aturdida, desfeita em lágrimas, gritando, a pobre senhora saiu correndo desesperada ao longode um renque de árvores. Ficara louca...
Era notável como Dona Lucilia, durante a narração, participava do drama, levando-o muito a sério, não deixando de salientar que um terrível castigo da Providência mais tarde atingiu aquele infiel e perdulário...
A infortunada, que passava por grandes períodos de lucidez, manteve e educou como pôde a numerosa prole. Quando se aproximava um ataque de loucura, ela mesma mandava cortar os cabelos, para que pudesse ser internada.
Supérfluo é dizer que Dona Lucilia tinha verdadeira veneração pela pobre senhora.
A cruz de uma vida inteira
Ao historiar outro caso de infidelidade conjugal, ocorrido em São Paulo, Dona Lucilia se compadecia da esposa, ferida em sua honra e ressaltava as situações ridículas a que se expunha um marido sem domínio das próprias paixões.
“Coitada de fulana...” Assim começava ela, com uma entonação de voz que já fazia sentir o caráter triste do episódio, movendo os ouvintes a terem pena da infeliz senhora.
Era esta, talvez, das pessoas mais ricas da São Paulo de seu tempo. Tinha-se casado com um homem de boa família, muito educado e que se tornara riquíssimo, fazendo a própria fortuna. Ele, porém, levava uma vida muito devassa, mantendo várias ligações adulterinas, com as quais se exibia em público, o que constituía um verdadeiro ultraje à esposa.
Quando, anos mais tarde, a filha do casal contraiu núpcias com um moço endinheirado e de boa família, o jovem par ficou morando na casa dos pais dela.
Um belo dia a moça aparece, banhada em lágrimas, diante de sua mãe. Esta lhe pergunta, entre surpresa e aflita:
— Mas minha filha, o que há com você?
— Mamãe, aconteceu-me a mais grave das desventuras!
— Mas o que é?
— Fulano me está sendo infiel.
A mãe, que já havia sofrido a amarga experiência da infidelidade do próprio marido — aliás, presente ali naquele momento — não achou improvável a acusação. Em todo caso, procurou consolar a filha. Mas esta, angustiada, continuou:
— Olhe, ele foi fazer a toilette em cima. Daqui a pouco vai sair diretamente, sem se despedir de nós. Atravessará a rua e irá, em diagonal, para a casa de sua concubina.
Não demorou muito, ouviram bater a porta da casa. A jovem esposa foi até a janela, olhou, e disse aos pais:
— Venham ver o que vai se passar.
Os três acompanharam, então, atrás da vidraça, os passos extraviados de quem acabara de sair. A moça, desconsolada, perguntou à mãe:
— E agora, mamãe, o que eu faço?
O pai, que assistia a toda aquela triste cena, tão própria a figurar na literatura romanesca do século passado, tinha a fisionomia contrafeita...
Então a mãe, abandonando toda a esperança de dissimular o óbvio, afirmou diante do próprio esposo:
— Minha filha, este é o destino de nós, mulheres, na sociedade. Você está apenas começando a carregar a cruz que eu carreguei a vida inteira...
Fez-se silêncio entre os três. A filha fitou o pai que, envergonhado, apenas balbuciou um “com licença” e saiu, batendo em covarde retirada.
Essa senhora era apresentada por Dona Lucilia como modelo de fidelidade conjugal, discreta, distinta, que apenas uma vez levantou seu brado de protesto para ensinar à filha e censurar o próprio marido, bem merecedor de ouvir essas verdades. E todo o episódio redundava num grande elogio à virtude da fidelidade conjugal.

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