sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Tesouro de qualidades "lucilianas"

Dª Lucilia, com sua incansável solicitude materna, preparou seus filhos para corresponderem com generosidade à ação santificante da Igreja de Deus. Ela lhes ensinou a compreender e amar a fundamental importância da suavidade e da doçura no convívio humano. Quando duas ou mais pessoas têm afinidade entre si, sentem-se mutuamente atraídas por um movimento cheio de benevolência, o qual é a substância da amizade. Esta não será real e autêntica se estiverem ausentes o amor de Deus, a ternura, a afabilidade, a paciência e a compaixão.
É preciso ter conhecido Dª Lucilia para avaliar o quanto seu coração estava distante de qualquer ressentimento ou desejo de vingança. Nunca tisnou sua bela alma o mais leve movimento de alegria pelo mal ocorrido a alguém. Sua amizade, uma vez concedida, jamais era rompida, e a compaixão para com os sofredores tinha toda a amplitude aconselhada pelo Divino Salvador nos Evangelhos.
Assim, foi a suavidade uma das primeiras virtudes que Dª Lucilia, de forma modelar, procurou transmitir a quem dela se aproximava.
Outro exemplo perfeito, a se destacar no belo jardim de suas qualidades, era o da intransigência face ao mal, que se manifestava sob as mais variadas formas segundo as circunstâncias. Assim, ao corrigir os filhos por alguma falta, empenhava-se em lhes mostrar a gravidade do ato praticado, salientando o quanto aquilo ofendia a Deus, de modo a incutir-lhes um profundo horror ao pecado.
De outro lado, por sua fidelidade aos princípios católicos, rejeitava o espírito de tolerância que se ia introduzindo na mentalidade de seus contemporâneos. Razão pela qual, estando Dª Lucilia presente numa conversa, nunca deixava passar sem reparos alguma crítica à Santa Igreja ou à Religião. Este não transigir face ao mal foi outro tesouro por ela legado a seus tão queridos filhos.
Além disso, Dª Lucilia tinha o grande mérito de saber admirar os predicados do próximo, sugerindo a Rosée e a Plinio, pelo inconfundível e atraente exemplo que dava, procederem desse modo. Com freqüência, o dinamismo de seu contentamento se voltava todo para a exaltação dos talentos alheios. Em contrapartida, não se comparava com ninguém, nunca se referia a algum elogio que tivesse recebido, nem procurava chamar a atenção, mesmo que indiretamente, para alguma qualidade própria ou de seus filhos.
Equilíbrio na dor e na alegria
A reversibilidade no espírito de Dª Lucilia era uma de suas notáveis qualidades. Em meio ao inocente júbilo do Natal havia sempre nela um fundo de tristeza, pois via despontar ao longe o drama da Paixão. Em sentido oposto, ao considerar a Morte de Nosso Senhor, algo em sua alma já denotava as alegrias triunfais da Ressurreição.
Assim o verdadeiro católico deve considerar as alegrias e as vicissitudes da vida enquanto está neste vale de lágrimas. Só na eternidade encontraremos, no convívio com a Santíssima Trindade e Maria Santíssima, a felicidade inteira e completa. “Serei Eu a vossa recompensa demasiadamente grande” (Gen. 15, 1), nos promete o próprio Deus na Sagrada Escritura.
Dª Lucilia, em vista de seu precário estado de saúde, considerava como normal a possibilidade de morrer prematuramente, o que deveras a preocupava, não tanto por si mesma, mas pelo futuro dos filhos.
Certa feita, Rosée e Plinio se preparavam contentes para ir a uma das esplêndidas festas de Natal para crianças, tão comuns outrora. Ao se despedirem de Dª Lucilia — naqueles dias bastante mal de saúde — ela afetuosamente lhes disse:
— Lembrem-se: quando vocês voltarem podem não mais encontrar viva sua mãe. Entretanto, como em muitas ocasiões eu posso morrer, vocês não devem deixar de ir a festas. Por isso, vão agora também...
Qualquer educador ao estilo moderno consideraria isso uma crueldade. Contudo, as palavras dela traziam consigo resignação, serenidade e muita paz.
Seus filhos, naturalmente, ficaram muito pesarosos ante tal hipótese. Se para qualquer criança é uma tragédia perder a própria mãe, o que seria para eles perder tal mãe?
Preocupava a Plinio, sobremaneira, separar-se de Dª Lucilia. Em certa ocasião ele deparara, numa coletânea de contos infantis, com a narração da morte de um menino que era levado por seu Anjo da Guarda para o Céu. Segundo tal história ( lida por ele apenas em parte, por considerá-la demasiadamente triste), o anjo tomava a alma da criança, iam até o jardim, colhiam uma rosa e começavam a subir lentamente em direção ao Paraíso. O menino, ao passarem sobre a casa dele, via os familiares chorando sua morte. Depois, estando mais alto, contemplava o bairro onde havia morado e a igreja onde ia à Missa aos domingos com seus pais. Subindo ainda mais, tudo embaixo ia ficando pequenininho, até se perder de vista ao atravessarem as nuvens para entrar no Céu. Nesse instante a rosa branca, colhida no jardim, símbolo da inocência da criança, abria-se, e suas alvas pétalas caíam sobre a terra.
Por ocasião de uma doença, Plinio se lembraria desse conto, chegando a pensar como seria interessante morrer. Assim acabariam, de uma vez por todas, os sofrimentos da vida, doenças, estudos, e ele iria viver naquele paraíso de delícias descrito por Dª Lucilia como um lugar de perfeita felicidade, onde as pessoas podiam gozar para sempre da gloriosíssima presença de Deus, do convívio inefável de Nossa Senhora, bem como da luminosa companhia dos Anjos e dos Santos. Mas... algo o impelia em sentido inverso: Dª Lucilia iria com ele? Sem isso não conseguia imaginar um céu em que fosse verdadeiramente feliz.
“Plinio bleibt bei Mutter”
Um pequeno detalhe, contado anos mais tarde pela Fräulein Mathilde, poderá dar-nos ideia do encanto que Dª Lucilia despertava nas crianças, e muito especialmente em Plinio.
Como é natural, uma governanta precisa ter as crianças continuamente sob as vistas, evitando que saiam sozinhas à rua ou entrem indevidamente em certas dependências da casa. Muitos anos depois de ter deixado a residência dos Ribeiro dos Santos, Fräulein Mathilde comentaria que Plinio nunca lhe dera trabalho. Às vezes o perdia de vista e se perguntava: “Onde está Plinio?” Mas logo concluía: Ach! er bleibt bei Mutter (“Ah! ele está com sua mãe”). Pois, sempre que ele sumia do meio dos companheiros, era para estar com Dª Lucilia.
Quando ele brincava com as outras crianças, após algum tempo escapava para subir ao quarto de Dª Lucilia, a fim de conversar um pouco com sua mãe. Fazia-o na surdina, para não o denunciarem: “Olha! o Plinio já está indo lá!” — e assim o impedirem de sair. Mas não demorava e Fräulein Mathilde batia à porta do quarto de Dª Lucilia, dizendo:
— Plinio! Plinio! Todos os meninos estão embaixo. É hora de brincar. Vá também!
Dª Lucilia via que a governanta tinha certa razão e, para não lhe tirar a autoridade, dizia:
— Filhão, agora vá.
Ao ouvir aquele aveludado timbre de voz, ao qual era impossível resistir, todos os obstáculos desapareciam e lá se ia ele.
Mesmo quando mais crescido, frequentando já o Colégio São Luís, era comum interromper os deveres escolares de casa para procurar a companhia de sua mãe. Porém, não tardava muito para que a Fräulein o viesse chamar de novo ao dever. Dª Lucilia fazia-o então voltar aos estudos, que ele retomava consolado por fazer a vontade dela.
Quando Dª Lucilia já era nonagenária, e Dr. Plinio ia lhe fazer um pouco de companhia, ela se lembrava muitas vezes do dito em alemão da Fräulein Mathilde e dizia com saudade:
— Filhão, você veio bleiben bei Mutter?
E ele redarguia: — Pois é claro! Vim bleiben bei Mutter mesmo — e a cumulava de carinhos.
Houve, entretanto, uma ocasião em que Plinio blieb nicht bei Mutter (“não estava com sua mãe”), o que foi motivo de grande preocupação para Dª Lucilia.
O pequeno Plinio, dormindo num... parapeito
Por volta de janeiro de 1968, contava Dª Lucilia a alguém que ainda hoje mantém viva recordação de suas palavras:
“Um dia a governanta das crianças veio me procurar e perguntou pelo Plinio. Ele era ainda muito menino e ela o perdera de vista. Supunha que estivesse comigo. Não o vendo, disse-me aflita:
“— Estava certa de que ele se achava junto à senhora, como sempre acontece quando escapa dos brinquedos!
“— Vamos então procurá-lo — respondi. A senhora o procura na parte superior da casa, eu verifico se ele está embaixo.
“Como não o encontrássemos, invertemos os andares e a Fräulein passou a procurá- lo no térreo enquanto eu verificava se ele estaria no andar superior. Só então, ao passar por uma sala que dava para um terraço alto, vi o Plinio, deitadinho sobre o parapeito, dormindo tranqüilamente. De imediato dei-me conta do perigo que ele corria, pois qualquer movimento brusco poderia fazê-lo cair.
“Chamei duas criadas mais fortes, dizendo-lhes que dobrassem em dois um cobertor e o segurassem firmemente no jardim da casa, embaixo, junto à mureta onde ele dormia, a fim de apará-lo numa eventual queda. Ao verificar haverem elas chegado ao local, dirigi-me com a governanta à varanda, prestando atenção para não provocar nenhum ruído que bruscamente o acordasse. Aproximando-nos da mureta, subi numa cadeira, passei cuidadosamente os braços em torno do corpo dele, e chamei-o pelo nome:
“— Plinio, meu filho!...
“Ele acordou, e virando-se para mim, respondeu:
“— O que é mamãe?
“Imediatamente o tomei nos braços e, ajudada pela governanta, o desci do parapeito. Estando com ele no colo, já na sala de jantar, eu lhe disse:
“— Meu filho, você tem tanto lugar aqui para descansar, tem sua cama, o sofá de sua mãe, você tem essas poltronas, por que você quis dormir num lugar tão perigoso?
“Ainda alheio ao risco que correra e um pouco surpreso com minha preocupação, respondeu com muita candura:
“— Ah, mamãe, eu subi ali para contemplar o panorama e, quando estava lá, tive sono e adormeci...
“— Filhinho, você vai me prometer nunca mais repetir isso.
“Ao que ele prontamente e de bom grado aquiesceu.” Sempre atendendo às perguntas de seu interlocutor, à simples questão se seu filho lhe dera alguma séria preocupação durante a vida, Dª Lucilia, aos 92 anos, dando colorido às palavras por meio de indescritíveis e pequenos gestos, comprazia-se em repetir esta narração...
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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