sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Com os filhos, em Águas da Prata

Na educação de uma criança desempenha importante papel a movimentação, porquanto tem ela natural necessidade de gastar as próprias energias: correr, saltar, jogar, etc. Dª Lucilia procurava orientar bem as propensões dos filhos, a fim de a vulgaridade não lhes tomar conta do espírito, nem mesmo através desses aspectos correntes da vida como são as brincadeiras infantis.
Quase sempre era a governante alemã, Fräulein Mathilde, que os acompanhava nos passeios, ora ao Parque Antarctica, ora ao Jardim da Luz, o que ela empreendia metodicamente, bem de acordo com o modo de ser germânico, obrigando por vezes o menino a fazer um pouco de exercício, pois não era ele muito dado a grandes esforços físicos. Plinio corria o mínimo indispensável para evitar maiores complicações com a governante e poder, assim, retornar às distrações de sua preferência, como, por exemplo, contemplar o belo colorido das borboletas que, brincando com os raios de sol, despreocupadamente esvoaçavam por entre o arvoredo do parque.
Em outras ocasiões, indo passar temporadas na estância termal de Águas da Prata, muito recomendada pelos médicos para aliviar problemas hepáticos, Dª Lucilia levava consigo os filhos.
Nem ali descurava a Fräulein os passeios, conquanto Dª Lucilia ficasse, por vezes, temerosa com o excesso de zelo demonstrado pela governante. Porém, após ouvir as razões dadas por esta, acabava aquiescendo, não sem guardar um fundo de preocupação, com receio de as crianças não suportarem tanto esforço. Mas, tal não ocorria à mente da dedicada alemã. Conduzia pela mão os pequenos, um de cada lado, e lá ia contente, escalando com seu passo decidido os morros circundantes. Estava convicta de que um bom exercício só beneficiaria a saúde de seus pupilos, inclusive por ser o ar das alturas privilegiadamente puro.
Se as crianças, às vezes, demonstravam pouco entusiasmo por essas caminhadas, Dª Lucilia procurava compensar o necessário sacrifício com seu maternal afeto. Assim, para eles, a estadia em Águas da Prata não era destituída de entretenimentos mais apetecíveis, o melhor dos quais era a companhia de sua mãe, que ali tomava um colorido próprio, ao longo da leitura das histórias de Bécassine...
Em Águas da Prata, Bécassine
Com a finalidade de proporcionar uma boa leitura a Rosée, Dª Lucilia assinara, para alegria de sua filha, uma revista infantil francesa intitulada Semaine de Suzette. Esta trazia, em capítulos, as histórias de Bécassine, uma pitoresca e ingênua camponesa bretã, muito pouco dotada de inteligência, mas a quem não faltava grande dose de bom senso.
Nas histórias entrava um sem-número de outros personagens, representativos dos diversos tipos humanos da sociedade francesa de então. Um dos mais interessantes era, sem dúvida, Madame la Marquise de Grand Air, senhora de um belo castelo, também na Bretanha, a quem Bécassine servia fiel e dedicadamente desde muito jovem. Destacava-se ainda a figura simpática do tio Corentin, característico “notável” da pequena localidade de Clocher-les-Bécasses.
A história era narrada por meio de desenhos coloridos em quadrinhos, acompanhados do texto apropriado, o que tornava sua leitura muito atraente para as crianças.
Contudo, mais apreciados pelos pequenos ouvintes eram os comentários que, com fino senso psicológico, Dª Lucilia entremeava na leitura, feita aliás em francês, para se aprimorarem numa língua que, segundo ela, toda pessoa culta e educada devia falar como segundo idioma. Ora elogiava a boa atitude tomada por alguém, tirando daí uma lição moral, ora descrevia os costumes da França e as regras de etiqueta, para seus filhos aos poucos aprenderem a viver em sociedade.
O amor materno não conhece limites, e Dª Lucilia nunca achava demasiado o tempo que dedicava à educação dos pequenos, mesmo em prejuízo de sua comodidade pessoal.
Nas primeiras temporadas em Águas da Prata, Plinio e Rosée, junto a uma pedra nos arredores de Águas da Prata Dª Lucilia se hospedava com a família no Hotel Costa, ocupando três quartos contíguos. A vida naquela então longínqua estância termal do interior de São Paulo era diferente da que a família levava na Capital, sobretudo para as crianças. Estas ficavam um tanto livres das obrigações e lições dadas pela Fräulein, tendo mais tempo para estar com Dª Lucilia.
A pequena cidade ficava como que dissolvida nas vastidões rurais da bucólica região, próxima de Poços de Caldas.
O hotel era um simpático e tradicional estabelecimento, mas de construção tão antiga e imprópria, que da rua se podia olhar para dentro dos quartos, de tal modo ficavam baixas as janelas. Por isso, Dª Lucilia mantinha as venezianas fechadas, pois, devido às suas frequentes indisposições hepáticas, passava longos períodos deitada.
Após a sesta das crianças, lá pelo meio da tarde, elas iam geralmente até o quarto da mãe, guardado na penumbra, cortada por discretos filetes de luz que se esgueiravam por entre as frestas das janelas. Abriam devagarinho a porta, acendiam o abat-jour, uma delas recostava-se ao lado de Dª Lucilia, passava o braço por cima do travesseiro, e com a Semaine de Suzette já na mão, perguntava:
— Meu bem, vamos comentar Bécassine?
Seus filhos guardaram enormes saudades daquelas longas horas de ininterrupto convívio, enquanto o sol, que as venezianas filtravam, ia esmorecendo aos poucos até dar lugar à escuridão da noite, sem Dª Lucilia em nenhum momento manifestar cansaço ou dar a entender às crianças terem chegado num momento inoportuno.
Amenizando a doença de Plinio
Certa vez, inverteram-se os papéis. Plinio adoeceu em Águas da Prata, ficando de cama. Todas as tardes, Dª Lucilia, com o fascículo de Bécassine nas mãos, ia até o quarto de seu filho e, sentando-se a seu lado, comentava longamente as pitorescas aventuras da simpática camponesa bretã. Com seus delicados dedos, passava devagar as páginas da revista, enquanto sua melodiosa voz dourava aos olhos do menino as descrições.
Malgrado todos os desvelos de Dª Lucilia, a doença de seu filho não passava. Começou por uma dor de garganta, depois apareceu uma erupção na pele e, por fim, o médico já não acertava o que fazer. Foi razão suficiente para ela redobrar as manifestações de carinho, ficando a maior parte do tempo junto a Plinio, com o intuito de lhe tornar menos enfadonho o arrastar das horas.
Não há dúvida que tão agradável companhia tornava célere o percurso dos ponteiros do relógio, transcorrendo assim dez inesquecíveis dias.
Mas este paraíso foi bruscamente interrompido por Dr. João Paulo, que, apesar dos temores de Dª Lucilia, optou por drástica medida. Envolveu o filho num cobertor e, com a família, embarcou no trem para São Paulo. Ao descerem na estação da Luz, verificaram ter a doença desaparecido como por encanto.
Embora sem aflição, Dª Lucilia ainda se manteve preocupada todo o resto do dia da chegada à Capital, pois receava um agravamento da enfermidade. Suas confiantes orações certamente foram decisivas para o restabelecimento do pequeno Plinio.
“Meu filho, mais doçura em suas palavras”
Um belo dia Dª Lucilia passeava com seus filhos por uma rua de Poços de Caldas. A eles deparou-se então um grupo de leprosos a cavalo, munidos de longos bastões na ponta dos quais estavam amarradas canecas de metal, utilizadas para angariar esmolas dos transeuntes. As crianças ficaram explicavelmente chocadas com o aspecto dos infelizes.
Naquele tempo corriam muitos boatos segundo os quais os leprosos queriam transmitir sua moléstia a outras pessoas, pois imaginavam que, contagiando sete, sarariam. Dizia-se que se serviam da caneca, na ponta dos bastões, não só para recolher o dinheiro, mas também para encostá-las no benfeitor, com esse censurável intuito.
Apesar das explicações, Plinio não entendeu bem do que se tratava, e pensando nos boatos, comentou com horror o triste estado daquelas vítimas da terrível doença, obrigadas a mendigar e resignadamente acomodadas à própria situação. Ante aquele confrangedor espetáculo, o menino exclamou:
— Mamãe, não se tem o direito de ser assim! Não se pode ser assim!
Dª Lucilia, sempre materna, mas nesse momento com uma nota de gravidade, repreendeu-o:
— Meu filho! mais doçura em suas palavras. Nosso Senhor Jesus Cristo também remiu os pecados desses pobres coitados. Ele os aceitará no Céu. E você, não os aceita?
Essas palavras, vindas do fundo do coração de Dª Lucilia, marcaram a alma do menino, e ele entendeu melhor a causa do afeto transbordante de sua mãe, ou seja, o amor de Deus, já que até em relação àqueles pobres leprosos, cuja vista tanto espanto causava, ela tinha sentimentos de comiseração.
Aliás, Dª Lucilia se condoía de modo muito especial dos desvalidos, a quem dispensava, sempre que necessário, toda espécie de afabilidade e de consolações. Não obstante, exigia respeito em relação a qualquer pessoa e, como norma geral de conduta, jamais permitia que se caçoasse de alguém.
Se acontecesse escapar dos lábios de seus filhos um dito impróprio contra outrem — e as crianças são facilmente levadas a isso — ela intervinha, repreendendo-os com doçura, e os fazia compreender que não se deve zombar de ninguém. Procurava mostrar o lado bom do infeliz visado, a fim de evitar que Rosée e Plinio desenvolvessem em si uma tendência contrária à caridade verdadeiramente bem entendida. E nem mesmo quando seus filhos já se haviam tornado adultos, dispensou Dª Lucilia essa afetuosa vigilância materna...
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)

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