segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Educando os filhos pela narração de histórias

Sobressaindo entre os excelentes atributos com que a Providência ornou sua alma de mãe e educadora, o fino senso psicológico de Dª Lucilia lhe proporcionava adequado conhecimento dos filhos e dos sobrinhos. Conhecimento este que ela sabia aplicar, de modo todo especial, no momento de lhes contar alguma história. Razão pela qual não nos é difícil compreender como, em tempos idos, as crianças se apinhavam alegres ao seu redor, pedindo-lhe mais uma narração.
Todas as noites de quinta-feira, a maior parte da família se reunia na residência de Dª Gabriela para um longo e cerimonioso jantar. Os pequenos tomavam a refeição numa dependência secundária, e naturalmente acabavam antes dos adultos. Nesse momento, estando a casa cheia de meninos, estes chamavam Dª Lucilia:
— Queremos histórias de tia Lucilia! Queremos histórias de tia Lucilia!
Ela, embora muito carinhosa, fazia valer o princípio de que os mais velhos não são interrompidos pelos mais moços. Assim, estes não podiam entrar na sala de jantar enquanto aqueles não terminassem. Do lado de fora, através da porta entreaberta, os pequenos passavam a dirigir agradinhos a Dª Lucilia, para obter que fosse logo estar com eles. Ela não respondia e, tranquilamente, continuava a comer. Quando acabava, dizia muito comprazida:
— Vou para o escritório e conto uma história para vocês.
O aposento ficava apinhado de crianças, todas encantadíssimas, à espera de mais uma atraente descrição.
Enquanto na sala de jantar os adultos prosseguiam a conversa sobre assuntos da atualidade, Dª Lucilia se recostava numa chaise longue do escritório do esposo, e os meninos, literalmente, se empoleiravam em torno dela, até mesmo atrás de sua cabeça.
A história do nobre manco
Dª Lucilia modelava suas descrições no intuito de favorecer a maturação do espírito de seus jovens ouvintes, o que constituía um dos principais atrativos de suas histórias. Levada por maternal carinho, procurava ela incutir-lhes o amor ao cumprimento do dever e a admiração pelos atos belos e louváveis. E, em certas ocasiões, aproveitava os contos para dar às crianças uma lição de caráter moral e religioso.
O do nobre manco, fato que se havia passado no Ancien Régime, era característico. Assim descrevia ela:
A pequena distância de uma estalagem, à beira de uma estrada, conversavam animadamente alguns rapazes do povo miúdo, fortes, saudáveis e bem dispostos.
Em certo momento aproximou-se uma carruagem puxada por cavalos brancos, magnificamente ajaezados, e parou diante da casa. Os ornatos dourados do coche, o brasão pintado em suas portas, os finos cristais das janelas, os postilhões vestidos de libré, tudo, enfim, denotava a nobre origem do ocupante daquele belo veículo.
Saltam em terra os lacaios: um segura com força os cavalos, outro, ligeiro, corre a abrir a porta, enquanto um terceiro estende a escadinha até o chão. Os rapazes se apressam, curiosos, para ver quem era o feliz viajante. Através das cortinas de damasco vermelho, entreabertas, distinguem o busto de um jovem de bela aparência que se prepara para sair. Com elegante gesto, este se cobre com seu tricórnio ornado de plumas e, lentamente, desce da carruagem... apoiado, porém, em muletas, pois tinha um pé cortado.
Os jovens, então, caíram em si. Quão pouco vale o dinheiro, e quão pouco valem as aparências da terra! Eles, por não terem nenhum pé amputado, eram mais felizes do que o nobre manco em meio de toda a sua opulência.
Os Três Mosqueteiros
Vendo Dª Lucilia aproximar-se o fim da infância de seus filhos e sobrinhos, julgou adequado incutir-lhes o gosto pela literatura. Sem descurar daquele seu grande empenho em fazer crescer o espírito analítico das crianças, nas quais começavam a despontar as primeiras manifestações de preferências ou repulsas, já próprias à adolescência.
Assim, os enredos por ela elaborados sempre terminavam de modo exemplar: o personagem era premiado por sua virtude ou, quando derrotado, ela o descrevia em seu isolamento, na tranquilidade majestosa de uma consciência limpa — outro tipo de prêmio do qual, com maestria, ela sabia realçar os aspectos aprazíveis e gloriosos.
Supérfluo será dizer que os resumos feitos por Dª Lucilia excluíam qualquer forma de episódios ou detalhes atentatórios à moral. Para fixar a atenção das crianças naqueles longínquos tempos prenunciativos de um apogeu cinematográfico, era preciso que a história fosse novelesca, recheada de aventuras imprevistas e sensacionais. Se o tema escolhido fosse diverso, elas logo se alheavam da narração, que só continuavam a ouvir de olhos distraídos e distantes.
Nessas circunstâncias, a escolha de Dª Lucilia não podia recair sobre tema mais apropriado do que Os Três Mosqueteiros, um dos famosos romances de Alexandre Dumas, cujas passagens inconvenientes eram por ela censuradas com todo o cuidado.
A história também se desenrolava em pleno Ancien Régime, no reinado de Luís XIII. Dª Lucilia, rodeada de seus pequenos ouvintes, ia pintando na imaginação deles, com vivas cores, através de suas harmoniosas palavras, aquela remota época como um período áureo, em que o Ocidente estava para atingir um ápice de bom gosto, de boas maneiras, de elegância e de nobreza de atitudes.
Depois da atraente introdução, os meninos, com sua imaginação presa, já estavam ávidos de ouvir Dª Lucilia descrever a personalidade de cada um dos mosqueteiros, com suas virtudes e defeitos. Os quatro mosqueteiros eram gentis-homens característicos de seu tempo e ela procurava, ressaltando esse aspecto, incentivar as crianças a tomarem suas qualidades cavalheirescas como modelo.
Porém, mais belo do que a descrição sobre os valentes mosqueteiros era o aparente contraste entre a narradora e aqueles heróis: ela, suave, delicada, afável; eles, acostumados aos perigos, ao risco, às rudezas próprias da guerra. As palavras de Dª Lucilia eram tão expressivas que despertavam nos inocentes corações de seus ouvintes o entusiasmo por feitos heróicos, realizados por esses insignes batalhadores, entretanto exímios em brilhar nos salões, com suas reverências, rendas e panaches.
Excelente educadora, analisava ela os personagens sob o ponto de vista da moral católica. Como juiz imparcial, reprovava com severidade o que neles merecia censura, e exaltava as virtudes e outros predicados dignos de louvor.
Quando falava da probidade e correção de Athos, deixava transparecer sua própria integridade moral. Ao pintar a coragem de D’Artagnan, fazia-o com tanta admiração que os meninos pareciam notar o heróico vento da intrepidez acariciar-lhes a face.
De outro lado, Dª Lucilia procurava mostrar-lhes como era rejeitável o “ideal” de um Porthos, cuja preocupação primordial consistia no gozo da vida, e explicava o que havia de superior na carreira intelectual, na preeminência do espírito sobre a matéria. Finalmente, fazia reluzir aos olhos das crianças o que havia de mais elevado no tipo humano de um valente Aramis, eclesiástico e guerreiro.
Com a mente povoada de feitos de armas, grandes heróis, épocas de esplendor e de fidalguia, mas especialmente enlevadas com aquela atraente narradora, as crianças aguardavam, não sem impaciência, o próximo dia em que ela daria seguimento ao conto.
Assim, em sucessivos e animados encontros, Dª Lucilia chegou ao epílogo da história, enriquecendo-a sempre de novos pormenores. Como fecho daquela aventura, descreveu aos pequenos o que ela, na sua rica e virtuosa imaginação, pensava ter sucedido a cada um dos briosos mosqueteiros.
O Conde, o Bispo, o “parvenu” e...
Athos, amadurecido pelos reveses da vida, aperfeiçoado pelo ofício militar, retirou-se para o antigo feudo de sua família, onde passou a morar só, envolto em sua nobre e melancólica tristeza.
Era de ouvir como Dª Lucilia pintava aos olhos das crianças uma tarde no castelo de Athos, quando este, terminados seus afazeres no campo, se recolhia ao aconchego de sua morada. Segundo Dª Lucilia, ele atravessava um pátio interno, adornado de trepadeiras e plantas aromáticas, em cujo centro se erguia um gracioso chafariz.
Assim continuava ela a narração:
Quem, naquele sereno crepúsculo, espreitasse por entre as cortinas do salão nobre do castelo, surpreenderia o Conde de la Fère andando de um lado para outro, entregue a profundas meditações. Chegado o momento do jantar, o Conde se dirigia à sua grande sala de refeições, onde, à bruxuleante luz das velas, degustava saborosos pratos e requintados vinhos. Dentro em pouco, todo o castelo estava imerso no silêncio, entrecortado apenas pelo ecoar dos passos do Conde que, novamente, palmilhava o solo de seus ancestrais. Afinal, recolhia-se ele também a seus aposentos. E quando sua luz se extinguia, era escuridão em todo o feudo...
Desse modo, de acordo com o senso poético de Dª Lucilia, transcorria a vida de Athos. Em seguida, narrava ela o que acontecera ao elegante Aramis:
Satisfazendo seus mais ardentes anseios, abandonou a carreira militar e tomou ordens num convento. A seriedade coerente e profunda dos estudos eclesiásticos veio assim somar-se às suas qualidades de tato e de tino no tratar com as pessoas, predicados estes preciosos para um zeloso pastor de almas. Assim, Aramis não tardou a atrair sobre si a atenção de seus superiores, o que, dentro de pouco tempo, ocasionou sua elevação ao episcopado. Passou assim ele a viver num pequeno castelo de uma diocese, no interior da França.
Depois de ter apresentado às crianças a dignidade da vida particular de Athos e a grandeza da condição eclesiástica de Aramis, Dª Lucilia se voltava, uma vez mais, para aquele a quem os pequenos não deviam imitar: o vaidoso Porthos...
Contava-lhes que, fiel a uma concepção mais bem materialista da vida, Porthos também abandonou a carreira militar em troca da fortuna que lhe prometia uma rica viúva e, nunca dispensando os prazeres da mesa, tornou-se ainda mais avantajado de físico. Passou a ostentar um luxo desmesurado, bem ao contento de suas pretensões. Assim, comprou um castelo que enfeitou e engalanou com um gosto muito discutível. Adquiriu também uma carruagem, em cuja porta mandou fixar, esculpida em madeira e revestida de ouro, uma figura mitológica tocando uma cornetinha, que era o símbolo de Monsieur de Porthos.
... D’Artagnan!
— E D’Artagnan?! — perguntavam as crianças.
Com sua invariável amenidade, Dª Lucilia respondia:
Ele foi o único que continuou na carreira das armas. Combateu em diversas batalhas, e alcançou, por sua coragem e dedicação, o marechalato de França.
Havia muito tempo que os quatro amigos não se encontravam, quando uma arriscada circunstância exigiu que eles se reunissem em torno de D’Artagnan. Então Athos, Porthos e o Bispo Aramis vieram socorrer seu antigo companheiro. Foi a última vez em que foram vistos juntos.
Pouco depois, numa guerra contra os holandeses, comandando as tropas francesas que faziam cerco à cidade de Maastricht, D’Artagnan, atingido por um tiro, caiu do cavalo. Estava morto...
Era o desfecho de uma maravilhosa história, que trouxera o juveníssimo auditório, ao longo de várias noites, suspenso dos lábios de Dª Lucilia. Assim, ela formava seus filhos e sobrinhos, recomendando-lhes imitar a nobreza de sentimentos, a abnegada dedicação, a desinteressada fidelidade a uma causa superior, que constituíam o verdadeiro ornato daqueles heróicos personagens.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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